Duas peças de Harold Pinter
Por Pedro Fernandes
Toda criação
artística resulta de uma obsessão do seu criador. No caso de Harold Pinter –
apesar de não nos encontrarmos diante de um criador de narrativas – sua
obsessão foi a linguagem. Essa preocupação não se é demonstrada a partir de um
exercício estilístico no que isso possa significar num trabalho com a gramática
de uma língua; essa preocupação se demonstra numa dimensão mais profunda porque
se relaciona com um interesse de esgarçar, a partir das condições comunicativas
mais triviais aquelas possibilidades que dizem ser a comunicação a mais
perfeita das criações.
Harold
Pinter parece zombar desse preceito ou tomar como tese a constatação de que o caos
é ordem da comunicação ao colocar em suspenso – seja pela repetição, pelo
artificio da dúvida ante o dito ou mesmo pelo questionamento direto sobre as
maneiras de dizer – a linguagem. Para isso, trabalha com as sentenças mais
objetivas possíveis, aquelas usuais e pragmáticas do nosso cotidiano no intuito
de expor diretamente como esse canal construído entre os falantes é, só
aparentemente, eficaz.
Entre o excesso
da fala, as contínuas pausas que se interpõem entre os diálogos ou a
variabilidade de tons – em alguns casos, vistos como desvios de tópico discursivo,
noutros, como uma ruptura com o ideal de coesão textual, produzindo no leitor a
necessidade de retorno ao lido no intuito de encontrar o subtendido – exibem-se
pela constatação de que o silêncio e aquilo que se omite sob o dito diz mais
que a fala. Desse modo, torna-se importante a maneira como as palavras são
transmitidas pelas personagens, o ritmo, a entonação e maneira como cada uma (e
o próprio dramaturgo através delas) joga com os sentidos.
Suas peças
são, assim, metadiálogos; apresentam através de uma conversa informal uma
perspectiva diferente de abordar a comunicação. Por que sempre buscamos a clareza
do dito mesmo quando esse dito se mostra de maneira tão objetiva que beira à
tautologia – como nos códigos jurídicos? Assim, para cada frase ou
interpretação o texto de Pinter introduz no leitor uma nova pergunta. As
situações comunicativas mais simples se desordenam, complexificam-se e conduzem-nos
para um autêntico caos, o epicentro de um torvelinho – aí onde se processa o
lugar da linguagem.
Vale recortar,
para efeito de justificativa a essas constatações e para o desenvolvimento da
compreensão sobre as duas peças aqui comentadas – “A festa de aniversário” e “O
monta-cargas”, na ocasião em que esses dois textos ganham tradução no Brasil.
Até então apenas “Volta ao lar” havia sido traduzida por aqui e o leitor não-fluente
em língua inglesa sempre precisou recorrer às traduções portuguesas reunidas pela Relógio D’água. A não-publicação dos textos de Pinter não
significa que suas peças nunca tenham sido encenadas nos palcos brasileiros:
Flavio Marinho, no texto que prefacia a edição ora publicada, apresenta algumas
dessas encenações de peças de Pinter no Brasil.
O diálogo a
seguir é de “O monta-cargas”, peça que se reveste de algumas características cênicas
também obsessões do dramaturgo: a economia do grupo de personagens, de cenário e
de texto. No caso dessa peça, por exemplo, o cenário é um quarto de porão em
Birmingham, com uma cama de cada lado com as cabeceiras encostadas para a
parede dos fundos, uma cadeira próxima à parede esquerda, uma porta desse lado
que dá para o banheiro e a cozinha e outra à direita; as ações transcorrem no
intervalo de uma noite de outono com dois pistoleiros – Ben e Gus. Este diálogo
transcorre depois que os dois recebem por debaixo da porta direita, de um desconhecido,
um envelope com uns doze palitos de fósforos (a imprecisão é outro termo característico
da obra de Pinter):
Gus: Bom,
vieram a calhar.
Ben: É.
Gus. Não é?
Ben: É, você
tá sempre precisando de fósforos, não é?
Gus: Sempre!
Ben: É,
vieram a calhar.
Gus: É.
Ben: Não é?
Gus: É. Vão
ser muito úteis. Muito úteis.
Ben: Muito
úteis, ahn?
Gus: É.
Ben: Por
quê?
Gus: Não
temos nenhum.
Ben: Bom,
agora temos, não temos?
Gus: Agora
posso acender a chaleira.
Ben: É, você
vive esmolando fósforos. Quantos tem aí?
Gus: Uns
doze.
Ben: Vê se
não perde. São do tipo que não precisa riscar na caixa pra acender.
Gus cutuca o ouvido com um fósforo.
(Batendo na mão de Gus.) Não desperdice!
Anda, vai e acende.
Gus: Anh?
Ben: Vai, acende.
Gus: Acende
o quê?
Ben: A chaleira.
Gus: O gás,
quer dizer.
Ben: Quem?
Gus: Você.
Ben: (Ele espreme os olhos). Como assim,
quero dizer o gás?
Gus: Bom, é
isso que quer dizer, não é? O gás.
