Estrelas além do tempo, de Theodore Melfi
Por Maria Vaz
Não tenho a pretensão de deambular por conceitos absolutos e ideais que
facilmente poderão ser catalogados como utópicos. O bom de escrever como
espectador de um filme (que é arte) é não ter de atender a métodos científicos:
aqui ‘sou’ eu, o pensamento, o papel em branco e toda a liberdade que algumas
constituições ainda protegem, como a de expressão ou outras, inerentes ao livre
desenvolvimento da personalidade. E dizer isto pode parecer deslocado, mas não
o é. Este filme roda em torno da luta emancipatória de minorias, que eram
cidadãs americanas, mas que possuíam menos direitos e liberdades do que aqueles
que nasceram no mesmo país, com outro sexo ou outra cor de pele.
O filme faz-nos regredir no tempo. A um tempo pior do que este, em que,
além de existir desigualdade entre géneros, era disseminada a discriminação com
base na cor da pele. Agora imaginem um enredo em torno de três mulheres, de cor
(com toda a ridicularidade desumana da expressão que empregarei porque perpassa
todo o argumento do filme) e, por conseguinte, de classe média baixa. Tudo isto
na sociedade norte-americana da década de 60 do século passado.
As histórias que deram vida ao argumento são reais, baseadas no livro
de Margot Lee Shetterly, intitulado de Hidden Figures. The American
Dream and the Untold Story of the Black Women Mathematicians Who Helped Win the
Space Race. A tradução do título [em Portugal] gerou o nome de ‘elementos secretos’, bem distante da tradução no Brasil, mas melhor acertada. Contudo,
fazendo uma interpretação da obra original acho que deveria chamar-se de ‘elementos
escondidos’. E porquê, perguntariam? Porque o que é secreto pressupõe uma certa
cumplicidade e aceitação do secretismo. E aqui, pelo que vi, as três mulheres
foram elementos escondidos pela sociedade machista e racista da sua época. No
fundo, todo o enredo mostra a luta e a sobrevivência, em pequenos grandes
detalhes inacreditáveis, pela emancipação feminina e pelo fim da discriminação
racial.
As heroínas (reais) do filme são Katherine Johnson, Mary Jackson e
Dorothy Vaughn. Todas dotadas de uma mente brilhante. Todas geniais com os
números e o cálculo. Por estarem sempre à frente da turma na escola facilmente
ganharam bolsas de estudo e, depois, conseguiram emprego na Nasa. Só isso já
teria sido uma vitória. Mas é só aí o início da história.
Lembramos que, por esta época, vivia-se o clima de Guerra Fria e toda a
disputa acirrada entre os Estados Unidos da América e a Rússia no avanço
aeroespacial. É nesse contexto de ‘estado de necessidade’ intelectual que a
Nasa decide contratar mulheres negras, para fazerem cálculo e permanecerem em
um edifício separado, em que não tivessem contacto com as restantes pessoas,
com a excepção da supervisora que era branca.
Poderíamos perder-nos no debate da ridícula presunção de superioridade
intelectual (e moral) da supervisora branca em relação às suas subordinadas de
cor. Mas felizmente o filme gira em torno da superação dessa presunção tida
como inilidível. Gira em torno da genialidade, da confiança e da perseverança.
Gira em torno da necessidade de mudar alguma coisa, por elas mesmas e pelos
outros. Gira em torno do espírito pioneiro. Vejamos porquê.
Após demonstrações de capacidade, Katherine e Mary são temporariamente
promovidas. Mary vai auxiliar na construção das aeronaves e Katherine vai
ajudar no cálculo das trajectórias, velocidade, locais estratégicos de
descolagem e aterragem, etc. Dorothy permanece a trabalhar no edifício
segregado, enquanto exerce funções de coordenação sem obter a merecida promoção
ou beneficio salarial.
Quando Mary se muda percebe que deveria e queria ser engenheira.
Todavia, o estado não lhe permitia, na medida em que a engenharia pertencia a
um catálogo de cursos que só poderiam ser frequentados por cidadãos brancos.
Contudo, após se revoltar com o sistema e consigo mesma, decide iniciar todos
os esforços para o conseguir. E, no final, torna-se a primeira mulher
engenheira da Nasa.
Katherine, de igual modo, teve vários problemas para que reconhecessem
o mérito do seu trabalho. Através do seu raciocínio rápido conseguiu
informações confidenciais e foi melhorando os seus cálculos. Nunca desistiu de
encarar os desafios teóricos e do quotidiano discriminador e, pouco a pouco,
provou que merecia assistir às reuniões (que nunca nenhuma mulher assistira) e
assinar os relatórios de cálculo. Tornou-se uma peça essencial na missão
espacial americana.
Dorothy, entretanto, percebera que a Nasa adquirira um computador – o
IBM – e que ninguém sabia muito bem programa-lo ou perceber o seu
funcionamento. Nessa medida, resolveu ir à biblioteca requisitar um livro para
aprender. Resolveu, igualmente, ensinar o que aprendera a todas as suas colegas
negras do edifício segregado: factor que depois a levou a ser supervisora do
IBM e a escolher levar consigo as suas colegas, para constituírem a sua equipa.
Pelo meio do filme, vários pormenores prenderam a minha atenção.
