Notas sobre A redoma de vidro

Por Rafael Kafka


Sylvia Plath. Ontario, 1959.

Achei que aquele era o tipo de droga que só um homem podia ter inventado. Ali estava uma mulher passando por um grande tormento, que não gemeria daquele jeito se não tivesse obviamente sentindo cada espasmo de dor, e voltaria para casa e faria outro bebê porque a droga a faria esquecer de como a dor tinha sido terrível - tudo isso enquanto, numa parte secreta do seu corpo, aquele corredor de aflição continuaria à sua espera, longo, escuro, sem portas nem janelas, pronto para abrir-se e devorá-la mais uma vez.

(Sylvia Plath, A redoma de vidro)


Percebe-se que no romance de 1961, Plath já tornaria presente alguns debates hoje muito fortes nos ciclos que defendem os direitos das mulheres, em especial os ligados à concepção. A sociedade se encontra em plena revolução sexual, mas o papel feminino ainda é bastante preso ao da concepção. O que fica evidenciado nesse trecho é o terror da personagem central, Esther, diante do absurdo que é um ser está preso a um papel de simples reprodução e como um gênero domina outro até mesmo na gerência da dor que o outro terá no momento da concepção.

Impossível olhar para essa cena como um todo, cujo contexto é Esther em uma estranha apatia típica sua seguindo o namorado de então, Buddy, e não pensar na sensação de estranhamento a qual provavelmente muitas mulheres devem ter em relação a seu complexo corpo em uma sociedade dominada por homens. Impossível também não pensar nos debates acerca da pílula anticoncepcional, mesmo que de forma tangencial, um objeto que a priori foi visto como ferramenta de controle da mulher sobre si mesma, mas hoje cada vez mais é alvo de debates sobre efeitos colaterais e de uma não responsabilização dos homens pelo ato de reprodução - já que geralmente a expressão “fechar as pernas” é a mais ouvida quando mulheres se veem em situação de gravidez indesejada e pensam até mesmo em recorrer ao aborto, com os homens pouco ou quase nunca sendo citados e cobrados por sua responsabilidade.

O romance de Plath é seco e traduz bem a voz de uma jovem adulta de 19 anos em um universo artificial. Usa muitos recursos de reminiscências e oralidade, fazendo o enredo ser algo fluido e cheio de camadas, escondidas em uma aparente simplicidade que difere demais dos seus poemas tortuosos e fragmentadas, cheios de estranho simbolismo. De uma forma diferente, ela consegue o mesmo que Clarice: exibir as frágeis amarras deterministas de um gênero sobre outro, amarras que mesmo frágeis por serem discurso se tornam práticas e representações e por isso carne concreta, existência limitada.
Barreira a ser derrubada mesmo que seja na base da violência.

***
Nas digressões de Esther, vemos uma moça repleta de projetos de vida dentro de um mundo onde as escolhas são limitadas, ainda mais para o ser do gênero feminino. Sylvia Plath desenvolve uma narrativa em primeira pessoa profunda por ser visceral no realismo de uma garota que abomina o american way of life e não consegue se sentir ajustada de forma alguma a ele.

Diante de tantas escolhas, a garota decide, como muitas escritoras o fizeram no momento de decisão mais drástica em relação aos rumos de sua vida, investir na produção literária o seu esforço para obter autonomia. Todavia, ela esbarra nas limitações impostas por sua idade e parca experiência de vida, as quais afetam profundamente a sua inspiração temática para o labor poético.

“Como é que eu poderia escrever sobre a vida se nunca tivera um caso amoroso ou um filho ou vira alguém morrer? Uma garota que eu conhecia havia acabado de ganhar um prêmio por um conto sobre suas aventuras entre os pigmeus na África. Como é que eu podia competir com esse tipo de coisa?”

Mais à frente na narrativa, Esther decide que escreverá o romance somente quando fizer uma viagem à Europa e ter um amante. A sua mente ansiosa procura prever o futuro e os projetos caem um após o outro, até o momento em que a protagonista descreve a sua necessidade de tomar remédios, algo abruptamente mostrado ao leitor, até então lidando com uma imagem de força por parte da jovem garota. Presa de um mundo artificial e doente, Esther é, como Martin de “Equus”, grande filme de Sidney Lumet, alguém que precisa de adequar a um ambiente caótico e absurdo para não afundar em desespero.

O medo do sujeito escritor diante da escrita, tão bem delineado por Derrida A escritura e a diferença mostra-se palpável na essência de uma mulher que de alguma quer romper as barreiras de seu gênero e classe social. É por meio da escrita que ela busca dar um sentido a seu ser, criando para si um projeto de vida. Mas como o pensador francês afirma em seu texto, o escritor não conhece o produto de seu labor, atirando-se ao absurdo da aventura a cada trabalho iniciado. Isso gera pavor no escritor e tal pavor se mistura no universo conturbado de Esther, vítima de uma série de violências que fazem-na ter uma loucura perturbadoramente sã.

“Para a pessoa que está numa redoma de vidro, oca a parada como um bebê morto, o mundo é que é um pesadelo. // Um pesadelo. // Eu lembrava de tudo. // Lembrava dos cadáveres de Doreen, da história da figueira, do diamante de Marco, do marinheiro da avenida Common, da enfermeira estrábica, do Dr. Gordon, dos termômetros quebrados, do negro com seus dois tipos de feijão, dos dez quilos que engordei por causa da insulina e da pedra que surgia entre o céu e o mar como um crânio cinzento. //Podia ser que o esquecimento, como uma espécie de neve, entorpecesse e cobrisse tudo aquilo. //Mas fazia parte de mim. Era a minha paisagem.”

