Natsume Soseki
Por Laura Galarza
Tsuda, o
protagonista de Luz e escuridão está
num leito de hospital. O médico acaba de limpá-lo por dentro com uma sonda.
Terá que estabelecer uma data para operá-lo, diz, e costurar as duas partes
soltas de seu intestino. Mais tarde, Tsuda volta no trem para casa, vê como o
mundo segue andando, alheio ao seu sofrimento: “Não existe maneira de saber, de
prever quando se operará uma súbita mudança no corpo de alguém. Pior ainda,
talvez neste mesmo instante esteja acontecendo algo em meu interior e pode ser
que não esteja me dando conta de nada”*.
Curiosamente, quando Natsume Soseki, considerado
o pai da literatura moderna japonesa, escrevia Luz e escuridão, tinha os dias de vida contados: antes de terminar
o romance, morreria de uma úlcera no estômago e a obra ficaria incompleta.
Talvez os desfechos não sejam o importante quando viagens são sonhadas. A
leitura de Luz e escuridão é uma
experiência completa. Uma imersão hipnótica em que a única coisa a ser feita é
seguir lendo. E este não é um privilégio apenas desta obra, o último romance de
Soseki, mas de toda sua literatura. Por isso, asseguram que mudou a maneira de fazer
literatura no Japão e foi referência para escritores como Akutagawa, Kawabata,
Mishima e Kenzaburo Oë que disse no posfácio sobre este romance inacabado:
“Está escrito de forma admirável, perfeito, daí que a força cinética da
imaginação provocada no leitor seja tão poderosa”.
Em meados do
século XIX no Japão, o regime feudal dos Tokugawa (1600-1868) estava em decadência
e a população se manifestava com revoltas camponesas. Ao mesmo tempo as potências
estrangeiras, Inglaterra, Estados Unidos e Rússia começaram a pressionar o país
para que abrisse suas portas ao mundo. A Era Meiji (1868-1912) levou adiante
essa transformação que significou o fim do feudalismo e uma mudança radical
para o país, cujos efeitos seriam sem volta. Soseki representará essas
transformações de paradigmas na literatura.
Professor de
Literatura Inglesa – inclusive viveu três anos em Londres com bolsa do governo
japonês –, a relação de Soseki com a crescente ocidentalização de seu país, ficará
marcada pela ambivalência e será um tema que atravessará toda sua obra. Suas
personagens se perguntam com sarcasmo “pelos restaurantes ocidentais”, notam
quando numa casa há cadeiras (ao invés de sentar-se no chão como se faz tradicionalmente
no Japão) ou enviam cartões para o 1º ano. Soseki lembra uma anedota de sua
estadia em Londres quando convida um inglês a contemplar a queda da neve (um costume
japonês) e este termina zombando dele.
O conflito
entre produtividade e espiritualidade será levado ao extremo por Soseki em seu
romance E depois, que conta sobre a
vida de um jovem que tem como opção não trabalhar e dedicar-se somente à leitura e ao crescimento
espiritual. “Se nunca tens uma experiência maravilhosa à margem da subsistência
que necessitas para viver, então não tem nenhum sentido pertencer à raça
humana”. O Ocidente renova, mas não sem deixar marcas. A principal delas, para Soseki:
distanciar-se da contemplação.
É difícil
nós humanos recordarmo-nos o que se passou na nossa distante infância. Sem
dúvida, hoje, com o avanço das neurociências se sabe que o vivido se guarda em
alguma parte do cérebro e fica aí, congelado e mudo, sem acesso. Aos dois anos,
os pais de Natsume Soseki – uma família de samurais em decadência – o
entregaram para adoção a um casal de empregados da casa. Poderia estabelecer-se
uma ponte entre essa primeira expulsão do familiar e o autoexílio de Soseki
dentro da literatura? A dualidade de sentir-se um estrangeiro em seu próprio território,
e desolado fora dele, aparece como um espinho no calcanhar em cada um dos seus
romances. Soseki não resolve essa contradição. Mas claro, escrever a partir da
incomodidade, sempre dá resultado.
