Roberto Bolaño, o imortal

Por Karina Sainz Borgo



Quando Roberto Bolaño visitou Nicanor Parra em sua casa de Las Cruces, em 1998, as primeiras palavras que o poeta lhe dirigiu foram em língua inglesa. Era as boas-vindas com que os camponeses da Dinamarca recebem o príncipe Hamlet. Neste dia, Nicanor Parra e Roberto Bolaño falaram sobre a velhice; sobre fantasmas e a loucura de Shakespeare; sobre acidentes automobilísticos; sobre Nova York e os amigos mortos; sobre os poetas e a nova narrativa chilena; sobre o México; sobre os Mapuche; de Pinochet.

Num momento da visita, Parra levou Bolaño até o terraço de onde se via o mar e, do outro lado da baía, um bosque: “Vê esse bosque?” – perguntou Parra. “Sim, vejo”. “Qual bosque vê, o que está acima ou o que está abaixo, o da direita ou o da esquerda?” Bolaño não via nada especial, exceto algo parecido a uma paisagem lunar. Depois de 25 anos de exílio, até o tronco das árvores chilenas deviam parecer irreconhecíveis. Nicanor Parra insistiu. Sugeriu-lhe que olhasse o bosque da esquerda. “Vê?” – perguntou. Bolaño viu algo que parecia uma picada, uma estrada ou uma saída do local e, mais acima, um bosque. Parra pediu que olhasse de novo a clareira no meio das árvores, um pouco mais acima. “É o túmulo de Vicente Huidobro”. Dito isso, Nicanor Parra deu a volta e retornou para a sala.

Bolaño ficou ainda um tempo no terraço daquela casa situada no alto de uma colina. Permaneceu contemplando essa mancha branca e diminuta sobre o que poderiam ser os ossos de Vicente Huidobro. “Um túmulo tão visível como Huidobro, ele teria gostado”, escreveu o chileno sobre uma tumba que lhe pareceu tão insignificante como seu dono. Roberto Bolaño morreu seis anos depois daquela visita. Metáfora rara e retorcida para o encontro de dois escritores que marcariam um antes e um depois na literatura de seu país e do resto do mundo de língua espanhola.

Como aquela no jardim do (anti) poeta que Bolaño mais admirou – Parra também, certamente –, ao redor de Bolaño se levanta uma nevasca que encobre toda poeira. Tudo fica invisível. Uma intempérie demasiado adversa para passar despercebida, como a tumba de Huidobro. Imediatamente depois de sua morte, começaram a aparecer inéditos e amigos de toda a parte. A maioria queria mostrar o retrato de família de um autor que deixou de ser um escritor de culto para uma voz criativa e fundadora. Alguém que começou com nada e se despediu do mundo com a única coisa a que foi sujeitado nesses anos todos: seu empenho em escrever, seu talento e a rede dos primeiros afetos.

Diferente de há alguns anos, hoje já não são tantos os que falam. Os desencontros entre herdeiros, amigos e editores têm feito cada vez mais complexa a organização das obras de Bolaño e, o que é pior, colocam na ordem do dia a pauta sobre trazer ou não a luz textos sobre os quais o próprio escritor não deixou instrução alguma de publicação além de uma incipiente corrente de saciedade ao redor de sua figura. É nesse contexto que se publica O espírito da ficção científica, um romance até então inédito que Bolaño escreveu em Blanes no final dos anos oitenta e que agora é publicado no âmbito do universo de língua espanhola como parte da reedição de toda sua obra que deixou de pertencer a editora de sempre, a Anagrama, para ser da Alfaguara*.

