Roberto Bolaño, o imortal
Por Karina Sainz Borgo
Quando
Roberto Bolaño visitou Nicanor Parra em sua casa de Las Cruces, em 1998, as
primeiras palavras que o poeta lhe dirigiu foram em língua inglesa. Era as
boas-vindas com que os camponeses da Dinamarca recebem o príncipe Hamlet. Neste
dia, Nicanor Parra e Roberto Bolaño falaram sobre a velhice; sobre fantasmas e
a loucura de Shakespeare; sobre acidentes automobilísticos; sobre Nova York e
os amigos mortos; sobre os poetas e a nova narrativa chilena; sobre o México;
sobre os Mapuche; de Pinochet.
Num momento
da visita, Parra levou Bolaño até o terraço de onde se via o mar e, do outro
lado da baía, um bosque: “Vê esse bosque?” – perguntou Parra. “Sim, vejo”.
“Qual bosque vê, o que está acima ou o que está abaixo, o da direita ou o da
esquerda?” Bolaño não via nada especial, exceto algo parecido a uma paisagem
lunar. Depois de 25 anos de exílio, até o tronco das árvores chilenas deviam
parecer irreconhecíveis. Nicanor Parra insistiu. Sugeriu-lhe que olhasse o
bosque da esquerda. “Vê?” – perguntou. Bolaño viu algo que parecia uma picada,
uma estrada ou uma saída do local e, mais acima, um bosque. Parra pediu que
olhasse de novo a clareira no meio das árvores, um pouco mais acima. “É o
túmulo de Vicente Huidobro”. Dito isso, Nicanor Parra deu a volta e retornou
para a sala.
Bolaño ficou ainda um tempo no terraço daquela casa situada no alto de uma colina. Permaneceu contemplando
essa mancha branca e diminuta sobre o que poderiam ser os ossos de Vicente
Huidobro. “Um túmulo tão visível como Huidobro, ele teria gostado”, escreveu o chileno
sobre uma tumba que lhe pareceu tão insignificante como seu dono. Roberto
Bolaño morreu seis anos depois daquela visita. Metáfora rara e retorcida para o
encontro de dois escritores que marcariam um antes e um depois na literatura de
seu país e do resto do mundo de língua espanhola.
Como aquela
no jardim do (anti) poeta que Bolaño mais admirou – Parra também, certamente –,
ao redor de Bolaño se levanta uma nevasca que encobre toda poeira. Tudo fica
invisível. Uma intempérie demasiado adversa para passar despercebida, como a
tumba de Huidobro. Imediatamente depois de sua morte, começaram a aparecer
inéditos e amigos de toda a parte. A maioria queria mostrar o retrato de
família de um autor que deixou de ser um escritor de culto para uma voz criativa
e fundadora. Alguém que começou com nada e se despediu do mundo com a única coisa
a que foi sujeitado nesses anos todos: seu empenho em escrever, seu talento e a
rede dos primeiros afetos.
Diferente de
há alguns anos, hoje já não são tantos os que falam. Os desencontros entre
herdeiros, amigos e editores têm feito cada vez mais complexa a organização das
obras de Bolaño e, o que é pior, colocam na ordem do dia a pauta sobre trazer ou não a luz textos sobre os quais o próprio escritor não deixou instrução
alguma de publicação além de uma incipiente corrente de saciedade ao redor de
sua figura. É nesse contexto que se publica O
espírito da ficção científica, um romance até então inédito que Bolaño escreveu
em Blanes no final dos anos oitenta e que agora é publicado no âmbito do
universo de língua espanhola como parte da reedição de toda sua obra que deixou
de pertencer a editora de sempre, a Anagrama, para ser da Alfaguara*.
