Baudelaire não soube ver

Por Antonio Muñoz Molina 

Baudelaire.

O olhar magnético de Charles Baudelaire de cada uma das fotos realizadas por seu amigo Nadar nos hipnotiza  É um olhar que perfura mas também foge, se perde na ausência ou no introspecção. É já o olhar de um homem enfermo, marcado pelos efeitos da sífilis que contraiu no início da adolescência; e o de um homem triste que se vê envelhecendo prematuramente sem encontrar uma posição sólida no mundo, sem lugar fixo, com incursões sempre desorganizadas e acanhadas, porque dependia de sua mãe e de um administrador aos quais tinha sempre precisava recorrer para ter algum dinheiro. Baudelaire detestava a fotografia, uma das tantas novidades da sociedade dominada pelo comércio e a tecnologia que o espantava, mas em todos os retratos dele mostra uma intuição poderoso dessa arte que para ele não era, um sentido de atitude e de presença muito adequados para o meio.

O olhar de Baudelaire é um dos primeiros olhares de escritor que conhecemos de verdade, como conhecemos os de muitos outros que também posaram para aquela máquina que os forçava a permanecer imóveis durante poses muito longas e despertava neles o medo primitivo de se lhe roubarem a alma. Parece que o primeiro retrato fotográfico de um escritor sobre o qual se tem notícia é o de Honoré de Balzac, realizado em 1842, apenas três anos depois que Louis Daguerre apresentou publicamente sua invenção. Na mesma década, fotografaram-se os dois mestres descobertos por Baudelaire e traduzidos por ele para o francês, por encontrar neles modelos de inspiração e almas gêmeas: Thomas de Quincey e Edgar Allan Poe.

De Quincey era um homem pequeno e velho quando foi realizada sua fotografia, encolhido como uma múmia ou uma estátua de cera, um sobrevivente de uma idade que logo havia estado muito distante, a do romantismo precoce, a idade anterior à das máquinas à vapor, à produção industrial e aos trens de ferro. Por isso sua foto irradia um peculiar anacronismo, como a foto impossível de alguém muito anterior à invenção do daguerreotipo, um daqueles retratos de fantasmas falsificados com tanto descaramento por alguns médiuns vitorianos.

Das várias fotos que se conservam de Poe, a mais reveladora é a última, que foi realizada em 1849, dois meses antes de sua morte. Tem o cabelo escasso, despenteado e sujo, um laço atado de qualquer maneira na gola da camisa, um olhar entre o pavor e a lástima de si mesmo; fixa-se no espectador com menos agudeza que Baudelaire e também se perde ora para fora ora para dentro de si, num momento de introspecção sombria facilitado pelo mesmo ato de posar: a imobilidade forçada, o olhar no olho da caixa de madeira coberta com um pano negro que já tinha algo de funerário em si mesma.

É em parte a fotografia o que faz eles nossos contemporâneos. E também é esse olhar visto com uma mistura de curiosidade assustada e pavor o nascimento de um mundo que já é o nosso: o do auge do capitalismo, o das grandes cidades, o dos jornais de difusão em massa, o da onipresença das imagens. Foi Baudelaire, discípulo de Poe e De Quincey, quem inventou a palavra modernidade e até mesmo sua ideia: o presente que há de ser observado e estudado no seu fluído imediatismo, em sua confusão e seu ruído, o que requer novas formas expressivas possíveis de representá-lo. 

Édouard Manet. "La musique aux Tuileries"


Até então, a literatura e a pintura haviam cultivado o heroísmo do antigo: foi Baudelaire quem formulou pela primeira vez uma forma de heroísmo que não estava no passado nem nos museus, mas na vida moderna, nos burgueses de trajes negros e guarda-chuva e nos modelos disfarçados de guerreiros romanos. Foi ele quem propôs a dignidade e a importância do estudo da moda como fato estético e quem criou o retrato provavelmente mais poderoso que nunca se escreveu sobre um artista submerso em seu tempo: O pintor da vida moderna, publicado em três matérias no Le Figaro em 1863. Eram necessários uma nova arte, uma nova escrita e um novo meio: não devemos esquecer-se que Baudelaire, novamente como De Quincey e Poe, foi sobretudo um escritor para o jornal.

O pintor da vida moderna a quem Baudelaire dedicou suas melhores páginas em prosa, o que lhe parecia visionariamente capaz de contemplar com olhar e gesto de pintor o que ninguém havia conseguido ver, era Constantin Guys, um ilustrador de segunda fila que havia trabalhado para jornais ingleses e que ao instalar-se em Paris em 1860 se especializou em cenas da vida cotidiana, das ruas ou dos cabarés, com desenhos singulares mas bastante suaves.

Agora nos perguntamos que viu Baudelaire num artista digno mas irrelevante como Costantin Guys. O mais difícil todavia é pensar que teve diante de seus olhos e não viu um pintor que possuía esse olhar que nos estremece por sua inflexível agudeza. Havia em Paris, nesse momento, um pintor da vida moderna: era Édouard Manet. Amigo seu e por quem professou uma admiração de irmão mais velho. Sua “La musique aux Tuileries” parece uma ilustração exata do ideal estético de Baudelaire, que aparece retratado entre a multidão urbana do quadro. Seu “Olympia” tem o descaramento sexual e a capacidade de escândalo dos poemas de As flores do mal. Mas quando Manet foi atacado por esse quadro, mais furiosamente que os ataques dirigidos a Baudelaire alguns anos antes por seus poemas, o amigo se absteve de sair em sua defesa. Baudelaire, que tanto escreveu sobre arte, não dedicou nenhuma página à pintura de Manet. Não viu ou não quis ver. Nessa miopia, voluntária ou não, há uma lição para os que aspiramos olhar com olhos abertos o mundo de agora mesmo. 

* Este texto é uma tradução livre de "No haber sabido mirar", publicado no jornal El País.

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