Corpos e costumes, riquezas dos povos. Marcel Mauss sob o olhar de Lévi-Strauss
Por Felipe V. Almeida
Jorge Luis
Borges dizia que o escritor é capaz de escolher sua ascendência, ou seja, sua
obra contém sempre ecos e referências daqueles que o antecederam e o tocaram,
sendo muito disso intencional, como uma filiação artística e intelectual. Foi
assim que a partir de minhas leituras da obra de Georges Bataille acabei dando
uma atenção cada vez maior a dois nomes basilares da antropologia: Lévi-Strauss
e Marcel Mauss. Nessas leituras esbarrei em uma introdução que transita entre a
interpretação e o elogio, uma possibilidade de ver a obra de Marcel Mauss
(1872-1950) pelo olhar afiado de Claude Lévi-Strauss (1908-2009).
Sobrinho do
sociólogo Émile Durkheim, Marcel Mauss é considerado por muitos, entre eles Lévi-Strauss,
um dos grandes fundadores da antropologia francesa. Na introdução ao livro Sociologia e antropologia publicado em 1950 que compila grandes estudos de
Marcel Mauss, Lévi-Strauss isola e aponta uma de suas grandes contribuições
acadêmicas:
“Ao afirmar
o valor crucial, para as ciências do homem, de um estudo da maneira como cada
sociedade impõe ao indivíduo um uso rigorosamente determinado de seu corpo,
Mauss anuncia as mais atuais preocupações da escola antropológica americana,
tais como iriam se exprimir nos trabalhos de Ruth Benedict, Margaret Mead e da
maior parte dos etnólogos americanos da jovem geração.
[...]
Essa pesquisa da projeção social sobre o individual deve investigar o mais
profundo dos costumes e das condutas; nesse domínio não há nada de fútil, nada
de gratuito, nada de supérfluo.
[...]
Assim, Mauss não apenas estabelece o plano de trabalho que será, de forma
predominante, o da etnografia moderna ao longo dos dez últimos anos, mas
percebe ao mesmo tempo a consequência mais significativa dessa nova orientação,
isto é, a aproximação entre etnologia e psicanálise.”
Num elogio quase
incontido, mas justificado e que transparece uma admiração clara, ele tenta dar
a dimensão do salto teórico que Marcel Mauss alcançou. Para isso, Lévi-Strauss
nos mostra sob quais circunstâncias Mauss desenvolveu seus trabalhos:
“Era preciso
muita coragem e clarividência a um homem, oriundo de uma formação intelectual e
moral tão pudica quanto a do neokantismo reinante em nossas universidades no
final do século passado, para partir, como ele o faz aqui, à descoberta “de
estados psíquicos desaparecidos de nossas infâncias”, produzidos por “contatos
de sexos e peles”, e para dar-se conta de que haveria de achar-se “em plena
psicanálise, provavelmente bastante fundamentada aqui”.”
Feita a
introdução mais óbvia, Claude Levi-Strauss não se furta então a uma
interpretação crítica desse legado e de como deveria ser colocado em prática
dali em diante:
“Esse
conhecimento das modalidades de utilização do corpo humano seria, no entanto,
particularmente necessário numa época em que o desenvolvimento dos meios
mecânicos à disposição do homem tende a desviá-lo do exercício e da aplicação
dos meios corporais...”
Nessa ponte
entre a teoria e os tempos que viriam, Strauss aproveita para, a partir da obra
de Marcel Mauss, propor um plano tão audacioso quanto grandioso:
“Seria
desejável que uma organização internacional como a UNESCO se dedicasse à
realização do programa traçado por Mauss nessa comunicação. Arquivos
internacionais das técnicas corporais, que fizessem o inventário de todas as
possibilidades do corpo humano e dos métodos de aprendizagem e de exercício
empregados para a montagem de cada técnica, representariam uma obra
verdadeiramente internacional: pois não há, no mundo, um único grupo humano que
não possa dar ao empreendimento uma contribuição original. Ademais, trata-se de
um patrimônio comum e imediatamente acessível à humanidade inteira, cuja origem
mergulha no fundo dos milênios, cujo valor prático permanece e permanecerá
sempre atual, e cuja disposição geral permitiria, melhor que outros meios,
porque em forma de experiências vividas, tornar cada homem sensível à
solidariedade, ao mesmo tempo intelectual e física, que o une à humanidade
inteira. O empreendimento seria também eminentemente apto a se opor aos
preconceitos de raça, uma vez que, diante das concepções racistas que querem
ver no homem um produto de seu corpo, mostrar-se-ia, ao contrário, que é o
homem que, sempre e em toda parte, soube fazer de seu corpo um produto de suas
técnicas e de suas representações.”
Enquanto introdução
de uma obra vultosa, Claude Lévi-Strauss não mostra apenas apreço e afinidade,
demonstra a fundo a importância não só do próprio Marcel Mauss, mas também da
antropologia enquanto campo de estudo. A força desse pequeno texto diz respeito
aos dois pensadores que assim como se tornaram obrigatórios a mim por causa de
Georges Bataille, se tornam inevitavelmente conectados pela forma como seus
escritos se enriquecem mutuamente.
***
Editor do blog Pantagruelista.
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