No momento de falar sobre Bolaño, muitas vozes desapareceram. O que se forma é uma clareira no bosque de sua obra. Sobre a história deste inédito todos parecem haver perdido a fala: sua companheira, seus amigos, seus editores. Prendem-se a Roberto Bolaño; por escrito. Cartas e mais cartas. Coisas que podem provar em caso de mal-entendidos. Tantos anos depois de sua morte, a obra do escritor chileno parece um povoado fantasma, um lugar habitado por versões desbotadas das pessoas que o quiseram e as que ele quis como amigo. Custa falar sobre Bolaño e quem esteve próximo dele desejam fazê-lo; parte, talvez, para atiçar ainda mais lenha à fogueira. Estas coisas acontecem com os santos laicos – e Bolaño tornou-se um deles; permanecem só presos na magnitude de seus milagres. O melhor que pode atribuir-se a Bolaño é a dimensão de sua caixa de manuscritos por publicar, alguém que parece ter mais inéditos que Fernando Pessoa.

Quantos livros foram publicados desde a morte de Roberto Bolaño? Existem realmente os quinze livros póstumos sobre os quais se especula? As respostas, dependendo de quem receba a pergunta, passam das evasivas às sem nada a dizer. No caso de O espírito da ficção científica as linhas vazias – como a pequena clareira de Huidobro – servem para estampar, reiteradas vezes, no mesmo muro a mesma inscrição: muito distante do verdadeiramente importante. Sobre Bolaño se escreveu de tudo, disse-se de tudo e, principalmente, ninguém quer tocá-lo: ou vai estourar um novo episódio de agravo entre quem se encarregou de estudar sua obra e divulgá-la e aqueles que a administram e preservam. Porque nesta história, a deste manuscrito, há agravos. E mesmo não sendo uma razão literária, pesa. Como uma louça.

Roberto Bolaño. Foto: Revista Paula/ Pin campaña.


Na introdução da edição espanhola, o crítico e escritor Christopher Domínguez Michael refere-se a O espírito da ficção científica como um romance da juventude. Não possui a musculatura que cobriria a obra de Roberto Bolaño posteriormente, embora, sem dúvidas, contém as marcas do contador de histórias que o incipiente escritor já era. Construída através de capítulos alternados, o romance narra duas histórias: uma principal que decorre em torno das peripécias de Jan Schrella e Remo Morán, dois poetas de 17 anos que vivem na Cidade do México do final da década de setenta e que Bolaño autorretrata os anos de sua juventude naquela cidade – a intensa atividade nos cursos de escrita literária, que ganham um papel central nestas páginas e que Bolaño aprofundará em Os detetives selvagens, o romance com o qual ganhou o Prêmio Rómulo Gallegos em 1998 e com que este novo manuscrito supõe uma relação mais direta e próxima.

Simultaneamente, Bolaño constrói uma segunda trama em torno de um manuscrito e um escritor cuja identidade o leitor precisará descobrir seguindo a pista das cenas pontuadas pela transcrição de uma entrevista para um jornal. A fórmula do edifício Bolaño, em estado puro. O primeiro mapa de uma longa viagem. Um livro escrito por um Roberto Bolaño de 27 anos que já leva dentro de si o homem que seria aos 50. Um escritor que estava muito distante de imaginar o sucesso que obteria depois de sua morte e que não parou de semear as árvores do enorme bosque em que sua obra se converteria.

***

Em O espírito da ficção científica estão as marcas que atravessarão toda a bibliografia de Bolaño. Se alguém é capaz de identificar muitos desses elementos é o chileno Bruno Montané, um de seus amigos mais próximos. Em sua casa de DF foi fundado em 1975 o movimento de renovação poética que ficou conhecido como Infrarrealismo, um grupo do qual Roberto Bolaño foi o principal propulsor, “uma espécie de dadá a mexicana”, juntamente com Mario Santiago Papasquiaro, José Vicente Anaya, Rubén Medina e José Rosas Ribeyro. Inscrito à sua maneira na tradição da ruptura como disse Octavio Paz – o que os novíssimos escritores detestavam – o movimento pretendia “estourar o lugar desses da cultura oficial” e dinamitar as grandes verdades literárias. É deste período que Bruno Montané e Bolaño se conhecem e os dois mantiveram uma relação de amizade que acompanhou em quase todos os destinos: Chile, México e Espanha. Tempo suficiente, portanto, para dizer que Montané seja capaz de tratar sobre alguns assuntos. Como O espírito da ficção científica texto sobre o qual tinha notícia desde 1985 mas não havia lido até agora.