No momento
de falar sobre Bolaño, muitas vozes desapareceram. O que se forma é uma clareira no
bosque de sua obra. Sobre a história deste inédito todos parecem haver perdido
a fala: sua companheira, seus amigos, seus editores. Prendem-se a Roberto
Bolaño; por escrito. Cartas e mais cartas. Coisas que podem provar em caso de
mal-entendidos. Tantos anos depois de sua morte, a obra do escritor chileno parece um
povoado fantasma, um lugar habitado por versões desbotadas das pessoas que o
quiseram e as que ele quis como amigo. Custa falar sobre Bolaño e quem esteve
próximo dele desejam fazê-lo; parte, talvez, para atiçar ainda mais lenha à fogueira. Estas coisas
acontecem com os santos laicos – e Bolaño tornou-se um deles; permanecem só
presos na magnitude de seus milagres. O melhor que pode atribuir-se a Bolaño é
a dimensão de sua caixa de manuscritos por publicar, alguém que parece ter mais
inéditos que Fernando Pessoa.
Quantos
livros foram publicados desde a morte de Roberto Bolaño? Existem realmente os
quinze livros póstumos sobre os quais se especula? As respostas, dependendo de
quem receba a pergunta, passam das evasivas às sem nada a dizer. No caso de O espírito da ficção científica as
linhas vazias – como a pequena clareira de Huidobro – servem para estampar,
reiteradas vezes, no mesmo muro a mesma inscrição: muito distante do verdadeiramente importante.
Sobre Bolaño se escreveu de tudo, disse-se de tudo e, principalmente, ninguém
quer tocá-lo: ou vai estourar um novo episódio de agravo entre quem se encarregou
de estudar sua obra e divulgá-la e aqueles que a administram e preservam.
Porque nesta história, a deste manuscrito, há agravos. E mesmo não sendo uma
razão literária, pesa. Como uma louça.
Roberto Bolaño. Foto: Revista Paula/ Pin campaña. |
Na
introdução da edição espanhola, o crítico e escritor Christopher Domínguez Michael
refere-se a O espírito da ficção
científica como um romance da juventude. Não possui a musculatura que cobriria
a obra de Roberto Bolaño posteriormente, embora, sem dúvidas, contém as marcas do contador
de histórias que o incipiente escritor já era. Construída através de capítulos alternados, o
romance narra duas histórias: uma principal que decorre em torno das peripécias
de Jan Schrella e Remo Morán, dois poetas de 17 anos que vivem na Cidade do
México do final da década de setenta e que Bolaño autorretrata os anos de sua
juventude naquela cidade – a intensa atividade nos cursos de escrita literária,
que ganham um papel central nestas páginas e que Bolaño aprofundará em Os detetives selvagens, o romance com o
qual ganhou o Prêmio Rómulo Gallegos em 1998 e com que este novo manuscrito
supõe uma relação mais direta e próxima.
Simultaneamente,
Bolaño constrói uma segunda trama em torno de um manuscrito e um escritor cuja
identidade o leitor precisará descobrir seguindo a pista das cenas pontuadas
pela transcrição de uma entrevista para um jornal. A fórmula do edifício
Bolaño, em estado puro. O primeiro mapa de uma longa viagem. Um livro escrito
por um Roberto Bolaño de 27 anos que já leva dentro de si o homem que seria aos
50. Um escritor que estava muito distante de imaginar o sucesso que obteria
depois de sua morte e que não parou de semear as árvores do enorme bosque em
que sua obra se converteria.
***
Em O espírito da ficção científica estão as
marcas que atravessarão toda a bibliografia de Bolaño. Se alguém é capaz de
identificar muitos desses elementos é o chileno Bruno Montané, um de seus
amigos mais próximos. Em sua casa de DF foi fundado em 1975 o movimento de
renovação poética que ficou conhecido como Infrarrealismo, um grupo do qual
Roberto Bolaño foi o principal propulsor, “uma espécie de dadá a mexicana”, juntamente com Mario Santiago Papasquiaro, José
Vicente Anaya, Rubén Medina e José Rosas Ribeyro. Inscrito à sua maneira na
tradição da ruptura como disse Octavio Paz – o que os novíssimos escritores
detestavam – o movimento pretendia “estourar o lugar desses da cultura oficial”
e dinamitar as grandes verdades literárias. É deste período que Bruno Montané e
Bolaño se conhecem e os dois mantiveram uma relação de amizade que acompanhou
em quase todos os destinos: Chile, México e Espanha. Tempo suficiente,
portanto, para dizer que Montané seja capaz de tratar sobre alguns assuntos. Como
O espírito da ficção científica texto sobre o qual tinha notícia desde 1985 mas não havia lido até agora.
