Carson McCullers

Por Jen Díaz



O terrível, no meu caso, é que durante muito tempo não fui mais que um Eu. Todo mundo faz parte de um Nós, exceto eu. Se alguém não faz parte de um Nós, se sente verdadeiramente muito só. (Carson McCullers)

Se alguém pensa em Carson McCullers, e alguém não deveria comumente pensar em Carson McCullers, sempre a imagina uma adolescente, um menina adulta perfeita e fascinante. Eu algum momento foi, mas a Carson na qual se converteu tem muito e nada a ver com essa imagem: era uma mulher enferma, tão enferma que escrever era ao mesmo tempo um martírio e a única razão para viver cada dia, porque se havia algo que ela desejava de verdade era sobreviver, e a escrita estava fortemente ligada à sua própria sobrevivência: mas para escrever devia vencer algumas dores terríveis. Sim, é certo que a literatura de McCullers não necessita de justificativas para ser admirada porque se trata de uma das escritoras mais talentosas, mas não é possível esquecer sobre os esforços físicos que Carson devia enfrentar toda vez que queria dedicar-se a aquilo para o qual havia nascido.

A vida e a história dos grandes nomes da literatura sempre estão salpicadas de controvérsias, e neste caso não podia ser diferente, a personagem pede aos gritos: não só por ser temida e admirada, mas por ser verdadeiramente singular – ambígua, teimosa e extravagante... contraditória. Mas, antes de começar a falar do que para os demais era Carson, falemos sobre seus livros, suas personagens, seu imaginário sulista, caracterizado pelo hedonismo, a imaginação, a debilidade e, sobretudo, a sensibilidade.

Quando penso em Carson McCullers, e frequentemente penso em Carson McCullers, normalmente erro e lembro de Frankie; para mim, uma de suas personagens mais memoráveis. Não há maneira de desvincular uma da outra, começando pelo conflito com o nome: Lula Carson e Frankie dão forma a Carson McCullers e F. Jasmine, e daí, dessa dupla imagem de si mesmas, começam a brotar a polêmica e as dúvidas, a confusão, a passagem da adolescência para a vida adulta. Ambas querem ser adotadas, querem pertencer a outra tribo, ser membro de (o casamento de um irmão, por exemplo): suas heroínas estão carregadas, assumem o peso de Carson; daí, provavelmente, essa maneira de sobressair-se de seus próprios conflitos, daí a necessidade de continuar escrevendo apesar de seu corpo se negar a fazê-lo. Se Lula não pode ser Frankie, terá que ser Lula sempre: e isso é muito peso para uma pessoa como Carson.

Bailarina, pianista, leitora... Escritora

Quando digo que McCullers era, sobretudo, uma pessoa sensível, não me refiro unicamente à sensibilidade emocional, mas também a artística. Através de seus contos podemos ver claramente quais coisas lhe agradavam e quais lhe desagradavam, de quais injustiças queria falar; é em sua ficção que encontramos a mais real das Lulas: que quis ser pianista, isso nos contos que em muitas ocasiões têm a música como eixo principal. Também quis ajudar na economia de casa dançando, mas seu pai lhe disse, amavelmente: “querida, quando cresceres compreenderás melhor tudo”. Mas é provável que Carson jamais tenha crescido o suficiente para compreender esse tipo de coisa que uma adolescente não pode compreender. Tocar piano era uma das principais atividades de Lula Carson, quando ainda não havia se convertido na escritora McCullers e uma grande fonte de consolo: ao menos a arte tinha a ver com sua estabilidade.

Mas uma pneumonia com complicações aos quinze anos (que não era e necessitou trinta anos para se dar conta de que era uma crise de reumatismo agudo) e sua convalescença dão testemunho da primeira vez que Carson mudou de ideia: substituiria o piano pela escrita, havia decidido, queria se dedicar à literatura. Por isso, quando trabalhou em lugares comuns, ordenados, disciplinados mas pouco criativos, se sentiu tão frustrada. Não deverá, de toda maneira, participar da vulgaridade laboral. Com quinze anos, não são muitos os adolescentes que puderam eleger entre os diferentes dons que acreditam possuir, mas Carson Smith era excêntrica, singular, e estava condenada a comunicar-se através da arte. Já então, ela começa a ser, e não deixará nunca de ser, uma “rara mulher com nome masculino, que gosta de se vestir como homem impulsionada por um desejo mais ou menos consciente de se travestir”.