Nestas páginas, segundo as indicações de Montané, aparecem muitas das personagens de Os detetives selvagens: não só a versão inicial de Arturo Belano e Ulisses Lima, também a escritora uruguaia Auxilio Lacouture, a narradora de Amuleto, um romance ambientado no México de Díaz Ordaz e os dias anteriores à matança de Tlatelolco, além de alguns textos como Manifesto Mexicano que já aparece em A universidade desconhecida, o sexto e último livro de poemas de Bolaño publicado postumamente, em 2007, e que muitos consideram uma espécie de autobiografia. Dos 21 títulos que integram sua obra, entre poemas, contos, romances ou ensaios, e quase sempre através de alter egos, Bolaño construiu um retrato de si próprio, assim como uma enorme e fantasmagórica árvore genealógica antecipada em O espírito da ficção científica. Porque em Bolaño vida e obra são a mesma coisa: o bosque e a clareira.

A verdadeira data deste manuscrito está em seu interior. A primeira grande trama de O espírito da ficção científica é narrada em primeira pessoa por Remo, o jovem e reservado poeta de origem chilena que compartilha com Jan a iniciação literária. Valendo-se da voz de Remo, intercalada com a prosa obsessiva e repetitiva das cartas de Jan – um jovem que quase nunca sai do espaço onde vive – Bolaño compõe uma fotografia de sua experiência mexicana e das personagens que conheceu então. Jan e Remo levam a cabo uma visão iniciática da vida – o sexo, o amor e as leituras e obsessões em torno da escrita. Jan o fará preso naquela pocilga acima da avenida Los Insurgentes, lendo romances de ficção científica trazidos pelos amigos e a partir dos quais redige cartas para seus autores – a última delas assina com o pseudônimo Roberto Bolaño.

Um dos cadernos de notas para composição de O espírito da ficção científica.


Remo, um pouco mais sociável que Jan, sobrevive exercendo os mais distintos trabalhos: de colaborador em suplementos literários a vendedor de lamparinas da virgem de Guadalupe – dois trabalhos que permitiram a Bolaño ganhar algum dinheiro quando tinha a mesma idade de suas personagens. Remo entra no mundo das oficinas literárias e ao mesmo tempo inicia junto com José del Arco, também poeta e segundo Bruno Montané alter ego do melhor amigo de Bolaño, Marco Santiago, uma pesquisa para explicar por que na Cidade do México existe – segundo eles – um número exorbitante de revistas literárias: mais de seiscentas. Outra vez a ideia de um enigma a ser explicado. A necessidade de esclarecer esse aparente mistério empurrará Remo e José del Arco ao doutor Ireneo Carvajal, diretor de uma dessas tantas publicações, quem responderá todas as suas dúvidas com uma misteriosa história mas também com a amargura e o desassossego que Bolaño mostraria mais adiante em Os detetives selvagens e que marca quase todas as suas personagens: uma certa condição de marginalidade e fracasso que às vezes cobra seus mártires, incluindo o próprio Bolaño, que não pode desfrutar em vida desse sucesso que alcançou depois de sua morte.

Através de uma estrutura arbórea onde tudo forma parte de um mesmo tronco, Bolaño conduz o leitor a uma segunda ficção relativamente autônoma: a história de um romance. Esta trama ocorre a partir da entrevista que um jornalista faz ao ganhador de um prêmio literário e cuja identidade o leitor ignora, embora existam razões para pensar que se trata de uma versão futura de algum dos dois jovens poetas que protagonizam o livro. Nas seções dedicadas a esta conversa há delírio e absurdo. Entre sarcasmos e ironias, o escritor descreve a trama do romance com o qual ganhou um prêmio provinciano: uma história que acontece num celeiro localizado no remoto sul chileno – Bolaño passou os primeiros anos de sua vida nessa região do país – e onde tem sua sede uma das faculdades da onipresente Universidade Desconhecida: a Academia do Papa, dirigida pelo doutor Huachofeo.