A estranha lucidez com a qual Esther Greenwood narra o seu processo de loucura pode ser explicada pela vívida consciência de ser a realidade na qual ela vive um espaço em si mesmo louco e absurdo, a condenar quem nele não se enquadra, especialmente uma mulher que nos primeiros momentos do romance se mostra em certa superioridade repleta de segurança diante do ambiente fútil com o qual convive.



A voz passiva usada em certas cenas seminais do livro -como na tentativa de estupro sofrida por ela da parte de Marco, com o chão crescendo em direção a seu rosto – mostra bem como a incredulidade um ser-aí (como diria Heidegger) rodeado por um mundo hostil. Porém o chão crescendo gera outro tipo de voz passiva ontologicamente explicada, marcada pela atividade dos objetos inanimados. Sylvia Plath os mostra como utensílios marcados pela opressão do outro sobre o ser e não como seres em-si dispostos na realidade aptos a serem usados como efetuação de projetos de vida.

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Há em Esther um processo e desagregação descrito de forma profunda por Bauman nos ensaios que compõem O mal-estar da pós-Modernidade. Todavia, a protagonista de A redoma de vidro é um ser que não consegue se submeter o seu jogo de identidade ao simples consumismo e fetichismo apontados pelo autor polonês como maiores fugas diante do absurdo contemporâneo. Esther se volta para dois recursos apontados por Bauman: a memória e narrativa romanesca, o que remete por sua vez a visão de Lukács como sendo o romance um gênero típico do ser humano vivente em uma era de desagregação, e também a Benjamin, quando fala do romance como narrativa de um sujeito fechado em seu próprio universo pessoal.

Na forma de seu alter ego, Sylvia tenta dar sentido ao universo pessoal angustiado por meio do labor literário, mas fracassa e passa gradativamente a cogitar formas de suicídio. Esther começa a usar, portanto outra forma de trabalho poético, a memória, como tentativa de dar coerência à tessitura existencial que a compõe.

Nesse relato memorialístico vemos a presença de um desespero calmo - um paradoxo que bem descreve a estrutura do romance como um todo – quando a jovem fala de suas desventuras e mesmo de sua morte. No começo, o enredo de A redoma... apela em sua estrutura para diversas digressões para no momento em que a “loucura” toma conta surgirem diversos espaços de fragmentação dentro do texto. Destarte, a tessitura romanesca usa dois modos de experiência temporal para explorar as lembranças e o estranhamento de Esther diante de seu mundo. Mesmo desagregado, o tempo ainda existe em Sylvia, ao contrário de autoras como Clarice Lispector que usam um turbilhão de fatos do presente marcado pelo signo da epifania para expor os dramas do absurdo sentido pela feminilidade castrada do ato de escrever.

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Outro ponto destacada nas memórias de Esther sobre o seu processo de loucura são os ambientes médicos, desumanizados e desumanizadores, cheios de uma profunda frieza para com os pacientes. Há um sereno mas potente pavor de ser mandada para porões infestadas de pessoas sem o devido cuidado. O ambiente médico é desprovido da consciência presente no psiquiatra que cuida de Martin, no já citado Equus, o qual estar prestes a enviar o seu paciente para um mundo cheio de uma loucura marcada pela artificialidade do modo de vida capitalista.

Os médicos presentes no romance de Plath não possuem a consciência metalinguística do psiquiatra de Martin e são meros donos de uma postura auto confiante, como se fossem capazes de dar a cura definitiva aos sujeitos que se sentem doentes. O médico de Equus possui uma humanidade quebrada a partir do momento em que mostra ao leitor como o seu universo pessoal pode ser algo louco e perturbador. Assim, a medicina muitas vezes, em especial no tocante às doenças psíquicas, se vê produzindo simples paliativos e se sente feliz com isso. Caso se questionasse acerca de um tema mais profundo como a cura definitiva dos seres adoentados, pensando sobre o universo bizarro para o qual voltarão ao saírem da clínica, esses sujeitos teriam também sua postura desfigurada.

A redoma de vidro é a metáfora dessa sensação de angústia trancafiada, translúcida e inquebrantável a impedir a vida plena do ser. Os remédios e tratamentos dados pelos médicos são como o soma imaginado por Aldous Huxley: meros disfarces para as dores provocadas pelo mundo. Esther, porém, como um excesso mental – conceito usado pelo autor de Admirável mundo novo para falar do protagonista Bernard Marx – percebe como são a ordem das coisas e não se sente confortável pela alivio aparente dado por médicos e fármacos.

Assim, mesmo nervosa, ela se dirige ao final do romance como Mersault, protagonista de O estrangeiro se dirige ao cadafalso: indiferente ao julgamento a ser dado pelos juízes, que o condenam não pelo assassinato cometido e sim pela frieza diante da morte da mãe – um código moral que para ele não faz sentido algum. A única preocupação de Esther, implicitamente colocada, é que lá fora o ciclo reiniciará e por isso a estranha sensação de inconclusão causada pelo abrupto fim do enredo persegue o leitor por muito tempo, como uma violência sentida por ele ao mesmo tempo que pela jovem garota desajustada perante um mundo desequilibrado.


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