A poesia de um iconoclasta
Por Pedro Fernandes
O registro
de um sismo. Assim pode ser descrita a atitude de Oswald de Andrade em reunir
num só volume sua obra poética. Poesias
reunidas apareceu pela primeira vez em 1945 e anos depois passou por
reedições que incluíram outros trabalhos do gênero produzidos pelo poeta.
Assim, a obra agora publicada pela Companhia das Letras num projeto inovador e
que acrescenta aos textos então conhecidos muitos inéditos replica as marcas
deixadas pela Poesia Pau Brasil e ao mesmo tempo amplia os argumentos que justificam
a importância de Oswald para a literatura brasileira. Ao todo, são 22 textos
inéditos pinçados de cadernos e folhas soltas que integram o Fundo Oswald de
Andrade no Centro de Documentação Alexandre Eulalio da Universidade Estadual de
Campinas.
Através do
itinerário poético de Oswald é possível perceber algumas marcas caras à nossa
poesia como a procura por uma voz original capaz de, ainda longe, ser percebida
enquanto tal no âmbito de um projeto literário nacional. Não é o caso de ser
esta necessidade um desejo perecível daqueles que o antecederam. Mas Oswald se
situa entre os interessados em levar ao limite esse projeto de uma literatura
genuinamente brasileira quando decide não apenas pelo tratamento temático de cor
local, como era feito por outros poetas, e também a forma e estruturação da
obra – algo semelhante ao que muitos outros haviam feito noutras literaturas:
Ronsard e Musset na França, Moeriken e Uhland na Alemanha, Chaucer e Burns na
Inglaterra ou Whitman nos Estados Unidos, como lê corretamente Paulo Prado no
prefácio que escreve para Pau Brasil,
o primeiro livro de Oswald.
Pau Brasil é a realização das necessidades apontadas nos manifestos dirigidos pelo
poeta paulistano cuja importância sempre aparece reduzida, ao lado da Semana de
Arte Moderna de 1922, como desencadeador do modernismo na literatura
brasileira. Didatismos à parte, aqueles textos estão muito além desse simples
dado historiográfico; eles apontam para a formação de uma teoria e de um
pensamento nutridos da mesma força, porém independentes, dos manifestos produzidos
na Europa e com os quais o próprio Oswald teve contato antes de voltar ao seu
país natal. Isto é, sua ambição estava claramente marcada pelo mesmo desejo
impulsivo da febre das vanguardas, ao ponto de reverter os quadros não só da
nossa literatura mas da literatura de fora. E se pode dizer que, se esse desejo
não se realizou tal como interessava ao poeta – devido as circunstâncias
históricas e políticas que condenavam o Brasil ao lugar de submundo da cultura
– suas marcas certamente estiveram nas bases de constituição de outros
movimentos levados, estes sim, para fora das fronteiras nacionais, como foi com
a Poesia Concreta e o Poema Processo.
Os
manifestos de Oswald são ainda as primeiras teorizações sobre uma poesia nova e
uma leitura antecipada de sua própria obra – a começar com os poemas do livro
de 1925. O livro Pau Brasil saiu um
ano depois do manifesto de mesmo nome. Nele, o poeta realiza uma série de
apropriações, sobretudo temáticas e históricas, e transforma o material numa
maneira diversa de se escrever poesia: a nudez do requintado e requentado jogo
retórico comum à poética dos salões, a negação da forma pronta para a expressão
do poema e a transformação da linguagem literária pelas forças da linguagem comum.
O verso breve, destituído da sisudez, por exemplo, incorpora ora a brevidade da
fala ora o humor popular, duas condições fundamentais no processo de
transformação das formas literárias em qualquer literatura mas sempre tratado como
irrelevância para os eruditos de nosso país, sempre compostos de uma elite acomodada
em repetir os modelos ultrapassados do que aprendiam de fora e interessados no
apagamento da cultura do povo. Não é demais acreditar que a elite intelectual
do Brasil responde até hoje pelo crime de massacre da nossa cultura seja porque
esteve interessada em filtrar numa bateia os falsos brilhantes seja porque produziu
uma literatura postiça e inautêntica – inautêntica porque postiça.