Nos capítulos dedicados a esta segunda ficção se superpõem episódios de realidade e fantasmagoria, passado e futuro, sonho e vigília. Neles, um homem grava horas inteiras de silêncio; uma guerra se intui no pesadelo de alguém mais; um mundo corrige e cria outro, talvez os muitos romances onde ressoaram as obsessões de Bolaño, um deles o mal, esse tema que trabalhou em vários romances e contos que publicaria mais tarde. Por isso, O espírito da ficção científica não é só um romance da juventude. Quando Bolaño fundou os Infrarrealistas, que pedia a gritos a luta contra o status quo cultural, escondia uma insolência um tanto adâmica mas também uma vontade firme de parricídio, de jogar por terra o peso daqueles patriarcas de pedra, os autores do boom que então dominavam a literatura da América Latina. Este livro é a primeira pedra daquele empreendimento. Perdão, daquela lapidação.

***

A noite em que Roberto Bolaño voou ao Chile depois de 25 anos distante do país, todos os que viajavam com ele dormiam. Seu filho Lautaro, então com oito anos; sua companheira Carolina López, atual responsável por sua obra. A viagem de Bolaño era diferente da que fazia sua família. Ele havia nascido no Chile, os outros não. Eles eram espanhóis, o escritor não. Sedado pelo veneno daquele regresso ao seu país e enquanto cruzava o continente, Bolaño “segurava mentalmente as asas do avião” – assim descreveu ele – que não parava de balançar sacudido pela tempestade que golpeava o céu com a mesma força que a turbulência desatava no seu peito.

Nascido em Santiago e vivido parte de sua vida no sul do Chile, Bolaño se mudou para o México com seus pais aos 15 anos. Fez seus estudos secundários na Cidade do México, em pleno governo de Gustavo Díaz Ordaz. Tudo o que aconteceu nesses anos, suas longas peregrinações por bibliotecas públicas e seus trabalhos como jornalista em suplementos literários, dentre outros ofícios que lhe permitiam ganhar algum dinheiro, fazem parte da biografia dos protagonistas de O espírito da ficção científica. Este romance é uma chave dessa cartografia, a gênesis dessa amputação da origem que permitiu a Bolaño viajar ao centro de si mesmo.

Roberto Bolaño em Barcelona, 1979.


Em 1973, uma década antes de começar a trabalhar no inédito agora publicado, Bolaño decidiu viajar ao Chile para viver em primeira pessoa o processo político de Salvador Allende. Atravessou a América Latina numa longa viagem. Ora em ônibus, de carona, barco. Um mês depois de chegar ao país, enquanto viajava de ônibus para visitar uma parte de sua família foi pego pelas forças de Augusto Pinochet. Foi liberado depois de oito dias – um dos soldados que o vigiava havia sido colega seu de escola – e finalmente expulso do país. Roberto Bolaño nunca mais voltou ao Chile depois disso, até este dia de novembro de 1998. Por isso não dormia naquele voo.

Quando sentou-se para escrever O espírito da ficção científica, Bolaño já havia passado sua primeira fase no México; havia fracassado no projeto de “fazer a revolução” no Chile de Allende – como ele dizia, quase com ironia; havia fundado um movimento que buscava a renovação poética e passeado sem rumo pela Barcelona do final dos anos oitenta. “A primeira notícia que tenho é de dezembro de 1984, embora certamente, o projeto poderia ser muito anterior”, diz A. G. Porta, escritor e amigo próximo, que conheceu Bolaño em 1978 numa editora barcelonesa que só publicava poesia – La cloaca, era o nome do selo. “O primeiro romance que publiquei é o primeiro romance que ele publicou, pela sensível razão de que o escrevemos a duas mãos. Seu título: Consejos de un discípulo de Morrison a un fanático de Joyce” – escreveu Bolaño num texto incluído na primeira compilação de inéditos publicada depois de sua morte Entre parêntesis, em 2004.