Vejamos. (1) No início do filme, as três amigas tiveram uma avaria com o carro,
na estrada. A polícia surge e elas, ao invés de se sentirem protegidas, seguras
e com ajuda, ficaram com medo. Afinal, o que fariam três mulheres negras, de
vestido, paradas com um carro velho, que elas mesmas conduziam, no meio da
estrada? (2) Só existiam casas de banho para pessoas de cor no edifício
segregado, pelo que Katherine tinha de andar quilómetros para chegar até lá,
todos os dias. (3) Não obstante a situação da deslocação para a casa de banho,
criaram um tabuleiro com chávenas e caneca do café na sala de trabalho. Um
tabuleiro que tinha assinalado: “pessoas de cor”. Primeira nota: Katherine era
a única ‘pessoa de cor’ da sala. Segunda nota: a caneca nunca tinha café. (3)
Quando Katherine se mudara para a nova sala, a supervisora avisou-a de que
teria de ser comedida e discreta, em tudo, incluindo na roupa. Disse-lhe que só
poderia usar um simples colar de pérolas. Primeira nota: Katherine, por ser
mulher e negra, recebia mal (tinha 3 filhos) e não tinha dinheiro para o
‘simples’ colar de pérolas. Segunda nota: depois de uma boa dose de
resistência, coragem e inteligência, katherine conquista os colegas e o seu
supervisor que, ao saber que ficara noiva, decide oferecer-lhe o tal colar de
pérolas. (4) Lembram-se do livro que deu a Dorothy o conhecimento para
programar o IBM? Pois bem, esse livro encontrava-se na parte da biblioteca que
só poderia ser requisitada por pessoas brancas (que era muito maior do que a
destinada a pessoas de cor). Como lhe foi, então, parar às mãos? Dorothy furtou
o livro da biblioteca. Quando o filho percebeu e a questionou ela explicou-lhe
que contribuía com impostos para que comprassem os livros que ela não podia
comprar e a que não podia aceder devido à cor da sua pele. (5) Ao ir para a biblioteca com os filhos,
Dorothy avistou manifestações pela igualdade racial. Com medo, disse
imediatamente aos filhos para ficarem longe de confusões.
O filme deixou-me fascinada com duas falas que não poderia deixar de
partilhar convosco. A primeira é proferida por Katherine em diálogo: “há
direitos civis que não são civilizados”. A segunda é, igualmente de Katherine e
foi proferida em um contexto de flirt. Isso mesmo. Quando um militar próximo
das amigas tenta seduzir Katherine, perguntou-lhe o que ela fazia. Ela lá lhe
disse que trabalhava na Nasa, em cálculo. Não tendo gostado da expressão facial
do sr., não se inibiu de demonstrar a sua forte personalidade e disse: “não
estou lá porque uso saias, mas porque uso óculos”. Achei brilhante!
O que mais podemos retirar do filme? Que nada é impossível! Afinal,
elas foram pioneiras em domínios tradicionalmente ligados aos homens, em uma
sociedade machista, que achava que o lugar da mulher era em casa, a cuidar dos
filhos e a dedicar-se inteiramente à família. Estas três mulheres conseguiram
ser tudo isso e muito mais. Jamais se anularam ou desistiram. Fiquei fã delas.
Antes de terminar deixo uma reflexão. Para Mary poder frequentar as
aulas de engenharia teve de fazer uma petição ao juiz: a lei do estado proibia-a. Teve de convencer
o juiz de que, muito embora a lei o proibisse, há coisas que não fazem mal a
ninguém. Ficamos no ‘não porque não? Por que não ser pioneira? Mostrou-lhe,
através de pesquisa, que a vida do próprio juiz tinha sido pioneira em muitas
coisas. Ele lá lhe concedeu a licença para assistir, dentro das especificidades
do caso, muito embora só no regime nocturno. Mary teve sorte com o sistema de
common law. Fica no ar a reflexão: pode (ou deve) a jurisprudência desempenhar
um poder emancipatório? Ou é dever da lei fazê-lo? E quando ninguém o faz?
Poderão pensar que o pensamento – esse quid imaterial – é utópico: que existe sempre desigualdade;
que o que importa é o concreto. Eu perguntarei: será que o concreto não precisa
do abstracto, que o precede? Será que há prática sem teoria? Ou invertendo a
questão: será que, sem mudarmos o pensamento, algum dia as minorias se
integrarão? Existirá um eterno conflito? Ou se parar de existir quem exclua
deixará de existir exclusão? Será que não se pode mudar o pensamento dos
‘exclusores’? Ninguém quer o pensamento por si e em si. Mas talvez, digo eu,
ele seja a origem. A origem da mudança. A origem da prática: a menos que se
aceite a prática aleatório-instintiva, aí sim, desprovida de razão. Concluo com
uma pequena nota. Neste tempo , o do filme, já existia uma Declaração Universal
dos Direitos Humanos. Já não existiam diferenças teóricas entre homens e
cidadãos (como com a declaração francesa de 1789). Existia já, neste tempo, uma
espécie de ‘emancipação prescritiva internacional’. De que vale, neste campo
das minorias, a emancipação pela jurisprudência (condenável pela separação de
poderes) ou pela lei (veja-se que os tratados internacionais têm natureza supra
legal) se o pensamento das pessoas que compõe as sociedades (ou a dita
sociedade global) continuar a segregar? A não aceitar a diferença?
Agora sim, do alto do meu idealismo: talvez pudéssemos viver todos
livres, felizes e diferentes. Sem estereótipos. Sem imposições autoritárias que
se esvaziam no ‘porque sim’ e no ‘porque não’. Desde que isso não faça mal a
ninguém. Um dia qualquer.
“Muda, que quando a gente muda o mundo muda com a gente
A gente muda o mundo na mudança da mente
E quando a mente muda a gente anda pra frente
E quando a gente manda ninguém manda na gente!
Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura
Na mudança de postura a gente fica mais seguro
Na mudança do presente a gente molda o futuro!”*
*Trecho da música ‘até quando’, de Gabriel o Pensador
***
Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
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