Nestas
páginas, segundo as indicações de Montané, aparecem muitas das personagens de Os detetives selvagens: não só a versão
inicial de Arturo Belano e Ulisses Lima, também a escritora uruguaia Auxilio Lacouture,
a narradora de Amuleto, um romance
ambientado no México de Díaz Ordaz e os dias anteriores à matança de Tlatelolco,
além de alguns textos como Manifesto Mexicano
que já aparece em A universidade desconhecida,
o sexto e último livro de poemas de Bolaño publicado postumamente, em 2007, e
que muitos consideram uma espécie de autobiografia. Dos 21 títulos que integram
sua obra, entre poemas, contos, romances ou ensaios, e quase sempre através de
alter egos, Bolaño construiu um retrato de si próprio, assim como uma enorme e
fantasmagórica árvore genealógica antecipada em O espírito da ficção científica. Porque em Bolaño vida e obra são a
mesma coisa: o bosque e a clareira.
A verdadeira
data deste manuscrito está em seu interior. A primeira grande trama de O espírito da ficção científica é
narrada em primeira pessoa por Remo, o jovem e reservado poeta de origem chilena
que compartilha com Jan a iniciação literária. Valendo-se da voz de Remo, intercalada
com a prosa obsessiva e repetitiva das cartas de Jan – um jovem que quase nunca
sai do espaço onde vive – Bolaño compõe uma fotografia de sua experiência mexicana
e das personagens que conheceu então. Jan e Remo levam a cabo uma visão iniciática
da vida – o sexo, o amor e as leituras e obsessões em torno da escrita. Jan o
fará preso naquela pocilga acima da avenida Los Insurgentes, lendo romances de
ficção científica trazidos pelos amigos e a partir dos quais redige cartas para
seus autores – a última delas assina com o pseudônimo Roberto Bolaño.
Um dos cadernos de notas para composição de O espírito da ficção científica. |
Remo, um pouco
mais sociável que Jan, sobrevive exercendo os mais distintos trabalhos: de colaborador
em suplementos literários a vendedor de lamparinas da virgem de Guadalupe –
dois trabalhos que permitiram a Bolaño ganhar algum dinheiro quando tinha a
mesma idade de suas personagens. Remo entra no mundo das oficinas literárias e
ao mesmo tempo inicia junto com José del Arco, também poeta e segundo Bruno
Montané alter ego do melhor amigo de Bolaño, Marco Santiago, uma pesquisa para
explicar por que na Cidade do México existe – segundo eles – um número
exorbitante de revistas literárias: mais de seiscentas. Outra vez a ideia de um
enigma a ser explicado. A necessidade de esclarecer esse aparente mistério
empurrará Remo e José del Arco ao doutor Ireneo Carvajal, diretor de uma dessas
tantas publicações, quem responderá todas as suas dúvidas com uma misteriosa
história mas também com a amargura e o desassossego que Bolaño mostraria mais
adiante em Os detetives selvagens e
que marca quase todas as suas personagens: uma certa condição de marginalidade
e fracasso que às vezes cobra seus mártires, incluindo o próprio Bolaño, que
não pode desfrutar em vida desse sucesso que alcançou depois de sua morte.
Através de
uma estrutura arbórea onde tudo forma parte de um mesmo tronco, Bolaño conduz o
leitor a uma segunda ficção relativamente autônoma: a história de um romance.
Esta trama ocorre a partir da entrevista que um jornalista faz ao ganhador de
um prêmio literário e cuja identidade o leitor ignora, embora existam razões
para pensar que se trata de uma versão futura de algum dos dois jovens poetas
que protagonizam o livro. Nas seções dedicadas a esta conversa há delírio e
absurdo. Entre sarcasmos e ironias, o escritor descreve a trama do romance com
o qual ganhou um prêmio provinciano: uma história que acontece num celeiro localizado
no remoto sul chileno – Bolaño passou os primeiros anos de sua vida nessa
região do país – e onde tem sua sede uma das faculdades da onipresente
Universidade Desconhecida: a Academia do Papa, dirigida pelo doutor Huachofeo.