Na maior parte da sua vida de professor de Literatura Soseki anda como cão que quer morder o próprio rabo. Até converter-se
em escritor só treze anos antes de morrer. Soseki começa como poeta – e nunca
deixará de escrever poesia – e em 1903 publica seus primeiros haicai em
revistas literárias. Tinha já 36 anos. Mais tarde, em 1905, aparece seu romance
Eu sou um gato, que resulta num boom
literário e o primeiro das catorze obras do gênero que escreveu nesse intervalo
de 13 anos como escritor, até sua morte, em 1916. Mais tarde os livros de
Natsume Soseki serão de leitura obrigatória nos colégios secundários do Japão e
estará nas notas de mil ienes que circulariam no país entre 1984 e 2007.
Depois do sucesso
de estreia de Eu sou um gato começam
os problemas de saúde de Soseki (sempre infecções estomacais) e os estudiosos
de sua obra asseguram que isso é o que dará um tom cada vez mais melancólico à
sua literatura, mesmo sem perder nunca certa ironia e sarcasmo. Em 1906, escreve
Botchan, outro título que logo se converte em
Best-Seller e será um dos romances mais lidos no Japão durante décadas. Considerado o Huckleberry Finn japonês e comparado com O apanhador no campo de centeio,
Botchan narra a vida de um jovem professor numa escola rural, baseada na
própria experiência de Soseki quando se muda para Matsuyana, um povoado remoto
onde vive durante um ano e termina indo embora – sempre como professor de
literatura – para ir viver na cidade de Kumamoto, onde conhece sua companheira.
Logo, na ordem de aparição segue a trilogia composta por Sanshiro (1908), E depois
(1909) e O portal (1910) para culminar
em sua obra-prima Coração (1914).
O intestino
que precisa ser costurado poderia representar – muito corretamente – o pathos de Luz e escuridão. O amor, a família, os amigos não são por acaso
desgarrados, uma impossibilidade em si mesma? O que se junta está unido? Durante
a viagem de regresso no trem Tsuda se pergunta por que se casou com O-Nobu e
também por que ela se casou com ele. Há apenas seis meses que estes jovens são
marido e mulher e representam o novo da Era Meiji. Eles são a geração que
abandona o ikebana a cerimônia do chá;
se casam por amor e não conveniência. Tsuda e O-Nobu não terminam seguros de
sua decisão. E se de verdade cada um tinha intenções com outro além do amor?
“Desfrutas de tanta liberdade que nãos sabes o que fazer com ela”, diz um amigo
a Tsuda. Porque a família se ocidentaliza e a obediência dá lugar a vontade
individual dos homens, mas isso também complica as coisas. “Como pode crescer o
amor?”, interpreta Kenzaburo Oë como a pergunta que parece fazer Soseki. Assumir
um “eu” implica inevitavelmente admitir um “outro” que também afirma a si
mesmo.
Antes de
operar-se, Tsuda recebe uma carta de seu pai que anuncia que vai deixar de lhe
enviar ajuda financeira. Tsuda tem a suspeita de que faz isso não por dificuldades
econômicas, mas pelas diferenças que começam a impor-se entre seu pai e ele
desde seu casamento. O-Nobu, ao ver seu companheiro debilitado em tudo que faz,
distante de juntar-se à si, começa a se distanciar. No dia em que Tsuda é
operado, ela vai ao teatro para “celebrar” seu aniversário com seus tios que
lhe criaram; eles lhe dizem que Tsuda, de algum modo, ainda é um menino. Todas
as personagens secundárias pretendem controlar a vida do casal: os tios de
O-Nobu, O-Hide, a irmã de Tsuda e o amigo de Tsuda, Kobayashi. Mas sobretudo a
esposa do chefe de Tsuda, a senhora Yoshikawa, uma mulher discreta e sedutora
que o tenta para que volte a ver Kikoyo, sua antiga noiva. Soseki mostra as dobras
da alma humana com uma virtuosidade delicada. Suas personagens findam não compreendendo
por que fazem certas coisas; por momentos se sentem capazes de tudo e logo são
tomadas pelo desalento. O que, se não o medo, a covardia, a insensatez, leva o homem a tomar suas decisões? É possível que o homem com suas limitações
e deformidades do espírito seja capaz de tomar as rédeas de sua vida?
Em todos os
romances anteriores, como um selo que destaca ainda mais o autor da renovação
literária no Japão, Soseki interpela a existência, colocando-a contra as
rédeas. Então suas personagens enquanto dialogam fazem perguntas como “que
pretendes?”, “crês que ainda falta algo?”, “és feliz?” E logo chegam a conclusões
como a da personagem de Kobayashi: “A gente que leu romances russos, em especial
os Dostoiévski, sabe perfeitamente a que me refiro. Todos deveríamos saber que não
importa quão baixo possa estar alguém”.