Os anos que A. G. Porta aponta como o de gênesis de O espírito da ficção científica têm relação com o que diz Carolina López, quem nesse tempo já havia conhecido o chileno. “Roberto e eu começamos a viver juntos no final de 1983 em Gerona.  No verão de 1984 é quando passamos a morar em Blanes. Minhas lembranças de vida com Roberto nesses anos estão relacionadas com outras coisas: sua poesia, as dificuldades econômicas, as negativas das editoras, o amor, o visto de residência, os amigos, suas crises de escrita, o cinema, o dinheiro [...] Em relação a O espírito de ficção científica, as lembranças são da organização do arquivo. As primeiras situo-as em Blanes, quando Roberto passava a limpo os cadernos (processo de revisão)”, recorda López.

Há mais de dez anos, a companheira de Bolaño, com quem teve dois filhos (depois de Lautaro, Alexandra), organiza o arquivo do autor de Noturno do Chile: são mais de 240 manuscritos, centenas de fotografias e desenhos e mais de 167 entrevistas. Esse material serviu para a grande exposição “Arquivo Bolaño (1977-2003)” realizada no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona em 2013 e quando se exibiu pela primeira vez o manuscrito de O espirito da ficção científica. A mostra depois foi para Madri e Buenos Aires.

O espírito da ficção científica pertence ao período em que Bolaño escreveu seu primeiro romance com A. G. Porta e também Vereda dos elefantes reeditado depois com o título de Monsieur Pain (1999). Também desses anos são os contos “O contorno do olho” e “A Universidade Desconhecida” que aparece referido várias vezes nas páginas do inédito agora publicado. Quem se adentra na genealogia deste romance – o livro publicado pela Alfaguara incluiu algumas imagens fac-similares de seus cadernos e diários de escrita – pode ver a forma como o escritor concebia e planejava seus manuscritos. Justamente por essa razão, uma pergunta fica no ar: se Bolaño escrevia sem parar, e várias coisas ao mesmo tempo, o material de O espírito da ficção científica é do mesmo tempo dos anteriores. Foi assim?  “Os materiais das três obras citadas estavam na mesa de trabalho”, lembra Carolina López. “Roberto havia transcrito partes das mesmas para o computador e incorporado outras em outros livros. Não representou nenhuma descoberta, estavam ali, à vista”. Sobre O espírito da ficção científica “estava numa caixa com muitos outros cadernos de rascunhos. Publica-se só agora porque se requereram várias leituras prévias e estudos por parte de especialistas na obra de Roberto”.

caderno de notas para Diorama, outro inédito de Bolaño que poderá ser publicado.

Bolaño escreveu O espírito da ficção científica impulsionado por uma determinação que já revelara numa carta dirigia a A. G. Porta, em 1984, e quando menciona inclusive outros dois inéditos que estariam por publicar: “Que faço? Estourar os miolos escrevendo e fazer equilíbrios. Diorama avança com uma navalha em cada mão (tem seis ou oito vidas como Kali, deusa dos ladrões e dos estranguladores). O espírito da ficção científica ainda não sabe caminhar mas já diz papá (ou batata, nunca se sabe)”, diz o escritor.

Organizadas cronologicamente em seu arquivo, A. G. Porta guarda outras cartas além dessa – por exemplo, uma de finais de novembro de 1985 e que acrescenta uma informação contraditória com a apresentada pela Editora já que demonstra que Bolaño trabalhou neste texto durante muito mais tempo que até 1984, a data que a Alfaguara apresenta como definitiva da edição: “Espero terminar antes do fim do ano com O espírito da ficção científica – mesmo que do pulso se rompam os tendões, se ainda os há ou não”.  As datas que lembram os amigos e as confirmadas pela editora não são as mesmas. Sobre isso, Pilar Reyes, responsável pela obra do escritor na Alfaguara diz que “não é uma contradição. Não podemos especular sobre se para Bolaño era um manuscrito concluído ou não, publicável ou não. O manuscrito está acabado e assinado e são três os cadernos que o contêm, em três etapas de escrita: notas, primeiro rascunho e transcrição a limpo”.

