Voltar para casa, de Toni Morrison


Por Pedro Fernandes



Está na transformação entre a ideia de cópia como uma reprodução e cópia como criação, isto é, na revisão de um dos conceitos mais caros ao estudo da narrativa nascido na Poética de Aristóteles, a compreensão de que o narrado é também a história possível ou a construída através das impressões da memória imaginativa e não meramente reafirmação no interior do narrado daquilo que se passa na realidade externa da narração um dos feitos mais importantes na arte de contar histórias.

Mesmo correndo o risco de dizer alguma inverdade sobre o tema, porque esta é uma visão construída pela leitura de obras da literatura contemporânea, a ideia de narrativa enquanto possibilidade é uma tendência que melhor tem servido aos escritores atualmente e que melhor comprovam essa variação do conceito aristotélico. Também Toni Morrison não deixou de contribuir para essa constatação. Voltar para casa, o romance mais recente da escritora Prêmio Nobel de Literatura, é prova disso. Nada do que é narrado aí se configura – e falo sobre o interior do romance – se configura numa verdade no sentido desde há muito questionado. O leitor está ante uma narrativa do possível. Toda a experiência narrada é ora produto da memória confusa e perturbada de um retornado da guerra que é filtrada por uma segunda consciência – a que efetivamente escreve os fatos relatados.

Frank Money é a personagem protagonista da história em questão, o retornado que, sobrevivente aos horrores da guerra e fora dela, decide contar sua história para alguém disposto a registrá-la. É como se estivéssemos diante de um Ulisses, sabedor de que seus feitos não interessassem a ninguém, buscasse alguém que pudesse tomar registro sobre sua trajetória de retorno ao lar depois dos longos anos de peregrinação entre Troia e Ítaca. Como uma figura participante do registro escritural, ele opina, não com reiterada frequência, sobre o conteúdo que se forma a partir de seu relato. Essa sutil interferência, aliás, é um elemento primordial para o romance que bem poderíamos incluir no rol das sagas de herói.

Tudo no romance é narrado com sutilidade, o que demanda do leitor um trabalho contínuo de atenção, reflexão e logo participação na construção da narrativa, optando entre o acontecido e o possível, no constante exercício de cerzido entre construir e desconstruir impressões. Por exemplo, em Voltar para casa, Toni Morrison não se descuida de um dos temas que tornou sua obra conhecida e reconhecida entre leitores do mundo inteiro, o da perseguição dos brancos aos negros nos Estados Unidos, sobretudo no seu auge, nos anos de segregação racial, mas a situação é colocada ao longo deste itinerário de Frank de maneira reiterada mas nem sempre explícita ou corriqueira. E não há qualquer tomada de opinião no sentido de defesa de um grupo, nem de um ponto de vista. Embora a narrativa evidencie uma definição sobre um universo de interesse, as situações evocadas não estão dispostas à maneira de justificar um lugar discursivo de quem narra; isso não invalida evidentemente que exista aí uma tomada de posição que se deixará marcar pela maneira como são construídas as situações. Isto é, o que se evidencia é a necessidade de convencer o leitor pela experiência e não pela opinião sobre ela.

Voltemos à sutilidade exercitada na construção desta narrativa. À abertura da narrativa encontramos com uma situação vivida entre a personagem principal e sua irmã Ycidra, quando os dois presenciam o sepultamento de maneira qualquer de um negro: “Engatinhando pela grama, procurando o buraco cavado, evitando a fila de caminhões estacionados adiante, a gente se perdeu. Mesmo demorando uma eternidade pra ver de novo a cerca, nenhum de nós dois entrou em pânico quando ouviu vozes, aflitas, mas falando baixo. Agarrei o braço dela e pus um dedo nos meus lábios. Sem erguer a cabeça, só espiando pela grama, nós vimos eles puxarem um corpo de um carrinho de mão e jogar dentro de um buraco que já estava esperando. Um pé ficou espetado pra fora na beirada e tremeu, como se conseguisse sair, como se um pequeno esforço pudesse escapar da terra que jogavam por cima. Não dava pra ver a cara dos homens que enterravam o corpo, só as calças: mas a gente viu a ponta de uma pá empurrar pra baixo o pé que tremia pra se juntar com o resto. Quando ela viu aquele pé preto com a sola clara e rosada riscada de lama empurrado pra dentro do túmulo, o corpo dela inteiro começou a tremer”. Ao lado desse acontecimento uma série diversa de gestos se repetirá com o intuito de avivar o tema denunciado: a repressão aos negros e assinalar o contexto social e histórico recuperado pela narrativa: os dos anos 1950, só determinado pela inferência do leitor a partir da situação evocada, pela presença de Frank Money, sempre apresentado como dispensado da Guerra na Coreia, depois recolhido num manicômio pela polícia por vagar nas ruas e já em fuga no retorno à cidade onde nasceu, Lotus.

Também este trânsito entre o norte e o sul dos Estados Unidos colaboram na construção sobre o exercício de como a segregação estava compreendida no país então. Lotus é uma comunidade de negros na Georgia. A viagem de retorno de Frank funciona, assim, como uma maneira de expor os disparates sociais e não só entre brancos e negros, mas entre pobres e ricos, homens e mulheres. Isto é, a Odisseia desse anti-heroi (já que Frank está há muito distante do homem-herói idealizado na epopeia clássica e o leitor precisará descobri-lo para saber disso) transcorre num mundo em desencanto, destituído de deuses e entregue à justiça opressiva do homem quem, figura cindida, não dispõe em seu socorro de ninguém que ele próprio.