Eto Jun um
grande estudioso da vida e da obra de Soseki afirmava que foi um mestre
generoso. As portas de sua casa em Tóquio estavam sempre abertas; aconselhava
seus discípulos, emprestava-lhes seus livros, os orientava. Mas chegou um
momento em que Soseki viu afetada sua concentração no trabalho e decide colocar
um dia fixo para as visitas. Assim nasce o que ficou conhecido nos círculos
literários como “a reunião das quintas”. Naqueles encontros se fala sobre tudo:
literatura, artes e filosofia.
Eu sou um
gato é um romance único, em que um gato – sim, um gato – encarna a voz excepcionalmente
crível e verdadeira para colocar sob sua lupa a espécie humana e em tom
zombeteiro, ao mesmo tempo, que tem alguma piedade dela. Algumas das passagens deste romance
foram inspirados naquelas reuniões de intelectuais, sendo o próprio Soseki – na
personagem do dono do gato – o mestre. Diz o gato: “Não há criatura viva mais desapiedada que o ser humano”. “Eles adotaram uma atitude de indiferença ante
a vida, mantendo-se à margem da gente, distantes de tudo como serpentes em seu
ninho, mas na verdade os movem pelas mesmas ambições mundanas que há em todo mundo”.
“Os seres humanos não valem nada, exceto para o uso estrondoso que fazem com
sua boca com o fim único e exclusivo de matar o tempo contando histórias sem graça
e rindo-se de coisas que não são divertidas”.
Tanto em Sanshiro, como em E depois e O portal, as
personagens – homens jovens de classe média bem-educados – tentam safar-se de um
sistema que os subjuga: o trabalho, a família, a sociedade. A Soseki lhe
interessa voltar uma e outra vez ao mundo interior. Do menos ao mais
importante: a fidelidade do homem consigo mesmo. Seus heróis são homens que
traíram, ou que foram traídos por alguém próximo, e levados pela culpa ou desilusão
buscam isolar-se de tudo. O mundo parece não ter lugar para eles. Sanshiro continua o tom de sátira de Eu sou um gato, este por sua vez, na voz
de sua personagem título da obra. Sanshiro é um rapaz de um povoado que vai
estudar literatura em Tóquio e deverá adaptar-se com os esnobes ocidentalizados.
Enquanto isso, ele segue vendo o mundo como um poeta: “As raízes da vida, que
nos parecem tão sólidas, se debilitam antes que nos demos conta e escapam
flutuando no escuro vazio”.
No caso de E
depois, Soseki também através de outro jovem em offside, coloca de pernas para cima o conceito de que “o trabalho
dignifica o homem”. Daisuke não trabalha. Mas não pensa em si mesmo como alguém
entregue ao ócio (como apontam sua família e amigos) e sim como um
privilegiado: é livre, tem tempo para sonhar e sente pena daqueles que são uma peça
a mais na engrenagem de produção. “É um fenômeno lamentável que por trás de cada
evolução, passada e presente, reapareça a degeneração”. Em O portal, um homem faz o caminho inverso que Daisuke (que finda
apaixonado e pondo em xeque toda sua ideologia) e abandona repentinamente sua companheira,
a quem ama, para entrar numa vida de contemplação num templo zen. Ele vai em busca
de respostas, mas só encontra perguntas. Também nos três romances Soseki toma
um caminho maravilhoso para plantar a encruzilhada: o amor. Embora o amor sempre
– outra das suas obsessões – será por uma mulher impossível.
Até onde
pode um sujeito sustentar sua individualidade? As personagens de Soseki sempre
desafiam o mundo. E ao estilo dos romances policiais que fazem com que o leitor
se apaixone pela vulnerabilidade do assassino, Soseki consegue que acompanhemos
seus anti-heróis até à morte. Que sejamos capazes de morrer pelas mesmas causas
que elas abraçam.
Coração é o romance que coroa a
literatura de Soseki. Antes de escrevê-lo, durante umas férias no balneário de
Shuzenji, Soseki – eternamente afetado por sua úlcera estomacal – sofreu uma crise
aguda que o colocou à beira da morte. Algumas fotografias da época atestam essa
mudança em sua fisionomia. Numa delas, datada de dezembro de 1914, posa com
seus dois filhos e o vemos cansado e envelhecido. Sua companheira Kyoko, falaria
sobre, depois da morte de Soseki no livro Minha vida com Soseki. E todas essas experiências compõem o tom de Coração, um romance que deixa o leitor preso
numa profunda melancolia. E ao mesmo tempo com a sensação de sair dela
definitivamente transformado. Soseki, maduro e enfermo, volta às suas obsessões
de uma maneira que comove.