Ben: (Com autoridade). Se digo vá e acenda a chaleira
quero dizer que é pra ir e acender a chaleira.
Gus: E é
possível acender a chaleira?
Ben: É um
modo de dizer! Acender a chaleira. É um modo de dizer!
Gus: Nunca
tinha ouvido.
Ben: Acenda
a chaleira! Tão comum!
Gus: Acho
que você está enganado.
Ben: (Ameaçador). Como assim?
Gus: O que
se diz é, põe a chaleira no fogo.
Ben: (Tenso). Quem diz?
Eles ficam se olhando, respirando fundo.
(De repente). Jamais, em toda minha
vida, ouvi alguém dizer, põe a chaleira no fogo.
Gus: Pois
minha mãe só falava assim.
Ben: Sua
mãe? Quando foi que a viu pela última vez?
Gus: Não
sei, deve ter...
Ben: Por que
está falando da sua mãe?
O excerto
apresentado é proposital. Nele, a discussão sobre o sentido de uma sentença domina
todo o diálogo além de encontrar esse debate de maneira indireta, proposto
apenas pela repetição de perguntas e respostas. Mas há situações em que o
leitor irá encontrar apenas a segunda possibilidade – como na abertura de cena
de “A festa de aniversário” – como se estivesse num exercício contínuo de lógica
em que os participantes do teste precisam encontrar adequadamente os encaixes
linguísticos.
Ao leitor
parecerá um eco zombeteiro sobre o que se pergunta e se responde, a fala gaga,
a linguagem mordida pela descontinuidade da voz do louco. Em todos os casos o efeito
é um só: o riso e o desconcerto ante o se lê visto está ante um diálogo que cisma
em romper com as regras da comunicação. Expõe dessa maneira a compreensão de
que essas regras são mutáveis e dificilmente conseguem cobrir na sua totalidade
a relação entre o enunciado e o realizado; verifica-se uma ausência da correlação
palavra-objeto, um debate tão antigo que remonta a antiguidade clássica – à discussão,
por exemplo, no Crátilo, de Platão.
Questiona-se
assim, além da função da comunicação, a variabilidade e muitas vezes a ineficiência
de suas regras, a natureza da fala, o que a fala quer dizer, qual relação há
entre o dito e as situações remetidas pelo dito, se a fala é um acordo, convenção
ou existe uma maneira natural e, logo correta, de dizer as coisas. Também está
em questão dizer que a linguagem é uma manta que acoberta o pensamento e não
sua tradução. Leia-se aqui o tom ambíguo com que se estrutura seus diálogos. No
diálogo exposto acima, por exemplo, o leitor constata que o dito só faz sentido
quando todas as peças que o compõem estão numa mesma sintonia: a diversidade de
conhecimentos transforma uma simples sentença num puzzle cujo ponto final só reside quando os dois falantes constroem
uma correlação de saberes. Harold Pinter constata que comunicar é um jogo em
que facilmente suas regras são capazes de ser desarrumadas.
Do impasse,
Pinter constrói outra estratégia esperada de um bom texto teatral – sustentar o
leitor em torno de uma curiosidade por saber o que poderá vir depois à medida
que as situações mais simples são prolongadas por uma sorte de condições – seja
as linguísticas mencionadas até aqui, seja o adiamento dos desfechos das
situações até o limite em que entra em cena algum elemento casual, quase sempre
outra personagem, capaz de instaurar todas as modificações possíveis sobre o desfecho
possível. Ao dizer isso, vale citar o enredo de Os oito odiados, de Quentin Tarantino: nesse filme, quase toda
narrativa se desenvolve no interior de uma venda e o elemento externo ou a
relação entre as personagens, elas e os objetos em cena, é o que produz a
ruptura com o impasse que se arma toda vez que se arma uma situação.
Parece dizer
que existir é mover-se no acaso e as duas peças “A festa de aniversário” e “O monta-cargas”
traduzem isso perfeitamente: basta lembrar que em ambas as situações as personagens
estão isoladas do mundo, capazes de suportar as circunstâncias e os comportamentos
já conhecidos entre elas, mas à mercê da ordem externa, que sempre se apresenta
como aos olhos dessas personagens com certo terror, suspeita e ameaça.
Não para
aí: Pinter conduz o leitor por uma denúncia mordaz sobre as relações de poder exercidas
não pelas forças externas mas nas microrrelações pessoais e internas. Tome
nota, o papel de Meg na primeira peça sempre, invisivelmente, sob os mandos do companheiro
Petey e do hóspede Stanley e na segunda peça o poder exercido por Ben sobre
Gus.
Para Pinter, vejam, o trabalho da arte é problematizar sua forma e não esquecer
que se integra a um arcabouço social mais complexo e sobre o qual não pode ficar
à mercê tampouco isolar-se nas próprias condições. Fundir essas duas dimensões tem
sido o mais frutífero caminho experimentado pela arte – e o trabalho de Harold
Pinter percebeu isso e à maneira fez-se original e indispensável para a dramaturgia
contemporânea.
Comentários