Simpatia pelo demônio, de Bernardo Carvalho
Por Pedro Fernandes
Bernardo Carvalho. Foto: Marco Castro |
Há várias acepções
para o termo demônio e a mais comum delas é a de um espírito que se rebelou contra
Deus e passou a lutar pela perdição da humanidade. Um endemoniado é um possesso
por esse espírito, capaz de toda sorte de transgressões, que pensa e age de
maneira diabólica. Assim, é possível dizer que Bernardo Carvalho estava
possuído por um desses ao propor uma narrativa contada pelo seu avesso. Grande
parte do que se conta é dissecado como uma invenção de uma das personagens que
significa não o vivenciado por outrem e sim por ela numa sorte de dissimulações
variadas ao ponto de no fim o leitor também se colocar em suspenso pela
possibilidade: e se aquilo que o narrador projeta não é de alguma maneira a
verdadeira persona (se há) da protagonista e não a da antagonista.
Num jogo
diverso de personalidades, o narrador preserva todos os simulacros do eu no
intuito de compreender o quanto nossa realidade é uma forja de nossas ações constantemente
abaladas pelo acaso; este, por sua vez, nada mais é, novamente, que ações forjadas
por outros. E como prova irrefutável disso, elege a situação limite,
desfronteiriça, uma realidade cujas leis variam ao acaso daqui para ali em nome
dos interesses mais escusos: a zona de conflito do terrorismo. Aí, tudo é acaso,
mas todo acaso atende a jogos de interesse individuais justificados pelo nome
de Deus. Se, a princípio o leitor poderá encontrar aqui uma leitura sobre um
dos nossos demônios contemporâneos – e a simpatia recai na maneira como Rato, o protagonista, encara a compreensão sobre a violência sendo ele o funcionário de
uma agência humanitária envolvido nos mais diversos dramas – logo, compreenderá como
Bernardo carvalho reduz (não no sentido de diminuir mas de reproduzir em
miniatura, metonímia) a outras expressões desse termo que intitula a obra.
Rato
encontra-se no inferno, um homem de meia-idade envolvido numa negociação
sigilosa de resgate de um colega de trabalho sequestrado por um grupo
terrorista que vê a vida passar diante de seus olhos quando se vê entre um
atentado recém-acontecido e um homem carregado de explosivos ao seu lado sobre
o quem nem ele, nem o leitor, sabe de nada: se foi um dos que fracassou ao
atentado, para lembrar um episódio de humor negro lançado pelo meio da
narrativa em que a mulher suicida vê o marido explodir na sua frente mas ela
propositalmente não está com o detonador para explodir-se logo em seguida; ou
se é alguém interessado em dar fim à vida do próprio Rato e do resto de hotel
onde está hospedado porque o agente simplesmente burlou a negociata pela
libertação do sequestrado. Essa incerteza mantém o limite de tensão da
narrativa em alto volume, traduzindo assim uma condição demoníaca em relação ao
leitor que é lidar com sua curiosidade em saber afinal o que resulta desse
impasse.
Alguém à beira do precipício que, para adiar a morte (eis uma
atualização do mito da Sherazade) precisa recontar o vivido, ora abertamente
para esse sultão prestes a explodir
(ou não) numa língua que ele não entende, ora com suas próprias perquirições
psicológicas sobre o vivido. É uma visão em retrospecto sobre a vida – ou
melhor sobre aquela parte significativa, no sentido de, por mais tempo vivido,
o que nos fica é pouco ou quase nada. Do Rato, as ocasiões recorridas são as da
separação da mulher e da filha tão logo envolve-se sexualmente com um
pesquisador em neurociência numa de suas idas a Berlim, chihuahua.
É quando o narrador de Bernardo investiga metonimicamente sobre a configuração
do demônio que acreditávamos ser o maior nesse enredo. A relação entre
esses dois homens ganha uma proporção fora dos limites da razão: os capazes
de nos arrebatar desse mundo para outro onde vive-se numa harmonia sonolenta capaz
de ruir ao menor ruído que nos afete os sentidos. Marcados por uma dominação de
ordem sexual, corporal e um embate entre interesses individuais – assinalando
um pressuposto de haver em todas as relações um jogo de interesses capaz de sustentá-las
ou levá-las à ruína – a narrativa passa a investigar todos os meandros desses
dois num extenso jogo que logo deixa de ser o da sedução e encanto como em todo o início de amor para se tornar acusatório e persecutório.
Não tardará o
leitor perceber que o chihuahua é o demônio do Rato – a parte outra do
protagonista capaz de toda sorte de transgressão e uso descarado do outro por
aquilo que mais tem de original, o sexo. Assim, chihuahua é também uma sorte de
súcubo, o capaz de ter para si os homens cujo interesse serve a ele para depois
de usados descartá-los como coisa qualquer. Agora, até que ponto esse “cachorrinho”
que prefere ser uma “raposinha” não é aquilo que Rato é ou gostaria de ter
sido?Apesar de não estarmos numa narrativa em primeira pessoa, isto é, as
histórias não são contadas do ponto de vista do protagonista, mas a visão
interior de chihuahua é dada toda através do Rato e do companheiro de chihuahua,
Palhaço. A voz da figura referente é sempre referida, quando não, desconstruída
por esses outros dois homens. De modo que dele não se oferece mais que uma projeção
e não um retrato como sobre os demais.