Coração narra em primeira pessoa a
relação da personagem principal, um jovem que acaba de concluir a faculdade, com
o seu professor, um homem mais velho que conhece durante umas férias na praia e que exercerá
uma influência decisiva em sua vida. O romance descreve a relação entre os dois,
assim como a do narrador com seu pai e sua família e, por fim a do professor com
K., seu amigo, a maneira de Soseki, como nos romances anteriores, de introduzir
um triângulo amoroso. O professor parece desprender uma aura de sabedoria que nos
seduz pela personagem e a maneira como fala: com uma sonoridade de
profundidade, uma melodia que balança, seduz. Soseki consegue reproduzir magistralmente
esse poder hipnótico do professor para a personagem e dela para o leitor. “Enfermos
ou sãos, nós seres humanos somos criaturas frágeis”. “Inclusive, aqui, comigo,
é provável que te sintas só”. “Não vacilarei em projetar sobre ti as sombras da
vida, mas não temas. Olha-as de frente, extrai delas as lições que lhe sejam
úteis”. “Eu não tenho força suficiente para agarrar tua solidão e expulsá-la de
ti”. Um manual de espiritualidade, belo e doloroso. Isso é Coração. A conexão entre dois seres que conseguem se modificarem.
O romance
está dividido em três partes: a relação entre o professor e o protagonista, marcada
pela idealização; depois, a relação do protagonista como sua família e como
esta se vê modificada a partir da doença do pai; e a terceira e última em
formato epistolar é a história do professor que simboliza o legado ao seu discípulo.
A anedota do caso é que Soseki, responsável pela seção de literatura do jornal,
ia apresentando esta história em partes. Ao escrever a carta, esperava uma substituição
para sair de férias, o que nunca pode fazer porque ninguém o substituiu. Então se
viu obrigado a crescer a carta que chega a ocupar a metade de todo o romance. A
carta é uma confissão do professor em que revela segredos ao seu discípulo, como por
exemplo, por que visita a tumba de um amigo todo mês (intriga que se instaura
na primeira parte do romance). A história do professor desnuda a humanidade deste
homem que na primeira parte e aos olhos do protagonista parecia alguém sábio e
seguro de si mesmo. Mas, essa sabedoria parecia ter sua origem nas decepções da
vida e no que se converteu depois de haver tomado algumas decisões. Como em
seus livros anteriores, Soseki parecia dizer que em algum momento da vida é necessário
saber quem somos de verdade. E só isso pode fazer o homem melhor. “Quem não tem
vontade de crescer espiritualmente é um idiota”.
Por outro
lado, neste romance escreve sobre o fim da Era Meiji, marcado não só pela morte
do imperador, mas pelo suicídio realizado de forma do ritual japonês seppuku (vulgarmente conhecido como harakiri) de seu assistente, o general
Nogi e sua companheira. Os dois acontecimentos causaram um impacto emocional
imenso na sociedade japonesa da época. O que iria suceder depois com a abertura
do Japão ao Ocidente que tanta angústia havia trazido o desenvolvimento e a expansão?
Várias entradas no diário de Soseki dão conta de sua preocupação e, entre
tantos objetos pessoais se preservam diários desse momento histórico.
Preserva-se também
uma triste fotografia em que se vê Soseki moribundo, num colchão sobre o tatame,
coberto com uma manta e rodeado de gente. Nessa época se acreditava que se
fizesse uma fotografia do enfermo ele se curaria da doença. Como K., o amigo do professor em Coração, enterraram Soseki
no cemitério de Zöshigaya, em Tóquio. O grande terremoto de Kanto, de 1923, e
os bombardeios da Segunda Guerra Mundial que destruíram a cidade duas vezes não
conseguiram apagar sua tumba do mapa. Teimoso, Soseki percorre esse caminho que
inveja os escritores ocidentais: vai do haicai ao romance moderno, convertendo
a dimensão humana em algo possível de explorar pela linguagem. Encantador e
agudo, ler Soseki é então ler um extenso haicai.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução livre de "Coração partido", publicado em Radar Libros e as citações das obras também o são.
Comentários