Reeves McCullers, um narrador

Claro que tivemos momentos felizes, mas foram justamente esses momentos os que fizeram tudo mais difícil. Se Reeves tivesse sido um homem inteiramente mal, haveria sido um alívio para mim, pois poderia deixá-lo sem passar tantos e tão duros combates (Carson McCullers).



Em 1935, aconteceu algo que mudaria para sempre a vida Carson, incluíndo o nome e o sobrenome: conhece Reeves McCullers, que será seu companheiro. A paixão é imediata e o trágico final do casal ainda está longe. Reeves quer ser escritor mas lhe falta talento, apesar de ser um grande contador de histórias e ter a atenção de todos quando está contando alguma anedota; Carson, por sua vez, ainda não é muito consciente de sua vocação, mas tem o que seu marido tanto inveja: a graça para escrever. Os dois fazem um trato, depois de casados, para poder equilibrar a vocação e a vida prática: durante um ano, se dedicarão a escrever alternadamente, e só aquele que conseguir sair vitorioso economicamente da prova o fará de maneira continuada. Mas Reeves jamais terá a oportunidade de tentar, porque logo os dois se dão conta de que no casal só haverá um escritor, e será Carson. A frustração que recai sobre Reeves depois dessa descoberta é grande demais e, provavelmente, um dos motivos de seu suicídio, o princípio de uma depressão que o acabará tudo de vez. Carson, então, começa a afundar no ponto que será seu modus operandi: as iluminações. Trabalhando em suas personagens se dá conta de que há um momento em que acontece a epifania, que é uma espécie de sentença que muda o destino de suas personagens: é um fulgor, um flash que converte um homem sem problemas num surdo, por exemplo.

Minha compreensão é apenas fragmentária. Compreendo as personagens, mas o romance em si permanece num estado de indefinição. A chave aparece às vezes como por acaso, nesses instantes que ninguém, só o autor, pode compreender. Instantes que, em meu caso, se dão geralmente depois de um grande esforço. Revelações que são a bendição do trabalho. Toda minha obra foi escrita assim (Carson McCullers)

Reeves e Carson acordaram alternar os anos de escrita, o que não será cumprido por nenhum dois, e aí começa o que depois se converterá no funcionamento da relação: são dois amigos que chegam a acordos nos quais um deles cede – e este costuma ser sempre Reeves. Para Carson, seu companheiro é seu duplo, mas mais amável. Clarice Lispector dizia que um escritor devia levar uma vida quase burguesa, porque sua tarefa lhe exige demasiado esforço e dedicação e neste casal de bons amigos, um mau e outro bom, a burguesia intelectual vagueia, e Reeves chegará a queixar-se de que Carson se descuida da casa. Como disse Josyane Savigneau na biografia de CIRCE, “neste casamento, o escritor é ela”.

Carson a e a sexualidade

Sua ambiguidade não era apenas física, e não só desconcertava por seu nome masculino e sua maneira de comportar-se: também sexualmente duvidou-se dela. Embora muitos afirmem categoricamente que era homossexual e outros o contrário, a sensação que se tem depois de ler com atenção sua vida é que Carson amava a beleza (uma beleza subjetiva, não física) e o talento, não lhe importava se o dono de ambas as qualidades era um homem ou uma mulher. O sexo, em seus romances, sempre está ligado à vingança, à repulsa, à perfídia e à violência, escreve sua biógrafa, e não se descarta que o amor que Carson sentia por ambos os sexos fosse um amor infantil, inocente. Assim, aparecem essas mulheres-fantasmas, esses amigos imaginários que conseguem desestabilizar o casamento; entre elas Katherine Anne Porter, Erika Mann ou Annemarie Clarac-Schwarzenbach.