Agora, de que maneira a relação entre
Rato e chihuahua torna-se metonímia do tema principal do romance? Duas
possibilidades já foram apresentadas: o seu acaso e os deslimites, terreno
fértil para o jogo de interesses. Através das concessões, na reanimação da tese
de que o amor se nutre delas, e da maneira como o envolvimento entre dois
torna-se uma obsessão, o narrador torna evidente que as relações amorosas – ao
menos no contexto aludido, o contemporâneo, acidentalmente marcado por uma
elevada tensão dos ânimos – são uma forma de violência qual o terrorismo. Não é
o caso de uma coisa justificar a outra nem de que essa outra seja motivada por
aquela.
Quando se fala em metonímia fala-se numa relação de contiguidade, isto
é, aquilo que se mostra em algo maior pode ser entrevista em algo menor e vice-versa.
O terrorismo é produto de uma obsessão: a da vida eterna porque a terrena é
insuficiente para o que somos. É uma posição narcisista: a do escolhido para a
salvação. E encontra um fim-limite: está justificada pela figura inquestionável
Deus, o muro no qual esbarra toda exposição cuja razão fracassa justificar. Além
disso, entre o Rato e chihuahua se desenvolve uma violência psicológica na qual
do jogo de concessões sempre um tem mais delas que o outro. O mesmo apreço,
gosto, aproximação com – os sentidos que passam pelo termo “simpatia” do título
desse romance – estão embutidos no envolvimento do protagonista com esse rapaz
mexicano de interesses escusos e súcubo de existências, na relação de Rato com
o tema da violência (o visceral, demoníaco, que foge às leis da ordem e da criação
divina) e na relação do homem cuja vida é dedicada a matar e matar-se em nome
de uma eternidade e uma desestabilização política e discursiva – se lembrarmos
uma das ocasiões em que o Rato em contato com um potencial terrorista ouve dele
que o terror é uma maneira de provar ao mundo ocidental que o discurso de igualdade
entre os homens é fajuto e responsável pela mesma sorte de violência de que são
acusados.
O demônio
aqui atende por um nome comum – violência. Não apenas a do terrorismo, seu
limite, talvez, mas a forma diversa como esta se assume nas suas mais variadas
formas. Bernardo Carvalho propõe, assim, uma reflexão sobre as novas faces da
barbárie. É notório que depois das grandes matanças indiscriminadas e na atual conjuntura
esta não se configura em domínio de interesse entre a sociedade mas por outro
lado não temos reparado que isso não significou o fim irrestrito da violência.
Ou seja, a barbárie foi ressignificada e sua condena abriu outro pressuposto da
necessidade de outra barbárie para encobri-la: um puzzle no qual se avista mais de perto o fogo fátuo da racionalidade
humana.
A consciência sobre a violência foi capaz de nos armarmos de outra maneira,
possivelmente ainda mais sofisticada que no passado porque justificada ora na necessidade
(a legítima defesa) ora ainda na continuidade do fascismo – este, a expressão
de um tempo sem expressão. A barbárie não está exposta, ela sofisticou-se, pulverizou-se.
Isto é, está em toda parte: infiltra-se nas relações, e mesmo na linguagem, como constata:
“Era natural que, ao voltar, o Rato se surpreendesse com o sentido de algumas
palavras que naquele meio-tempo, durante sua ausência, passaram a querer dizer
outra coisa, às vezes o oposto do que antes diziam. As inversões de sentido
também começaram a intrigá-lo. [...] Ficou muito surpreso, por exemplo, quando
‘Sinistro!’ passou a servir para exaltar o que se amava, como se nessa associação
esdrúxula entre o amor e o horror se intuísse algo familiar, para o qual ainda
não havia palavras. Ou quando, um pouco mais tarde, no caso de o amor acabar,
seus sobrinhos adolescentes diziam às ex-namoradas insistentes: ‘Me erra!”, no
lugar do ultrapassado ‘Me deixa em paz!’. Mas, de todas as flutuações semânticas,
nenhuma provocou nele um efeito tão profundo quanto o uso sinistro (na velha acepção
em desuso) da expressão ‘Perdeu!’. O sentido anterior, prosaico, tinha sido
sequestrado pela associação da palavra a situações de violência extrema, letal.
De repente, ‘Perdeu!’ equivalia a uma sentença de morte. O Rato não conhecia
nenhum outro caso em nenhuma outra língua em que uma palavra tivesse sido
investida de tamanho horror intransitivo. Conjugar o verbo ‘perder’ no passado,
sem complemento e com o sujeito o culto, ambivalente (a uma só tempo você e
ele, o vivo e o morto, o agora e o irreversível), estava de tal forma asso ciado
à morte violenta e inesperada de quem era surpreendido por assaltantes nas ruas
do Rio de Janeiro, no trânsito ou em casa, a qualquer hora do dia, que já não
era possível ouvir dizer ‘Perdeu!’ sem esperar um tiro”.
A violência, como um
demônio, age sorrateiramente; e de maneira animada pelo gosto humano (e o que alimenta a audiência das páginas policiais?). Simpatia
pelo demônio. Com essa constatação expõe-se outra: instintivamente e racionalmente
somos maus. Ao expor uma rede de violências que passa por questões étnicas,
religiosas e sexuais numa situação de destruição individual e coletiva, Bernardo
de Carvalho reafirma esse sentido e necessidade de, assim como Rato,
autoanálise a fim de compreendermos onde está a humanidade da qual tanto nos
orgulhamos em dizê-la. Não é uma visão desencantada ou de um derrotista, tampouco
apologética sobre a violência, mas um olhar pelo avesso da questão: como
podemos conviver com nossa parte má quando a docilização dos corpos é apenas
uma possibilidade fracassada, um outro nome para violência. É esta uma aguda questão
sobre o nosso tempo e o seu desencadear pode representar a salvação ou a condenação,
uma encruzilhada de mesmo sentido qual o vivido por Rato diante de um homem
bomba.
Comentários