O riso de Eça de Queiroz
Por Antonio
Muñoz Molina
Há paraísos
possíveis, paraísos inesperados e acessíveis, paraísos terrestres ao alcance de
quase qualquer pessoa, espaços e lugares de tempo que se abrem de imediato e
que não necessitam durar muito para preencher as horas ou os dias que ocupam. Quando
era jovem, intrigava-me muito isso que diz Borges – não me recordo onde – que não
há dia em que não passemos ao menos alguns momentos no paraíso. Quando jovem,
alguém tem uma predileção literária e às vezes insensatamente literal pelos
infernos. Agora, cada vez que me encontro neste estado de serenidade, de júbilo
contido e muitas vezes secreto, me recordo daquelas palavras sábias da velhice
de Borges, e me dou conta de que os passatempos contemplativos favorecem muito
essas epifanias. (Procuro evitar a palavra “experiência” porque os publicitários
tornaram-na ao mesmo tempo onipresente e a esta altura já quase depreciável).
Um contemplativo
não é um místico. É alguém que se vê extasiado de pura atenção ante uma
maravilha qualquer do mundo exterior: um rio, a gente que passa através das
janelas de um café, um quadro, uma árvore, uma peça de música, a beleza de
alguém, a periferia de uma cidade desdobrando-se pela janela de um trem, a
tipografia de um cartaz, o reflexo da rua numa vitrine, um livro. O passatempo
pela leitura favorece ainda todavia a descoberta dos paraísos acessíveis. Don
DeLillo disse que a literatura é um ofício muito conveniente, porque se pode
exercer em qualquer lugar e com os materiais mais comuns e mais simples, uma
folha de papel e um lápis.
Neste mundo de complexos paraísos tecnológicos, a
leitura é simples ainda. Em qualquer cidade civilizada há não só bibliotecas
públicas e livrarias abundantes como também bancas de rua em que por um ou dois
euros ou dólares pode-se conseguir as obras mais raras, as melhores edições de
toda a literatura universal. Com um livro que pode ter custado menos que uma cerveja, o leitor tem a possibilidade de horas extraordinárias de imersão num mundo que
será possivelmente mais deslumbrante e mais saudável porque o forçará a
prestar atenção a histórias que não têm nada a ver consigo, nem com seus amigos
nas redes sociais, nem com sua época, nem com nada que o convença e o confirme suas
falhas e seu narcisismo e convença de que viva no centro do mundo e acima do
tempo, e que dessa posição pode olhar com condescendência, lástima, inclusive
desprezo, todos os que nasceram antes dele, mesmo seus pais ou os romanos
do tempo de Augusto.
Outra característica fundamental destes paraísos é que só
se encontram por sorte. Nisso se diferenciam também dos paraísos oferecidos
pelas agências de viagens. Alguém tende a organizar demasiadamente suas
leituras ou deixar-se guiar pelo que parece urgente ler num determinado momento: a
sorte, porém, impõe correções saudáveis, porque retira o leitor de suas obsessões e finda
por ser muito mais estimulante que o planejado.
Quando
Stendhal era uma criança de luto porque acabava de morrer sua mãe e seu pai era
um escabroso fundamentalista que o levou para viver com ele numa casa sombria,
descobriu casualmente entre os tomos sisudos da biblioteca paterna uma edição
ilustrada do Dom Quixote. Sem saber o
que era aquele livro, guiado apenas pelas ilustrações, começou a lê-lo. Durante
toda sua vida relembrou com gratidão que a primeira vez que soltou uma gargalhada
depois da morte de sua mãe foi lendo o livro de Cervantes.
Recordo
dessa gargalhada de Stendhal imaginando, escutando, o que se passa num momento
de A cidade e as serras, o grande
romance póstumo de Eça de Queiroz. O protagonista, um aristocrata português que
vive em Paris ofuscado pela depressão e a abundância de ter tudo, de possuir e
manejar todas as novidades do luxo e da tecnologia de então, ri-se às
gargalhadas pela primeira vez na metade da narrativa lendo Dom Quixote, que também encontra casualmente
porque um contratempo de viagem o há privado de todos os livros que trazia consigo.
Eu vivi um
paraíso inesperado de leitor voltando por puro acaso aos romances de Eça de
Queiroz, que tanto gostei sempre e que há muito não regressava a eles. Estava noutras
leituras muito distantes. Mas numa tarte, no inverno suave de Lisboa, na biblioteca
de um hotel muito aconchegante, anacrônico o bastante para ter uma biblioteca e
não ter música ambiente, encontrei uma fileira com as obras de Eça em volumes
de bolso, capa dura, antigos, com as capas de tecido azul, com páginas de
tipografia clara e amplas margens. A biblioteca tinha um terraço que dava para
o rio e os muros de Alcântara. Também tinha umas cadeiras de couro perfeitas
para a leitura com braços muito desgastados por gerações de hóspedes leitores. Algumas
manhãs, o rio e os telhados da cidade e o horizonte desapareciam na névoa. Outras,
o ar limpo e o sol tornavam tudo transparente e limpo como recentemente lavado.
Eu passava horas lendo As cidades e as
serras, tomado por essa maestria ao mesmo tempo jubilosa e ácida de Eça de
Queiroz, um romancista que tem a alegria do jovem Dickens dos Pickwick papers, a desmesura cômica de
Flaubert e Zola; e além disso, um despudor erótico e uma irreverência religiosa
que não tem equivalência no século XIX, e que vem melhor dos enciclopedistas e dos libertinos do século XVIII, de Diderot e Choderlos
de Laclos, com um amor idêntico pelos prazeres terrenos e pela liberdade de espírito.
Volto no avião
para Madri, aproximando-me do paraíso leitor que deixei nessa biblioteca de
Lisboa, onde terminei de ler A cidade e
as serras com essa rara melancolia de despedida de um mundo com que se escrevem
os melhores romances. Mas uma parte do paraíso trago comigo, porque venho lendo
A relíquia. Não há um romancista que
tenha rido tão livremente como Eça de Queiroz da beatice católica e das ridicularidades
de uma religiosidade mesquinha e milagreira.
* Este texto foi publicado no jornal El País
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