A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares
Por Pedro Fernandes
“A
verdadeira vida está em outra parte”. A frase, se não com essas letras mas com
esse sentido – de que a vida que vivemos é um simulacro ou cópia de outra que
se passa noutro plano – é do poeta francês Arthur Rimbaud. Ela é um eco das
reflexões de Platão que diferenciam o mundo real e o mundo das ideias, repetida
mais uma vez na célebre parábola da caverna. É esse imaginário que encontra
reverberação profunda na cultura ocidental cristã através da ideia de vida
eterna e depois, com as criações tecnológicas que primeiro buscaram romper com
as ausências de sentidos sobre o outro e já agora projetam a construção de conglomerados
virtuais onde se é possível forjar outras realidades possíveis num exercício
muitas vezes de sobreposição ao que se tem como verdade palpável.
Pois bem, se
todo esforço humano esteve canalizado em pensar e agora forjar essa realidade
fora do comum, numa era de simulacros como a que vivemos, A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, encontra ainda mais coerência
que quando foi publicado – o texto é de 1940. Esta relação de quase-total
aderência ao nosso contexto não apenas renova sua importância entre as obras
inovadoras; esclarece como os conceitos são mutáveis ao longo da história.
Usualmente, esta foi uma obra assinalada entre as produções literárias de cunho
fantástico e de ficção científica e agora pela correlação de situações evocadas com a realidade de
fora da narrativa já terá essa condição alterada para que situemos, claro sem desprezar o período de sua composição, entre as cunho realista, o que, por sua
vez, atualiza também a ideia que se concebeu sobre o termo realismo,
partilhando, evidentemente da noção não de período literário mas do advogado
por Auerbach na arqueologia que faz do ideal mimético – outro conceito cuja
base tem suas raízes nessa correlação de universos – um princípio de
organização do narrado.
A invenção de Morel ensaia ainda fundir
a narrativa de cariz policial com a psicológica – claro, Bioy habita um período
fruto de uma geração literária profundamente afetada pela escrita de Em busca do tempo perdido, de Marcel
Proust, pelos romances de Virginia Woolf, William Faulkner e outras narrativas
que subverteram profundamente a necessidade de organização lógica e usual da
história. A tarefa de fundir um tipo de narrativa em que cada elemento precisa
encontrar sua condição ideal de sentido – como é a policial – e outra cujo
efeito é justamente o contrário, o de ludibriar o leitor pela confusão dos sentidos,
se a princípio pode parecer inusual ou mesmo inalcançável, vê-se, foi uma das
mais inovadoras para essa obra.
Mas, o que
tem de fantástico, policial e psicológico em A invenção de Morel? E de ficção científica? O fantástico se manifesta quando, por mais que
o narrador se esforce no trabalho de provar ao narratário que o que narra é uma
verdade – questionável até, mas irrevogável – tudo, aos sentidos do narrador encontra-se
envolvido numa atmosfera em suspensão, povoada de elucubrações poéticas:
“Disponho de um dado que pode servir para que os leitores deste diário saibam a
data da segunda aparição dos intrusos: as duas luas e os dois sóis foram
visíveis no dia seguinte. Poderia tratar-se de uma aparição local; acho mais
provável, porém que seja um fenômeno de miragem, feito de lua e sol, mar e ar,
visível, certamente de Rabaul e de toda a região. Tenho notado que nesse
segundo sol – talvez imagem de outro – é muito mais violento. Parece-me que
entre anteontem e ontem houve um aumento infernal da temperatura. É como se o
novo sol tivesse trazido um verão extremo à primavera. As noites são muito claras:
há uma espécie de reflexo polar vagando no ar. Mas imagino que as duas luas e os
dois sóis não sejam de grande interesse; devem ter chegado a todo lugar, pelo céu
ou por informações mais doutas e completas”.
