John Berger. Retrato de um emigrante
Por Matías
Serra Bradford
John Berger quando completou 90 anos, em 2016. Foto: Eric Hadj |
Conheceu o
inferno num colégio inglês, quando criança, onde casualmente nasceu sua ideia
de armar “uma conspiração de órfãos” regidos pela impertinência. Um lugar que
sem dúvida favoreceu a semente de sua ambição por escapar de uma ilha provinciana
e ir para um continente com horizontes mais amplos, mas altos. Vivia na França,
mas tinha uma queda especial pela Polônia, porque os poloneses “respeitam os
segredos”. Sua cidade favorita era Bolonha, berço de seu admirado Giorgio
Morandi, sobre quem disse, certa vez: “Seria fácil descartá-lo como um artista cuja
sensibilidade é tão delicada que só poderia se considerar anêmica”. Obcecado com
as migrações forçadas, era um homem que caminhava rápido porque lhe parecia
mais cansativo caminhar devagar. A velocidade de sua adorada bicicleta
exigia-lhe uma concentração absoluta no presente, algo que, admitia, o acalmava.
Sua vida favorita de um pintor foi a de Caravaggio, porque “consistentemente
rebelde”.
O romancista,
ensaísta, poeta e crítico de arte John Berger escutava como se outro estivesse
sempre a ponto de dizer algo interessante, ou questionável. Havia nele uma
evidente tensão entre serenidade e fúria (revoltava-se contra tudo o que
possuísse um poder excessivo). Talvez essa tensão fosse uma das características
de sua versatilidade e a partir dela pode-se entender seu impulso pelas criações
colaborativas como a com o fotógrafo Jean Mohr, o cineasta Alain Tanner, o
artista John Christie, e seu filho Yves, com quem publicou Elegia para Beverly. Depois da morte da personagem que dá título a
essa obra, sua última companheira, Berger escreveu: “essa beleza incomparável
emanava de sua coragem”. Antes e agora, qualquer um poderia dizer o mesmo dele.
Nunca deixou de buscar novas formas, como em E nossas faces, minha vida, breves como fotografias, antecipando-se
ao que logo diria em Com a esperança
entre os dentes: “Uma história, não importa quão leve, deve ser livre de
medos”.
Outros dois
polos constantes foram uma vida de fazer (que com Berger significava resistir)
e uma de ver. Começou como pintor, mas num momento deve ter se sentido que
apenas como crítico de arte poderia deixar uma contribuição excepcional. De
toda maneira, permaneceria deste lado do observador. Para o autor de Bandeira e lilás, flores e frutos
seguiriam sendo textos “que não nos foi dado a possibilidade de lê-los”. O
traço ilegível – belo e intocável na ilegibilidade – é um dos segredos do
desenho e isso era o que mais atraía Berger para o desenho, que lhe permitia
baixar a guarda (com respeito ao resultado, no proceder com atenção) de sua
pena, invariavelmente uma Sheaffer Targa. Entretanto, sua definição do belo
invertia o ângulo comum: “A beleza não é o que desfrutamos ao olhar mas aquilo
pelo qual queremos ser olhado”. Para pensar, Berger fechava os olhos ou os tapava
como querendo fechá-los, calá-los, descansá-los. As mãos eram outras de suas
ferramentas autorais.
John Berger no início dos anos 1960 quando se mudou para Paris. Foto: Peter Keen |
Uma de suas
últimas grandes compilações se intitula Portraits
– por outros, ou de sua autoria, por escrito ou num desenho – e provavelmente
seja o retrato ou o coração não muito oculto de sua obra. Com frequência uma face
evoca outra, ou um animal. Seu método é o de encontrar pontos de contato entre coisas
distantes ou sublinhar distinções mínimas, como entre dois termos que se parecem
(como tímido e retraído). Também sabia retratar delicadamente os que já tinha à
vista. Em Aqui nos encontramos, por
exemplo, quase todos têm o nome de uma cidade europeia. As noções de pertencimento
e de lugar são uma recorrência constante na obra de Berger, tal como sua noção
de “outro lugar”. Marxista que nunca temeu referir-se à oração, comparar algo com
uma reza, perseguir a conexão invisível ou remota, quando lhe pareceu oportuno.
