Um poeta de grande futuro
Por Gonzalo Aguiar
Chegou o século
XXI e algo foi se fazendo evidente no mundo da poesia: Augusto de Campos não é
apenas um dos poetas mais significativos do século que passou mas continua
sendo, na atualidade, um dos mais instigantes e estimulantes inventores da cena
contemporânea. Frequentemente o apresentam como “o poeta concreto” mas na
verdade em sua trajetória de mais de sessenta anos (seu primeiro livro, O rei menos o reino é de 1951), o concretismo
– movimento de vanguarda que começou na arte brasileira na década de cinquenta –
só abarca cinco anos. É como dizer “o pintor cubista Picasso” ou “o crítico
estruturalista Roland Barthes”: só uma parte de sua obra pertence estritamente
ao concretismo.
É bem
verdade que Augusto de Campos seguiu sempre fiel à poesia visual (uma poesia
próxima ao concretismo já que trabalha com o espaço, as tipografias e a
disposição das palavras), sua poesia tem uma potência sonora única, a ponto de Caetano
Veloso, Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto interpretarem ou musicarem seus
poemas.
Isto é, sua
intensidade lírica (ou antilírica) tornou-se frequentemente opaca pelo impacto
visual de suas composições. A passagem do tempo também serviu para isso: poucos
poetas conseguiram plasmar a angústia e os afetos de nossas vidas caracterizadas
pela tensão entre os mídia e a expressão da intimidade. Seus poemas são como
máquinas sensoriais em que alguém pode mergulhar para se deslocar num espaço
em que cada signo tem peso, cor, forma e altera nossa sensibilidade e entendimento.
A grandeza
da obra de Augusto de Campos há muito é reconhecida: João Cabral de Melo Neto o
considerou seu herdeiro e Caetano Veloso afirmou que é o maior poeta vivo em
língua portuguesa. Seus textos alcançaram popularidade em canções, historietas
e seus poemas têm sido estampados nas muitas bandeiras das manifestações que correm
o Brasil depois do Golpe de 2016. Merecidamente o reconhecimento começa a se dar
também em outros países: exposições em Amsterdã e Buenos Aires (sua obra foi
exibida em Proa e na galeria Document Art), shows no MoMa de Nova York e em
2015 veio o Prêmio Ibero-americano de Poesia Pablo Neruda entregue pelo Conselho
Nacional de Cultura e Artes do Chile. Em edições anteriores, o galardão foi
para nomes importantíssimos da literatura latino-americana como José Emilio Pacheco,
Juan Gelman e Nicanor Parra, entre outros. Augusto de Campos foi o primeiro
brasileiro a recebê-lo.
Mas por qual
razão Augusto de Campos é o poeta do século XX e se projeta para o novo século?
Muito já se escreveu sobre sua habilidade técnica, a inovação nos procedimentos
de criação e seu estilo objetivo e impactante. Ainda é possível acrescentar,
dentre a variedade de elementos definidores de seu trabalho, outros três aspectos
que o colocam no centro da produção literária contemporânea. Sua poesia sonora
e visual trabalha com formatos diversos e isso permite que seja transposta para
exibição em instalações, shows multimídia (desenvolvidos juntamente com seu
filho, o músico Cid Campos) e vídeo. Mais que transformar-se, desde o início, Augusto trabalhou num campo experimental onde os signos estão muito além das classificações
convencionais e não se limitam a territórios fechados previamente. Augusto de Campos
é um poeta da metamorfose do signo.
Outro aspecto
que adquiriu um novo sentido nos últimos anos é seu trabalho com a memória
literária de seu país. Marca da arte contemporânea, desde há cinquenta anos que
poeta-pesquisador tem mergulhado nos arquivos para extrair autênticas pérolas:
o poeta do século dezenove Sousândrade, tão audaz que compôs um poema sobre a
Bolsa de Valores de Nova York como se fosse o inferno de Dante. Também voltou a
colocar em circulação os textos de Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu,
musa das vanguardas e militante comunista revolucionária que foi perseguida
pela ditadura de Getúlio Vargas.
Nesse
ínterim, a lista seria quase infinita e precisaríamos de acrescentar seus mais
de vinte livros traduzidos, entre os quais se destacam os poetas provençais que
Augusto de Campos estudou como se fosse um scholar
e que traduziu para o português seguindo os princípios da tradução de Ezra
Pound. Este trabalho, por exemplo, ganhou vida pela voz de Adriana Calcanhotto e
Cid Campos que interpretaram os poemas o que mostra como as pesquisas do poeta inspiram
os músicos populares.
Finalmente, não
é possível deixar de lado a força expressiva e afetiva de sua obra. Embora o concretismo
tenha fragmentado o sujeito lírico e definido o poeta como um expoeta, foi essa aparente frialdade o
que deu mais força às suas percepções das sensibilidades e dos sentidos. Em
“A canção noturna da baleia”, os artistas da vanguarda russa Malevich e Rodchenko
são convocados para a construção de um novo sublime: o branco que evoca um gozo
extático que aqui é o da própria baleia a ponto de ser assassinada. “a brancura
do branco / a negrura do negro / ródtchenko maliévitch / o mar esquece / jonas
me conhece / só ahab não soube / a noite que coube / alvorece / call me moby” (Despoesia, 1994).
Enquanto
Jonas (o profeta bíblico) conhece a sacralidade do animal, Ahab (o protagonista
de Moby Dick) aparece como predador
moderno. Augusto de Campos fecha o poema assumindo o canto da baleia e diz “call
me moby” em referência à primeira frase do romance de Melville: “call me,
Ishmael”. Os “m” que se repetem ao longo do poema são como os rastros dessa
baleia que se perde no oceano, são como a onda impossível de esquecermos
ou não podemos perceber: a aventura da baleia.
Por
inventividades como estas – e são muitas – o poeta do século XX será lido no século
XXI.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma versão livre de "Un poeta del lago porvenir" publicado no El clarín.
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