Na composição
de Bioy Casares, no intuito de integrar sua obra entre aquelas de protocolos
realistas, retoma outra atitude escritural presente nas narrativas do tipo: a
presença de um narrador que, qual um historiador interessado na limpidez dos
fatos, se preocupa em repassar o documentado usando apenas inserções que visam corroborá-lo.
Apesar de, nesse caso, não encontrarmo-nos diante de alguém que encontrou ou recebeu
um antigo manuscrito, mas a presença dessa figura se manifesta nas notas de
rodapé que visam cumprir com o papel deste gênero textual – explicar o que o
texto não pode explicar no interior de seu fluxo. Aqui, as notas respondem pelo
trabalho de não interferência nos escritos agora revelados.
A invenção de Morel é composta como se um
diário; escrito por alguém que, aparentemente cansado do lugar-comum no mundo
decide seguir os conselhos de um negociante italiano de tapetes em Calcutá de
ir para uma ilha deserta famosa pela lenda de não escapar ninguém dos que a ela conseguiram
chegar. Transbordando honestidade – porque desde logo sabemos que esse narrador
cansado do lugar-comum no mundo não é apenas mais um movido pelo interesse de
fuga para uma ilha onde possa se ver livre da existência mesquinha e dos outros
que lhe cercam mas um fugitivo acusado de cometer um crime que não cometeu –
eis o caráter de depoimento que reveste a estrutura narrativa desse diário. E
está aqui o tom policialesco construído pelo escritor argentino: desde que chega
a ilha, esse sobrevivente vive na surdina, principalmente porque descobre não
está numa ilha totalmente deserta como foi-lhe informado. Há uma presença contínua
de intrusos que, vez ou outra irrompem, em atitudes e vozes que o leitor só descobrirá
a possibilidade de não está ante projeções psíquicas quando descobre quem é
Morel e qual sua invenção.
E é nesta o casião que se explica a presença da forma ficção científica: tudo nesta é ilha é produto de um projeto mirabolante de criação cujo intuito é a reduplicação da realidade e logo uma forja da eternidade. O narrador se preocupa em detalhar o funcionamento desse estratagema; o projeto, seus elementos, sua composição e como se constitui o campo de simulacros e surrealidade onde se vê metido este narrador desde quando aporta na ilha e vê-se envolvido nos mistérios aí encontrados.
Nunca seria
honesto num comentário como este revelar o imbróglio narrativo, mas o leitor
deve atentar para a possibilidade de que o narrado não deixe de ser sargaços de
invenções psíquicas. Principalmente se lembrarmos que este texto de Bioy Casares
homenageia abertamente A ilha do Dr.
Moreau, de H. G. Wells, obra cujo enredo apresenta um médico cientista obcecado
pela ideia de transformar animais em homens através de cirurgias e hipnose e acusado
de construir criaturas monstruosas numa ilha tropical, para onde vai viver.
Desinteressado pelo debate produzido por Wells com a obra de 1896, o escritor
argentino transfere parte da ideia de forja da criação no exercício de criação
psíquica e metaliterária. Confirma-se a metáfora proposta pelo amigo de Bioy,
Jorge Luis Borges, para quem A invenção
de Morel se constrói pela deriva de labirintos dentro de um labirinto. É nesse ínterim, que encontramos as
incursões de cariz psicológico nessa narrativa.
A maestria
de A invenção de Morel está na capacidade
com que o seu autor gerencia a diversidade de situações e encontra uma afinação
entre narrativas de forças distintas. Não fosse isso e um trabalho dessa
natureza ruiria com o próprio peso. Mas, Bioy está tomado pela força entre peso e leveza (pensando nos princípios da criação propostos em Italo Calvino) e o que constrói é um texto cuja força se mostra mais vital à medida que os tempos se transformam. A narrativa revela-se um objeto de múltiplas faces, caleidoscópica qual os jogos de espelhos do projeto de redistribuição das imagens da realidade. Difícil é o leitor não se deixar enredar nesses labirintos que fundem criação e imaginação como atitudes fundamentais à literatura.
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