Oswald teria
tudo para cair na mesma cilada, mas há ovelhas negras em todo rebanho. Ao invés
de se posicionar como um repetidor de formas preferiu insultar a velha elite
arrefecida com o colorido tropical e das formas mais simples deu anima a uma linguagem autenticamente
nossa, capaz de responder pelo registro de nossas fronteiras culturais dentro e
fora do Brasil. Em Pau Brasil, o
poeta revisa nossa própria história e com riso desbragado destrona a retórica
balofa das versões oficiais. Sabe que a literatura é naturalmente a voz oficiosa
– e por isso mesmo a mais genuína de dizer seu povo – e investe nesse trabalho.
A poesia de
Oswald é impregnada duma ironia mordaz, cortante, do que ri na cara do covarde
e o covarde não percebe o riso. Prova disso é o livro que publicará cinco anos
depois do primeiro: Primeiro caderno do
aluno de poesia Oswald de Andrade. Aqui, o poeta se apropria
do julgamento sentenciado pelos eruditos que se riram de sua poesia para
produzir um embaraço: não há assunto para a poesia porque todo assunto pode ser
assunto de poesia. A volta corrosiva de sua voz contra o dogmatismo artístico-literário
aparece num título que nega o livro que o antecede – “primeiro caderno” – e se
perpetua pelas páginas seguintes ao misturar a escrita com o desenho livre e o
tratamento sobre temas que evocam sua biografia e findam ao voltar aos lugares
assumidos pela sua poesia em Pau Brasil.
Esse
interesse de revelar a poesia na fronteira com outras expressões artísticas se
reanima em títulos como Cântico dos
cânticos para flauta e violão, o livro que sucede o de 1927, publicado mais
de uma década depois do Primeiro caderno.
Neste livro, Oswald roça nos temas mais líricos, produto, ao que parece de certo
idílio revelado no livro anterior, e compõe, ainda atento à simplicidade dos
dizeres, uma cantiga com tons de narrativa à maneira de uma extensa declaração
de amor. É o poeta mais sisudo. Crescido e cansado da pilhéria? Não. Muito
provavelmente descansando o riso a fim de revelar-se um aluno adolescente,
depois de alfabetizado na escola Pau Brasil (menção ao registro impresso na
abertura do livro Primeiro caderno).
Ou seja, mesmo sisudo, Oswald rir-se.
A antologia, excluindo os inéditos agora
apresentados, é um exercício crítico do próprio Oswald. Leia-se isso ao considerar
os Poemas menores, alguns propositalmente
datados e logo capazes de levar o leitor às relações com suas obras principais:
“erro de português” e “epitáfio”, de 1925, por exemplo, são pela expressão e
pela forma, poemas desconsiderados de Pau
Brasil. “Hip! Hip! Hoover!”, de 1928, e “Glorioso destino do café”, de
1944, escritos que poderiam ser acrescentados a Pau Brasil e Primeiro caderno
do aluno de poesia Oswald de Andrade respectivamente. Assim se apresentam,
fora os poemas publicados em revistas e não recolhidos pelo autor na visita ao
seu itinerário literário, os poemas inéditos agora reunidos na antologia.
A brevidade
da obra poética de Oswald patente nos poucos livros que publicou e na dimensão
desses livros atestam que sua obra esteve a serviço de um projeto maior: Oswald
foi iconoclasta e como tal seu interesse
foi propiciar o levante dos seus contemporâneos a se desapegarem das antigas
formas e se mostrarem capazes de levar adiante suas inquietações da maneira mais
autêntica possível e assim inaugurar uma nova correnteza de forças criativas no
cenário literário brasileiro. Dedicou-se mais a esse propósito que em produzir
uma obra prolífica. Esse papel é muito caro à cena de qualquer manifestação
artística em qualquer parte do mundo. Sem ele, estaríamos eternamente presos na órbita da repetição vazia. Este é
outro acento revelado pela antologia agora publicada.
Ligações a esta post:
>>> Vídeo em que Antonio Candido comenta a obra de Oswald de Andrade
>>> Leia três poemas inéditos de Poesias reunidas
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