Mas, nem tudo em Voltar para casa é dor, danação e morte; Toni Morrison parece depositar um pequeno fio se não capaz da redenção do homem ou sua salvação pelo menos a saída para um oásis como se concordasse que, na atual conjuntura, toda a expectativa de que a existência possa alguma vez ser de plenitude – ou o feliz para sempre do conto de fada, nascido certamente, do ideal heroico da epopeia em que o herói finda seu percurso de luta com mais vigor do que quando saiu para a aventura – mas algum instante de alívio. É o homem expulso do paraíso, condenado a enfrentar seus próprios símiles e fantasmas o que se repete em Voltar para casa.

Por falar nisso, daquele episódio que dá pulso à narrativa, se desprenderá uma imagem que acompanhará de parte a parte Frank na trajetória desde a guerra: uma imagem que pode ser sua consciência, ato de transmutação do eu que precisa do outro para primeiro compreender-se como eu, muito embora, claro esteja, que este elemento de caráter fantástico atua na narrativa como uma apropriação da escritora das várias histórias da crença popular afro-americana. Corrobora com isso o desfecho da narrativa e todo simbolismo aí envolvido, o desfazimento dessa imagem, e, claro, as várias histórias ouvidas por Frank numa das paradas no caminho para Lotus.



Este retornado faz sua viagem não de grandes feitos, mas das alegrias e mais das dores da sua família; é quando o leitor tem contato com aquilo que se desenvolve antes da estadia de Frank em Iowa, da chegada ao manicômio, antes da ida à guerra, antes do seu nascimento. É quando irrompe, do contato com o seu núcleo familiar – a Ítaca do anti-herói sem Penélope à espera – a trajetória da irmã, a parte fêmea, por assim dizer, de uma história sempre apresentada com um homem na proa dos acontecimentos.

A inserção de uma odisseia feminina permite à narrativa compreender que para as mulheres a travessia é ainda mais penosa porque esta pertence a ordem oprimida pelo homem, é a que não faz parte da coletividade porque é sedimento de todos os ressentimentos do herói caído do paraíso. O apequenamento da mulher, a intromissão do machismo nas condições de ser das próprias mulheres que renegam sua condição em nome do ideal opressor, a criação presa aos mandos, as implicâncias de domínio do homem contra a mulher, sua dolorosa constituição política e socioeconômica, são algumas das situações evocadas no drama vivido por Ycidra, quem alheada pela perda da família e do irmão por quem nutre (ambos) um sentimento dúbio de amor fraterno e erotismo, compõem a face oculta sem os atenuantes do contado pela voz masculina, uma vez que quem ordena o narrado não é um homem mas uma mulher: “Você está absolutamente errada se acha que eu só estava a fim de uma casa com uma tigela de sexo” – diz Frank numa das intervenções que apontam para ideia de que há uma outra figura que transcreve as situações relatadas pela irmão. A fala vem numa ocasião quando o leitor descobre em Frank todas as características do macho bonachão e dominador, o que vive às custas do esforço e dos sonhos da mulher.

Reafirma-se, logo, a compreensão sobre sua condição de, por oposição ao herói idealizado da epopeia, do anti-herói – o tipo segregado, do qual não sobra nenhuma piedade da narradora. Um destronamento do macho do lugar de dono inquestionável da verdade e, logo, da realidade? Sim. Toni Morrison busca romper com a ideia do ponto de vista de sentido unilateral, da verdade inquestionável para dar pulso a uma narrativa mantida pelo plurissentido e questionamento do que nos é vendido como puro acontecimento. Aqui está também outro caminho sobre a ruína do ideal mimético de que o ficcionado é a pura imagem do acontecido e também a reafirmação de que toda história é assinada por um ponto de vista que varia de acordo com os interesses de quem narra e, por vezes, como é o caso aqui, de quem é narrado.

Na mesma proporção que o futuro reserva alguma possibilidade a Frank, também Ci terá para si – numa total revisão de sua condição de oprimida – outra vida. Quando disse sobre impossibilidade de redenção para o homem em Voltar para casa pensava no ideal comum desse termo, aquele dotado de uma sorte de desgastes pelo uso corriqueiro impulsionado pelo cristianismo, o de salvação eterna. E não é esse o sentido utilizado neste romance. 

Ao recuperar uma sorte diversa de arquétipos – dentre eles o tema do retorno ao lar – Toni Morrison elabora a compreensão a partir do homem sozinho no mundo de que a responsabilidade sobre a existência e seus rumos decorrem unicamente das escolhas individuais. “Olhe para você. Você é livre. Nada nem ninguém é obrigado a te salvar, só você mesma. Plante a sua própria terra. Você é moça e mulher e as duas coisas têm sérias limitações, mas você é uma pessoa também. Não deixe a Lenore ou um namoradinho qualquer e com toda certeza nenhum médico do mal resolver quem você é. Isso é escravidão. Em algum lugar aí dentro de você está essa pessoa livre de que eu estou falando. Encontre-a e deixe que ela faça algum bem neste mundo”, recomendam a Ci no retorno a Lotus. 

Na aposta da redenção, Voltar para casa volta a um princípio necessário e sempre raro entre nós: o amor. É este o que salva Frank da total loucura e o mantém vivo no retorno ao lar; é este o que salva a irmã e restitui-lhe a dignidade. É este capaz de nos colocar o mais próximo possível das delícias do Éden perdido. 

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