Finalmente os McCullers deixam o casamento, mas ficarão para sempre unidos, porque em alguns casais a separação os une mais que a convivência, como no caso de Carson e Reeves. Havia uma atração que os repelia e os atraía constantemente; Carson sempre amou Reeves mesmo evidenciando que não eram compatíveis. Mas então acontece o impensado: o companheiro se converte no tenente McCullers e do centro de treinamento Camp Forrest lhe escreve uma carta muito terna a Carson que logo adotará com prazer o papel de esposa da guerra, a que espera.

Precisamente porque na distância não deverão conviver, Carson e Reeves viverão através da correspondência um amor indestrutível, terno e puro, que não ficará manchado e gasto pela vida diária. Nas cartas, Reeves é um homem dócil e atento, disposto a fazer por Carson tudo quanto ela deseje: parece que é um gêmeo bom, frente à caprichosa e adolescente Carson. Essa é a imagem que muitos dos que a conheceram têm dela, que é a atitude um pouco insolente mas sensível que tem para com Frankie no romance; Carson, além disso, deve combater não só contra sua personalidade excessiva mas também contra sua enfermidade que não a abandonará até o último dia de sua vida. Mas o contador de histórias e a escritora estão apaixonados um pelo outro, e Reeves conhece “esse pássaro selvagem que às vezes é domesticável” do coração de Carson e a respeita, a acompanha e é bem mais fácil acompanhá-la do exército. Carson e Reeves voltam a se casar, e quando perguntam a ele por que volta a fazer isso, diz que se casou de novo com ela porque acredita que todos são zangões e Carson é a rainha das abelhas.

Iluminações, fulgor noturno

Embora esses termos pareçam magia, o certo é que Carson foi uma trabalhadora incansável e uma leitora voraz.

Fiz um pacto comigo mesma: concluir esta monstruosa história no dia 15 de março. Esta manhã trabalhei por várias horas. Mas é esse tipo de trabalho que no menor deslize pode-se cair. Algumas partes corrigi ao menos vinte vezes. Tenho que concluir e tirar isto da cabeça, mas, ao mesmo tempo, tenho de conseguir que seja algo belo, muito bem feito. Isto é, igual a um poema, essa é sua única justificativa. Deste ponto de vista, a leitura de Henry James é um tanto desalentadora. [...] Eu pensava no quanto devo a Proust. Não porque tenha “influenciado em meu estilo” ou coisa parecida, mas por causa de saber que existe algo que alguém sempre pode tomar como referência, um grande livro que jamais perderá seu esplendor, que, por mais familiar que seja, por muito que se releia, jamais ficará cansativo”. (Carson McCullers)

Carson extrai matéria literária de si mesma, de seu próprio tecido emocional, tão variado e com tantos matizes, capaz de conseguir perfilar as personagens que habitam em seus contos e romances. Se se lê sua biografia depois de haver desfrutado de toda sua obra, irão encontrar aqui e ali constantes referências sobre sua própria vida: o amor pela música, o alcoolismo, os sentimentos que Reeves desperta nela, sua própria transformação em outra pessoa na maturidade. Tudo faz parte de Carson e de sua obra e por isso grande parte do que a escritora foi aparece em suas personagens. Sua irmã Rita afirma que “de todas as personagens criadas por Carson McCullers, a que, segundo seus pais e amigos, mais se parece consigo é Frankie: adolescente vulnerável, tão irritante como atraente, sempre em busca de seu ‘nós’”.

