Elle, de Paul Verhoeven
Por Pedro Fernandes
Quem lembrar
de Instinto selvagem, de Paul
Verhoeven, seu filme mais famoso, logo buscará associações entre a protagonista
vivida por Sharon Stone e a vivida por Isabelle Huppert em Elle. São mulheres realmente tomadas pela condição de autênticas
num mundo em que as leis do machismo imperam radicalmente apesar de todas as
transformações porque passaram os direitos das mulheres. Mas não foram saídas
do mesmo útero, quando o assunto é o da condição existencial e de que maneira
elas se tornam protagonistas de si.
A personagem
de Instinto selvagem atende ao lugar
do mundo burocrático e existe para testar os limites de corrupção do homem em
nome do simples imaginário de dominação sobre o sexo oposto, enquanto Michèle,
a personagem de Elle, é a burocrata
que, marcada desde a infância por uma tragédia que a evidencia como figura da cadeia
dos monstros, busca, primeiro compreender essa outra imagem imposta de si e
segundo mover-se pelo pântano dos seus medos mais profundos – essa condição,
aliás, é a que coloca ao lado de Catherine.
Elle lida com emoções difíceis e busca
expor o lado oposto daquilo que socialmente preferimos negar a encarar de
frente. Apesar de Verhoeven negar as influências psicanalíticas na composição
da narrativa, o espectador dificilmente conseguirá desfazer esse vínculo.
Primeiro, pela estreita aproximação e recusa entre pai e filha; segundo, por
oferecer uma personagem presa na realização de se ver um dia estuprada,
dominante do pensamento selvagem que calhou em resquício no imaginário inconsciente
da mulher.
É,
sobretudo, nessa segunda linha onde reside toda a sorte de subversões – a começar
pelo tratamento dado sobre a violência sexual. Não raras vezes é possível encontrar
o argumento de que a narrativa suavizou as linhas hediondas e mesmo a imagem do
estuprador. O que não é verdade. Primeiro, porque a relação que se instaura
entre a vítima e o homem é marcadamente envolta por uma condição de autodescoberta
ou provocação de frente de seus medos: se no início Michèle se utiliza como
barreira, para sua justificativa social, do passado trágico para não recorrer à
polícia sobre o estupro, depois, a revisita do acontecimento e como essa
personagem passa a ser vigiada panopticamente pela ameaça de recorrência do crime,
transforma a relação com o acontecido em fetichismo sexual ou a maneira de, ao
seu modo, encontrar as causas da atitude do estuprador.
Isto é,
antes da negação do estupro – como é feita diariamente pelas campanhas contra a
violência – a narrativa investiga essa atitude violenta como algo do comportamento
capaz de se mostrar em homens e mulheres. Primeiro neles porque o imaginário do
estuprador está marcado pelos sedimentos culturais do falocentrismo, o de captura
e dominação da fêmea. Na mesma linha de raciocínio, a violência, como toda
forma do gênero, se mostra como vias de escape para o que nos resta, em grande
grau, do instinto – esse que controlamos da maneira mais diversa possível, seja
através da religião, seja através das leis, desde a constituição do império da
razão.
Trocando em
miúdos a teoria freudiana, quando criança, a menina tende a se aproximar do pai
numa autoprojeção da mãe e o deseja, ao ponto de, na idade adulta, na morte
dele, buscar relacionar-se com homens que preservem as características
paternas. Evidentemente que as constatações de Freud há muito são questionadas
e repensadas por outra grade de interpretação, sobretudo, a partir da constituição
de uma teoria feminista. Mas, aqui, o espectador de Elle não sabe quais os pormenores envolvidos no bárbaro crime cometido
pelo pai de Michèle, quem presencia os acontecimentos e quem será mais tarde,
assim como sua mãe, acusada de cúmplice. Entretanto, sabe que a maneira como a
personagem encara o estupro e estuprador é uma projeção desse imaginário
sedimentado dos acontecimentos na infância. Que digam a constante recusa do pai
e a tardia morte – aqui, em duplo sentido – para só então uma plena libertação
da mulher. Não é o caso de dizer a insanidade de que Michèle desejasse, desde
sempre, ser estuprada, mas o inconsciente de ser dominada pelo pai é todo
aflorado quando se vê envolvida no acontecimento do estupro e pelo suspense que
se torna a ameaça de tudo se repetir novamente.
Elle não deixa de denunciar – algo que
já se marca noutras produções francesas – a doença que socava os pilares do ocidente:
as sexualidades não vividas, sublimadas ou reprimidas. Os diferentes discursos
sempre se pautam na recusa do corpo como máquina desejante (a alfinetada de
Verhoeven sobre a religião é exemplo disso) e na transformação dos sujeitos,
desde a maneira como lidamos sobre o sexo com crianças ou na velhice, em
assexuados. As revoluções sexuais que significaram alguma mudança nos padrões
de repressão e na constituição do sexo como meio de prazer e não ato de
manutenção da espécie foram insuficientes no processo de reordenamento das
repressões e, se brincar, estamos mais caretas que nossos avós. Uma sociedade
reprimida é uma sociedade doente, porque o trabalho do repressor é,
diferentemente de Michèle quem ousa descobrir as liberdades que se mostram,
transformar a vida do outro no inferno que é a sua. Em pequeno grau, isso
justificaria a atitude do estuprador; em grau mais amplo, a renovação das
mesmas formas de autoritarismo e interesse pela dominação dos corpos.
Preso ao
tratado pela narrativa de Verhoeven, é possível entender que há uma luz na escuridão:
as mulheres são protagonistas de uma possibilidade frente à sociedade porque dotadas
de uma relação com o instinto mais cara que o homem são as capazes de, no caos,
abrir clareiras possíveis antes de se estabelecerem confortavelmente no potentado
da negação como passamos a ser adestrados deste o advento à plena consolidação
do modelo de razão com o qual erguemos uma civilização já agora à beira do fim.
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