Nos capítulos
dedicados a esta segunda ficção se superpõem episódios de realidade e
fantasmagoria, passado e futuro, sonho e vigília. Neles, um homem grava horas
inteiras de silêncio; uma guerra se intui no pesadelo de alguém mais; um mundo corrige
e cria outro, talvez os muitos romances onde ressoaram as obsessões de Bolaño, um
deles o mal, esse tema que trabalhou em vários romances e contos que publicaria
mais tarde. Por isso, O espírito da ficção
científica não é só um romance da juventude. Quando Bolaño fundou os
Infrarrealistas, que pedia a gritos a luta contra o status quo cultural, escondia uma insolência um tanto adâmica mas
também uma vontade firme de parricídio, de jogar por terra o peso daqueles
patriarcas de pedra, os autores do boom
que então dominavam a literatura da América Latina. Este livro é a primeira
pedra daquele empreendimento. Perdão, daquela lapidação.
***
A noite em
que Roberto Bolaño voou ao Chile depois de 25 anos distante do país, todos os
que viajavam com ele dormiam. Seu filho Lautaro, então com oito anos; sua companheira
Carolina López, atual responsável por sua obra. A viagem de Bolaño era
diferente da que fazia sua família. Ele havia nascido no Chile, os outros não.
Eles eram espanhóis, o escritor não. Sedado pelo veneno daquele regresso ao seu
país e enquanto cruzava o continente, Bolaño “segurava mentalmente as asas do
avião” – assim descreveu ele – que não parava de balançar sacudido pela
tempestade que golpeava o céu com a mesma força que a turbulência desatava no seu
peito.
Nascido em
Santiago e vivido parte de sua vida no sul do Chile, Bolaño se mudou para o
México com seus pais aos 15 anos. Fez seus estudos secundários na Cidade do
México, em pleno governo de Gustavo Díaz Ordaz. Tudo o que aconteceu nesses
anos, suas longas peregrinações por bibliotecas públicas e seus trabalhos como
jornalista em suplementos literários, dentre outros ofícios que lhe permitiam
ganhar algum dinheiro, fazem parte da biografia dos protagonistas de O espírito da ficção científica. Este
romance é uma chave dessa cartografia, a gênesis dessa amputação da origem que
permitiu a Bolaño viajar ao centro de si mesmo.
Roberto Bolaño em Barcelona, 1979. |
Em 1973, uma
década antes de começar a trabalhar no inédito agora publicado, Bolaño decidiu
viajar ao Chile para viver em primeira pessoa o processo político de Salvador
Allende. Atravessou a América Latina numa longa viagem. Ora em ônibus, de carona,
barco. Um mês depois de chegar ao país, enquanto viajava de ônibus para visitar
uma parte de sua família foi pego pelas forças de Augusto Pinochet. Foi
liberado depois de oito dias – um dos soldados que o vigiava havia sido colega
seu de escola – e finalmente expulso do país. Roberto Bolaño nunca mais voltou
ao Chile depois disso, até este dia de novembro de 1998. Por isso não dormia
naquele voo.
Quando
sentou-se para escrever O espírito da ficção
científica, Bolaño já havia passado sua primeira fase no México; havia fracassado
no projeto de “fazer a revolução” no Chile de Allende – como ele dizia, quase com
ironia; havia fundado um movimento que buscava a renovação poética e passeado
sem rumo pela Barcelona do final dos anos oitenta. “A primeira notícia que tenho
é de dezembro de 1984, embora certamente, o projeto poderia ser muito
anterior”, diz A. G. Porta, escritor e amigo próximo, que conheceu Bolaño em
1978 numa editora barcelonesa que só publicava poesia – La cloaca, era o nome
do selo. “O primeiro romance que publiquei é o primeiro romance que ele publicou,
pela sensível razão de que o escrevemos a duas mãos. Seu título: Consejos de un discípulo de Morrison a un
fanático de Joyce” – escreveu Bolaño num texto incluído na primeira compilação
de inéditos publicada depois de sua morte Entre
parêntesis, em 2004.