Enfermidade

Mas tudo quanto Carson pôde ser tem como empecilho sua enfermidade. Dificulta mesmo a escrita e em mais de uma ocasião sente que sua própria cura ficará por acontecer e se vê incapacitada fisicamente. A frustração e o desespero que nela desperta a enfermidade é mais que uma coisa que Carson possa aceitar. Necessita criar e com certo nível, utilizar seu talento para sua obra, mas a dor muito lhe paralisa. No final de sua vida está muito marcada por esta circunstância. “A dor praticamente nunca tem dó de mim”, escreve Carson, e em 1948 tenta suicidar-se cortando os pulsos. Vai parar num centro psiquiátrico que a destrói ainda mais, porque os que cuidam dela consideram a escrita uma neurose, enquanto McCullers se nega a essa condição imposta – negar a escrita seria como negar sua identidade. Entre ela e os que lhe rodeiam tentam acreditar que a enfermidade seja psicossomática e, de verdade, oxalá fosse.



Carson deverá voltar a familiarizar-se com os hospitais depois de sofrer um aborto natural, embora em sua autobiografia se empenhe em  culpar a mãe que a todo tempo lhe obriga a desfazer-se do filho. Não se sabe muito bem por que Carson tendenciava a inventar realidades à parte, o que conseguia com isso, nem em que medida era consciente de suas criações, ou se era sua maneira de combater sua própria situação. Em qualquer caso, não deixa de existir versões e versões sobre o mesmo tema, inclusive sobre sua relação com Reeves há uma maneira fria de contar, em cartas, seus sentimentos, enquanto suas ações se empenham em contradizê-la ou, ao menos, colocar em xeque sua verdade. 

Apesar de tudo, e contudo, Carson segue adiante e concentra sua energia em sua obra: nos roteiros de seus romances, no seu sucesso, nas opiniões dos leitores. Odiada e admirada, sempre. Sem pesquisar muito, por autores como Arthur Miller, que disse haver lido e desfrutado de algumas de suas histórias mas não se recorda de nenhum título: era, sob seu critério, uma autora menor e por isso lhe dedica sua indiferença e sua má memória. Era especialista em despertar a antipatia, sobretudo para os que faziam com que seu talento fosse modéstia. Por que ia ser tão difícil admirar Carson sendo um conhecido seu, se não pelo que diziam dela como pessoa e não como escritora? A pequena Faulkner não deixa de se colocar em impeditivos e os demais aceitam para não precisar de reverenciar o excelente trabalho que leva adiante, o grande retrato que faz do sul dos Estados Unidos.

Confio no que seus futuros biógrafos não pretendam fazê-la passar para a posteridades toda vestida de branco ou com uma auréola. Carson era um animal e não quero que apareça como um anjo (Robert Walden)

Tudo quanto eu pudesse dizer sobre ela poderia ser negado por qualquer outra pessoa e os dois testemunhos seriam igualmente verdadeiros. Carson era o ser mais angelical do mundo e ao mesmo tempo o mais infernal, o mais odioso dos demônios (Arnold Saint Subber)

Na saúde e na doença

Carson quer ser capaz de escrever, “tanto na doença como na saúde, pois, de fato, minha saúde depende quase completamente de minha possibilidade de escrever”. Depois do suicídio de Reeves em 1953 num hotel em Paris e levando em conta que a enfermidade e a paralisia do corpo a impedirá ainda mais de escrever, ela põe um único objetivo na sua vida: seguir criando para seguir sobrevivendo. Assim, as últimas páginas de sua biografia giram em torno da figura de sua médica, Mary Mercer, e suas dúvidas sobre amputar ou não a perna inválida, sobre a dor e sua literatura.

No início dizia que a qualidade de Carson Mc Cullers é inquestionável e seria mesmo que tivesse sido uma pessoa sã, o que não foi. Em 15 de agosto de 1967, Carson sofre um novo ataque cerebral: depois de superar um câncer de mama e a várias cirurgias, entra em coma. O ataque paralisou todo o lado direito, isto é, o lado são, e sabiamente seu corpo decide não despertar mais: sem o lado bom, todo seu corpo disposto para a escrita será inútil.

Carson era justamente o oposto de uma pessoa suicida. O oposto de uma mulher presa em queixumes, autocompassiva. Era, sim, uma escritora magnífica, um ser magnífico. Uma natureza. Uma pessoa. Isso é o que é preciso compreender. (Mary Mercer)


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