O espírito da ficção científica é o primeiro livro que se publica fora da casa editorial que apostou em Roberto Bolaño, deu a conhecer sua obra e até agora havia editado seis dos sete livros póstumos já conhecidos: os volumes de contos El gaucho insufrible (2003) e El secreto del mal (2007); a antologia de poemas La universidad desconocida (2007); os romances 2666 (2004), O terceiro Reich (2010) e As agruras do verdadeiro tira (2011). O espírito da ficção científica (2016), diferentemente deste último, não foi apresentado como um livro inacabado e sim como um romance concluído e acabado. E é aí quando começam as dúvidas com os da ala mais radical dos leitores de Bolaño.

Os detalhes sobre este achado e os enfrentamentos que começou desde sua publicação não mais pela Anagrama revelam a complexidade de uma personagem cujos livros têm ficado ofuscados por outros temas que não os literários: a intimidade do escritor, a vida pessoal de quem estiver próximo a ele. A divisão gerada na gestão da memória de Roberto Bolaño colocou em oposição duas figuras: uma, a “viúva oficial”, Carolina López, e Carmén Pérez de Vega, com quem o escritor manteve uma estreita relação durante os últimos anos de sua vida – foi ela quem cuidou de Bolaño até o último instante. Apesar de Pérez de Vega não reclamar protagonismo ou figuração no trabalho da administração do espólio do escritor no círculo de pessoas mais próximas ela aparece citada como uma das causas sobre a querela em torno da publicação da obra pela Alfaguara. A isso se soma o questionamento sobre a pertinência ou não da publicação deste inédito que poderá ser parte de outras três obras: La virgen de Barcelona (1979), Diorama (1984) e La paloma de Tobruck (1983).

Roberto Bolaño com o filho.

Bolaño morreu em 15 de julho de 2003 aos 50 anos, depois de passar dez dias em coma. Diagnosticado em 1992 com uma doença hepática degenerativa que só podia curar com um transplante de fígado, o escritor esperou durante mais de uma década por um doador que nunca chegou. A obra depois desse diagnóstico está marcada por esse acontecimento. Se nos anos da juventude, Bolaño havia escrito impulsionado pela vocação literária, a partir desse momento fez para ganhar tempo ante a certeza da morte. Apenas um mês antes de morrer, entregou ao seu editor Jorge Herralde o manuscrito de seu último livro de contos, El gaucho insufrible, que se converteria em sua primeira obra de ficção póstuma. Um dos livros mais conhecidos, o catatau 2666, um compêndio de cinco romances que escreveu durante a fase final de sua vida, atesta isso. Sua maior obsessão foi deixá-lo pronto. O manuscrito estava acompanhado de instruções precisas: cada livro devia ser publicado em separado e o intuito era assegurar o bem-estar econômico dos filhos Lautaro e Alexandra e de sua companheira Carolina. Bolaño escreveu sempre como quem tenta evitar um fim.

***

A aparição do manuscrito de O espírito da ficção científica caiu como uma bomba no círculo do escritor. Não só porque foi editado a contragosto de Jorge Herralde, mas também não passou pela revisão do crítico literário e amigo Ignacio Echevarría, quem havia feito isso com todos os inéditos de Bolaño até então. Há poucas semanas Echevarría expôs suas dúvidas e reclamações na revista espanhola El cultural. “Bolaño borrado” abre fogo contra os herdeiros de Bolaño, especificamente contra Carolina López. “Tudo leva a suspeitar que havia um interesse prévio de tirar da Anagrama a obra de Bolaño”, diz; e acrescenta que não havia motivos econômicos para a troca e sim o suposto incômodo que casou a Carolina López a amizade que tanto ele como Jorge Herralde mantêm com Carmen Pérez de Vega. O episódio depois antes de superado abriu um debate que caiu nas amarras do pessoal. “A existência desta relação pertence sem dúvida à esfera do privado e trazê-la aqui só se justifica na medida em que a viúva de Bolaño criou uma marca de fogo com a qual quer assinalar quem faz parte ou não do que poderíamos chamar de memória oficial de Roberto Bolaño: uma memória retocada, censurada”, escreveu Echevarría para questionar as decisões de López e a pertinência sobre a publicação de O espírito da ficção científica.