Os anos que
A. G. Porta aponta como o de gênesis de O
espírito da ficção científica têm relação com o que diz Carolina López,
quem nesse tempo já havia conhecido o chileno. “Roberto e eu começamos a viver
juntos no final de 1983 em Gerona. No
verão de 1984 é quando passamos a morar em Blanes. Minhas lembranças de vida com Roberto nesses anos estão relacionadas com outras coisas: sua poesia, as dificuldades
econômicas, as negativas das editoras, o amor, o visto de residência, os amigos,
suas crises de escrita, o cinema, o dinheiro [...] Em relação a O espírito de ficção científica, as
lembranças são da organização do arquivo. As primeiras situo-as em Blanes, quando Roberto passava a limpo os cadernos
(processo de revisão)”, recorda López.
Há mais de
dez anos, a companheira de Bolaño, com quem teve dois filhos (depois de
Lautaro, Alexandra), organiza o arquivo do autor de Noturno do Chile: são mais de 240 manuscritos, centenas de
fotografias e desenhos e mais de 167 entrevistas. Esse material serviu para a
grande exposição “Arquivo Bolaño (1977-2003)” realizada no Centro de Cultura
Contemporânea de Barcelona em 2013 e quando se exibiu pela primeira vez o manuscrito de O espirito da ficção científica. A
mostra depois foi para Madri e Buenos Aires.
O espírito da ficção científica pertence
ao período em que Bolaño escreveu seu primeiro romance com A. G. Porta e também Vereda dos elefantes reeditado
depois com o título de Monsieur Pain
(1999). Também desses anos são os contos “O contorno do olho” e “A Universidade
Desconhecida” que aparece referido várias vezes nas páginas do inédito agora
publicado. Quem se adentra na genealogia deste romance – o livro publicado pela
Alfaguara incluiu algumas imagens fac-similares de seus cadernos e diários de
escrita – pode ver a forma como o escritor concebia e planejava seus manuscritos.
Justamente por essa razão, uma pergunta fica no ar: se Bolaño escrevia sem
parar, e várias coisas ao mesmo tempo, o material de O espírito da ficção científica é do mesmo tempo dos anteriores.
Foi assim? “Os materiais das três obras citadas estavam
na mesa de trabalho”, lembra Carolina López. “Roberto havia transcrito partes
das mesmas para o computador e incorporado outras em outros livros. Não
representou nenhuma descoberta, estavam ali, à vista”. Sobre O espírito da ficção científica “estava
numa caixa com muitos outros cadernos de rascunhos. Publica-se só agora porque
se requereram várias leituras prévias e estudos por parte de especialistas na
obra de Roberto”.
caderno de notas para Diorama, outro inédito de Bolaño que poderá ser publicado. |
Bolaño escreveu
O espírito da ficção científica
impulsionado por uma determinação que já revelara numa carta dirigia a A. G.
Porta, em 1984, e quando menciona inclusive outros dois inéditos que estariam
por publicar: “Que faço? Estourar os miolos escrevendo e fazer equilíbrios. Diorama avança com uma navalha em cada
mão (tem seis ou oito vidas como Kali, deusa dos ladrões e dos
estranguladores). O espírito da ficção
científica ainda não sabe caminhar mas já diz papá (ou batata, nunca se
sabe)”, diz o escritor.
Organizadas cronologicamente
em seu arquivo, A. G. Porta guarda outras cartas além dessa – por exemplo, uma
de finais de novembro de 1985 e que acrescenta uma informação contraditória com a
apresentada pela Editora já que demonstra que Bolaño trabalhou neste texto
durante muito mais tempo que até 1984, a data que a Alfaguara apresenta como
definitiva da edição: “Espero terminar antes do fim do ano com O espírito da ficção científica – mesmo
que do pulso se rompam os tendões, se ainda os há ou não”. As datas que lembram os amigos e as
confirmadas pela editora não são as mesmas. Sobre isso, Pilar Reyes,
responsável pela obra do escritor na Alfaguara diz que “não é uma contradição.
Não podemos especular sobre se para Bolaño era um manuscrito concluído ou não,
publicável ou não. O manuscrito está acabado e assinado e são três os cadernos
que o contêm, em três etapas de escrita: notas, primeiro rascunho e transcrição
a limpo”.