Mas, Berger
pertence aos demais. Seu lugar são os outros, os que se dispôs a retratar. Nele
impera a descrição porque não acredita de um todo na invenção ou a tem com um
tanto de facilitismo. A fidelidade para o que observa – ver Fotocópias – exige em seu caso uma simplicidade
e uma limpidez estilística, que se repete tanto na narrativa como na crítica como
algo inseparável da credibilidade da escrita. Tem o controle da linha de um
desenhista (cada vez mais seus livros foram incluindo seus próprios desenhos).
Tudo o que Berger conta é parte de um mesmo centro e de um mesmo olhar; nele
uma estilização equivaleria uma impostação. Sua descrição busca provar que o
poético pode ser objetivo: uma mulher em Lisboa “tinha a classe de quietude que
chama a atenção sobre si mesma”. Berger era o contrário do escritor que se não
escrevesse não prestaria atenção em nada.
John Berger. Foto: Jean Mohr |
De uma
grande precisão para o fugaz, seu trabalho remete sobretudo a uma palavra:
recém. Intriga-lhe o que faz bem a uma pessoa e como; deseja aproximar-se de uma
habilidade, um dom, num pintor ou num camponês. Uma celebridade (Cartier-
Bresson ou Miquel Barceló) se descreve no mesmo nível que um tratorista. Ao
menos se pressente que não diz algo de uma personagem para não o ferir (porque
o outro existe ou existiu, ou de qualquer maneira está próximo). Tenta adivinhar magias simples – poderes passageiros – em alguém ou atribuir
intenções aos animais e às coisas. (Um burro ou uma mula são para ele uma
garantia). Em algumas ocasiões isto o faz cair em falácias emotivas, mas Berger
conseguiu lhe dar um bom nome à candura. Este é o escritor que embora saiba que
redige uma frase ingênua não a apaga, porque é o que o aproxima daquilo no qual
acredita que o outro merece. É inevitável que com sua forma de juntar as
coisas, e sobretudo com sua maneira de interrogar-se, certas impressões – vejam
Bolsões de resistência – assumam o
tom de aforismos ou de sentenças. Esta senda o leva a ser muito explícito em
alguns pontos (o político) e meditativo reticente em outros.
Sua forma de
narrar é natural, orgânica, russa, poderia se dizer. (É longa sua história com
a Rússia: seu marxismo piedoso, seu amor por Platonov, uma companheira russa
durante 40 anos). Não é difícil adivinhar – em Uma vez in Europa, por exemplo – que antes de escrever Berger
preferia não saber que ia escrever. O tateio e os titubeios estão tanto na sua
ficção como em seus ensaios. Também com seus desenhos, nos quais deixa ver uma versão
anterior, outras camadas, o rascunhado. (Igual a Günter Grass que ao desenhar
tentava misturar saliva com tinta). Berger cede a uma lenta exploração do que
havia para consignar. Talvez por isso suas histórias cortejem a ideia de
destino, se aproximem tanto como podem do destino de uma figura. Às vezes alcança
realizá-lo numa imagem; Berger persegue imagens que amarrem o ponto do qual se
aproxima. Em Modos de ver demonstrou
que ser um narrador instintivo serve para interpretar – expandir – uma foto, um
quadro.
Isto parece
ser a chave-mestra de Berger: a alternância entre traços vacilantes e seguros. Um
ritmo não roteirizado, tal como o que usava quando conversava ou lia em público.
Em Aqui nos encontramos um amigo da Cracóvia
confessa que lhe ensinou a ler em voz alta graças à descoberta de um segredo:
nunca lia o final da oração e até não chegar aí não adiantava a visão. John Berger
nunca buscou adiantar-se – levar vantagem – com o olhar; sempre teve seus olhos
de nadador fixos no agora. E agora que colocou o último ponto no livro de sua
vida talvez conceda uma única confidência: o jogo de não se adiantar, de honrar
o tempo, lhe permitiu chegar aos 90 anos como um carvalho.
* Esta é a tradução livre de um texto publicado no jornal Clarín. As traduções dos títulos de obras são, em parte, também livres; outras, as mesmas já de conhecimento no Brasil.
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