Até sua morte, Bolaño esteve representado por Jorge Herralde; de agora, pela Agência Carmen Balcells. Quando The Agency Wylie, capitaneada por Andrew Wylie – prestigiado agente literário apelidado, não sem exagero, O chacal – completou a compra da Agência Balcells em maio de 2014, Wylie passou a ter carta branca sobre um grande grupo de escritores, entre eles 13 Prêmios Nobel e, Roberto Bolaño, que já causava furor nos mercados anglo-saxões. Semelhante coincidência tem sido para muitos o verdadeiro motivo para a troca de casa editorial da obra do escritor chileno.

Roberto Bolaño e Carolina López, em 2002. Foto: El País

Há pouco Carolina López publicou um texto no jornal El País (dia 23 de novembro), no qual expõe as razões que motivaram a troca de casa editorial: “Minha perda de confiança em Herralde começou no início de 2008 quando revisei os contratos. Percebi que em 2005 a Anagrama havia formalizado sem minha autorização um termo pelo qual estávamos pagando comissões mais altas que o comum. Se as comissões estavam em torno de 20%, meus filhos e eu pagávamos entre 35 e 55%”, explicou. “Nesse contexto a agência literária Andrew Wylie me ofereceu representar a obra de Bolaño a nível mundial e se iniciou o trabalho de renegociação com a Anagrama que encerrou a gestão internacional da obra. Foi nesse momento quando nome que apenas havia saído na imprensa passou a ser o centro de artigos que desacreditavam na minha imagem e mencionavam fatos da esfera privada que não são verdadeiros”.

Que o baú de Bolaño é como a de Pessoa, é algo que todos afirmam: uns como constatação, outros, com certa má inveja. O espírito da ficção científica foi oferecido dentro de um acordo global para a publicação dos 21 títulos que a Alfaguara passa a reeditar no universo de língua espanhola. Alguns dos mais próximos a Roberto Bolaño em seus anos de desconhecido preferem o silêncio sobre o caso. Outros a reivindicar interesses diversos. Entre o silêncio de uns e a grita de outros, passa despercebida a semente do bosque que este livro é. Do nome de Roberto Bolaño brotaram espinhos. Tocá-lo, apalpá-lo para comprovar suas asperezas torna-se cada vez mais difícil. Há uma imensa solidão no homem que escreve, aos 26 ou 27, estas páginas. Mas também uma cada vez maior imagem mitificada de um escritor a quem lhe ergue uma capela de santo laico.

Na última entrevista que Bolaño concedeu antes de morrer, a jornalista Mónica Maristain perguntou ao autor de Os detetives selvagens qual sentimento despertava nele a palavra póstumo. “Soa um nome de gladiador romano. Um gladiador invicto. Ou ao menos nisso acredita o pobre Póstumo para dar valor a si”, respondeu ele. Sim, há algo de combate em tudo isso. O que livra Bolaño para manter viva sua escrita, daqui a mais longe, mas também o que livra contra a derrubada das árvores de seu próprio bosque. É uma rara e involuntária épica de quem atravessou um continente e um oceano para conseguir duas coisas: sua vocação literária e um lugar ao qual pertencer. Na busca de ambos, Bolaño conseguiu na literatura seu único lugar. Sem ele saber, fez algo muito mais potente: decapitou a herança do boom. Fraturou a geografia literária que nunca voltaria a ser a mesma e na qual começaram a fazer visíveis as claraboias, as tumbas esquecidas, de autores que ele nunca deixou de levar em conta. Nunca.

Ligações a esta post:
>>> "Minha salvação é a literatura": cartas do jovem Roberto Bolaño
>>> E os tais inéditos de Roberto Bolaño? Leia trecho de O espírito da ficção científica  


* No Brasil, o livro é publicado em fevereiro de 2017 pela Companhia das Letras.


Tradução livre para "Roberto Bolaño, el inmortal", publicado na Revista Gatopardo

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