O espírito da ficção científica é o
primeiro livro que se publica fora da casa editorial que apostou em Roberto
Bolaño, deu a conhecer sua obra e até agora havia editado seis dos sete livros
póstumos já conhecidos: os volumes de contos El
gaucho insufrible (2003) e El secreto del mal (2007); a antologia
de poemas La universidad desconocida
(2007); os romances 2666 (2004), O terceiro Reich (2010) e As agruras do verdadeiro tira (2011). O espírito da ficção científica (2016),
diferentemente deste último, não foi apresentado como um livro inacabado e sim como
um romance concluído e acabado. E é aí quando começam as dúvidas com os da ala
mais radical dos leitores de Bolaño.
Os detalhes
sobre este achado e os enfrentamentos que começou desde sua publicação não mais
pela Anagrama revelam a complexidade de uma personagem cujos livros têm ficado
ofuscados por outros temas que não os literários: a intimidade do escritor, a
vida pessoal de quem estiver próximo a ele. A divisão gerada na gestão da
memória de Roberto Bolaño colocou em oposição duas figuras: uma, a “viúva oficial”,
Carolina López, e Carmén Pérez de Vega, com quem o escritor manteve uma
estreita relação durante os últimos anos de sua vida – foi ela quem cuidou de
Bolaño até o último instante. Apesar de Pérez de Vega não reclamar
protagonismo ou figuração no trabalho da administração do espólio do escritor
no círculo de pessoas mais próximas ela aparece citada como uma das causas sobre a querela em torno da publicação da obra pela Alfaguara. A
isso se soma o questionamento sobre a pertinência ou não da publicação deste
inédito que poderá ser parte de outras três obras: La virgen de Barcelona (1979), Diorama
(1984) e La paloma de Tobruck (1983).
Roberto Bolaño com o filho. |
Bolaño
morreu em 15 de julho de 2003 aos 50 anos, depois de passar dez dias em coma.
Diagnosticado em 1992 com uma doença hepática degenerativa que só podia curar com
um transplante de fígado, o escritor esperou durante mais de uma década por um
doador que nunca chegou. A obra depois desse diagnóstico está marcada por esse
acontecimento. Se nos anos da juventude, Bolaño havia escrito impulsionado pela
vocação literária, a partir desse momento fez para ganhar tempo ante a certeza
da morte. Apenas um mês antes de morrer, entregou ao seu editor Jorge Herralde
o manuscrito de seu último livro de contos, El
gaucho insufrible, que se converteria em sua primeira obra de ficção
póstuma. Um dos livros mais conhecidos, o catatau 2666, um compêndio de cinco romances que escreveu durante a fase
final de sua vida, atesta isso. Sua maior obsessão foi deixá-lo pronto. O manuscrito
estava acompanhado de instruções precisas: cada livro devia ser publicado em
separado e o intuito era assegurar o bem-estar econômico dos filhos Lautaro e
Alexandra e de sua companheira Carolina. Bolaño escreveu sempre como quem tenta
evitar um fim.
***
A aparição
do manuscrito de O espírito da ficção científica
caiu como uma bomba no círculo do escritor. Não só porque foi editado a contragosto
de Jorge Herralde, mas também não passou pela revisão do crítico literário e amigo Ignacio Echevarría,
quem havia feito isso com todos os inéditos de Bolaño até então. Há poucas semanas Echevarría
expôs suas dúvidas e reclamações na revista espanhola El cultural. “Bolaño borrado” abre fogo contra os herdeiros de
Bolaño, especificamente contra Carolina López. “Tudo leva a suspeitar que havia
um interesse prévio de tirar da Anagrama a obra de Bolaño”, diz; e acrescenta
que não havia motivos econômicos para a troca e sim o suposto incômodo
que casou a Carolina López a amizade que tanto ele como Jorge Herralde mantêm com
Carmen Pérez de Vega. O episódio depois antes de superado abriu um debate que caiu
nas amarras do pessoal. “A existência desta relação pertence sem dúvida à
esfera do privado e trazê-la aqui só se justifica na medida em que a viúva de
Bolaño criou uma marca de fogo com a qual quer assinalar quem faz parte ou
não do que poderíamos chamar de memória oficial de Roberto Bolaño: uma memória
retocada, censurada”, escreveu Echevarría para questionar as decisões de López
e a pertinência sobre a publicação de O
espírito da ficção científica.
Até sua
morte, Bolaño esteve representado por Jorge Herralde; de agora, pela Agência Carmen
Balcells. Quando The Agency Wylie, capitaneada por Andrew Wylie – prestigiado
agente literário apelidado, não sem exagero, O chacal – completou a compra da
Agência Balcells em maio de 2014, Wylie passou a ter carta branca sobre um
grande grupo de escritores, entre eles 13 Prêmios Nobel e, Roberto Bolaño, que
já causava furor nos mercados anglo-saxões. Semelhante coincidência tem sido
para muitos o verdadeiro motivo para a troca de casa editorial da obra do
escritor chileno.
Roberto Bolaño e Carolina López, em 2002. Foto: El País |
Há pouco Carolina López publicou um texto no jornal El País (dia 23 de novembro), no qual expõe as razões que motivaram a troca de casa
editorial: “Minha perda de confiança em Herralde começou no início de 2008
quando revisei os contratos. Percebi que em 2005 a Anagrama havia formalizado
sem minha autorização um termo pelo qual estávamos pagando comissões mais
altas que o comum. Se as comissões estavam em torno de 20%, meus filhos e eu
pagávamos entre 35 e 55%”, explicou. “Nesse contexto a agência literária Andrew
Wylie me ofereceu representar a obra de Bolaño a nível mundial e se iniciou o
trabalho de renegociação com a Anagrama que encerrou a gestão internacional da
obra. Foi nesse momento quando nome que apenas havia saído na imprensa passou a
ser o centro de artigos que desacreditavam na minha imagem e mencionavam fatos
da esfera privada que não são verdadeiros”.
Que o baú de
Bolaño é como a de Pessoa, é algo que todos afirmam: uns como constatação,
outros, com certa má inveja. O espírito
da ficção científica foi oferecido dentro de um acordo global para a publicação
dos 21 títulos que a Alfaguara passa
a reeditar no universo de língua espanhola. Alguns dos mais próximos a Roberto Bolaño em seus anos de desconhecido
preferem o silêncio sobre o caso. Outros a reivindicar interesses diversos.
Entre o silêncio de uns e a grita de outros, passa despercebida a semente do
bosque que este livro é. Do nome de Roberto Bolaño brotaram espinhos. Tocá-lo,
apalpá-lo para comprovar suas asperezas torna-se cada vez mais difícil. Há uma
imensa solidão no homem que escreve, aos 26 ou 27, estas páginas. Mas também
uma cada vez maior imagem mitificada de um escritor a quem lhe ergue uma capela de
santo laico.
Na última
entrevista que Bolaño concedeu antes de morrer, a jornalista Mónica Maristain perguntou ao autor de Os detetives
selvagens qual sentimento despertava nele a palavra póstumo. “Soa um nome
de gladiador romano. Um gladiador invicto. Ou ao menos nisso acredita o pobre
Póstumo para dar valor a si”, respondeu ele. Sim, há algo de combate em tudo
isso. O que livra Bolaño para manter viva sua escrita, daqui a mais longe, mas
também o que livra contra a derrubada das árvores de seu próprio bosque. É uma
rara e involuntária épica de quem atravessou um continente e um oceano para conseguir
duas coisas: sua vocação literária e um lugar ao qual pertencer. Na busca de
ambos, Bolaño conseguiu na literatura seu único lugar. Sem ele saber, fez algo
muito mais potente: decapitou a herança do boom.
Fraturou a geografia literária que nunca voltaria a ser a mesma e na qual começaram
a fazer visíveis as claraboias, as tumbas esquecidas, de autores que ele nunca deixou
de levar em conta. Nunca.
Ligações a esta post:
>>> "Minha salvação é a literatura": cartas do jovem Roberto Bolaño
>>> E os tais inéditos de Roberto Bolaño? Leia trecho de O espírito da ficção científica
* No Brasil, o livro é publicado em fevereiro de 2017 pela Companhia das Letras.
Tradução livre para "Roberto Bolaño, el inmortal", publicado na Revista Gatopardo
Comentários