Os sertões, de Euclides da Cunha




Numa lista de obras fundamentais para compreender o Brasil, uma, certamente, nunca deverá faltar: Os sertões. Ela é, como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Vidas secas, de Graciliano Ramos, Macunaíma, de Mario de Andrade Quarup, de Antonio Callado, Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, entre outros, elemento de nosso genoma; são visadas muito coerentes sobre nossa identidade e sobre a quantidade diversa de questões que nos afligem enquanto povo, sendo que, o livro de Euclides da Cunha,  trata-se de um projeto que visa amalgamar a força e a riqueza da nossa linguagem com a escrita de registro e denúncia sobre um dos episódios mais tristes e dramáticos da luta de classes no Brasil.

Há algo nesta obra que faz dela ponto de acesso entre o tempo que lhe antecede e este que agora o sucede: a constatação sobre, em nome de um desnecessário alinhamento das conjunturas internas com as transformações internacionais, promover toda sorte de intervenções em que os grandes ganhadores são também os forjadores e amplifica ou reanima aquela corrente de forças entre esses, os tais que se sentem donos do poder, e o povo, ora excessivamente acomodado e desmotivado por uma coletividade ao ponto de pactuar com os opressores o desejo de opressão sobre os que anseiam por uma modificação do status quo retrogrado e impositivo de uma classe.

O que aconteceu em Canudos – quando Euclides pensava estar diante de, finalmente, um levante dos oprimidos neste país de conformados – é o que acontece todos os dias nas derrotas individuais porque passam os sujeitos da periferia social brasileira e em larga escala o que se repete no escamoteio à força de alguns projetos políticos que, com todas as falhas e erros, terão produzido entre os mais simples a possibilidade de romper com o ciclo vicioso que nos persegue desde quando uma nação achou por bem fazer desse novo mundo um lugar de exploração, paraíso de assaltadores, e ilha da bonança para agradar bolsos alheios.

O impulso sonhado por Euclides da Cunha, quando soube das primeiras resistências do arraial de Canudos, não se desfez com a escrita de Os sertões, embora aqui prevaleça o sufocamento da utopia e não a condição de se engendrar o que os franceses já no seu tempo há muito haviam feito, uma Revolução. Assim, não é perigoso falar que, dentre todas as forças enformadoras deste livro, um embate está entre o plano da razão cerceadora e o do sonho libertador. 

Os combatentes de Canudos. Foto: Flávio de Barros  

Isso, evidentemente, só foi possível porque o escritor, depois de deixar a farda, e ir encontrar com o centro de um estopim, em 1897, a convite do jornal O Estado de São Paulo, – ao menos como fora pintado pelos mesmos aparelhos que agora atuam no balanço da maré mas ainda em comunhão com seus interesses sensacionalistas – descobriu na força de Canudos aquela possibilidade que sempre se construiu pelo seu avesso: não há unidade política entre povos considerados não-civilizados ou entre grupos pisoteados pelo poder, como muito se disse dos trabalhadores braçais e das mulheres. Aí, o então jornalista não apenas pode desconstruir essa visão um bocado deturpada como expor, mesmo indiretamente, as artimanhas do poder cerceador.

Claro, a Euclides nunca lhe deu orgulho a farda e contra os militares, por exemplo, não se preocupou em deixar suas alfinetadas nOs sertões – essas percebidas com largo desprezo pelos da farda (“multidão criminosa e paga para matar”, “mercenários inconscientes”, “a lei do cão”, “mundiça”). A quantidade diversa de artigos que escreveu sobre o massacre de Canudos se revelava o que poderia sair de uma testemunha ocular não levantava suspeitas de que o livro fosse uma radiografia ainda mais profunda do que se passou aí. 

Este é um título que se apropria dos mais diversos saberes para reinterpretar a história de formação do povo brasileiro e humanisticamente colocar o país ante seu lado vil e despótico; o avesso do ideal de civilização que desde sempre nos perseguiu e justificou toda sorte de massacres praticados por aqui. Já se disse que este livro rompeu com os ideias novos da República que visava loucamente a modernidade, revelando o outro lado do progresso desenfreado. A partir desse ponto de vista, é preciso dizer que Os sertões colocou na pauta das discussões a hipocrisia e a farsa como estratégias dos donos do poder interessados tão-somente em, antes de resolver qualquer coisa, varrer para debaixo do tapete aquilo que injustifica o status quo para o mundo externo.  



É, portanto, em boa hora – tendo em vista a repetição viva de uma farsa em que os do poder subjugam os do povo – que os leitores brasileiros reencontram com uma edição que estava antes circunscrita ao reduto acadêmico. Embora desde a primeira edição, publicada em 1902, nunca as editoras tenham deixado de reeditar Os sertões, o trabalho crítico de Walnice Nogueira Galvão para uma edição definitiva dessa obra-prima da literatura brasileira agora editada pela Ubu Editora, um projeto que estava entre as ambições da Cosac Naify antes dessa editora chegar ao fim, reabre o fôlego em torno da obra. 

O valor literário e as implicações desta obra para a nossa memória e compreensão sobre a formação de nossa identidade coletiva estão provadas no zelo com que a edição é reapresentada: dois volumes com rico material bibliográfico e iconográfico sobre Os sertões. O trabalho ganhou novo formato em relação à primeira vez que veio a lume: em 2009, Walnice apresentava sua primeira edição crítica; agora outras notas demonstram que todo o texto foi cuidadosamente revisto. 

Apesar disso, o leitor poderá ter a impressão de que os editores, dessa vez, erraram numa só coisa: o caderno de notas bem poderia reunir o aparato de texto críticos copiados no final do volume de Os sertões; faria mais sentido porque aproximaria o volume com a obra da edição original e justificaria melhor a necessidade de um volume-apêndice ou complemento. Mas não, preferiu-se deixar apenas as notas, invalidando a necessidade de uma caixa para dois volumes. Por outro lado, entende-se que a proposta visa servir, simultaneamente e em separado, a dois grupos de leitores: aquele desinteressado do tratamento acadêmico que reveste uma edição crítica e aquele que necessita da minúcia sobre o processo de composição da obra. Muito embora se perceba que ao leitor do primeiro grupo também pouco lhe interessa o respaldo da crítica especializada para sua leitura.

Sufocado o reduto de Canudos, uma leva de prisioneiros deserdados. Foto; Flávio de Barros.

Agora, os textos citados na fortuna crítica evidentemente que são fundamentais para a constituição dos diversos pontos de vista que incidiram ao longo da história deste livro, desde sua publicação aos dias mais atuais. Falhas dos projetores à parte, a aproximação com a edição original se dá pela inserção de desenhos, mapas e as fotografias Flávio de Barros, quem acompanhou Euclides na expedição a Canudos. A de 1902 também trazia essa sorte de aparatos e dada a inovação aspirada pelo seu autor, ele próprio precisou cobrir a confecção do livro com um conto e quinhentos mil réis, o dobro de seu salário como engenheiro da Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo. Naquela ocasião, valeu o esforço porque até 1905 Os sertões ganhou três edições.

Esta é para nossos dias a mais completa edição crítica da obra. Tais edições do gênero têm um papel definitivo para as grandes obras – é sinal de que alcançou depois de sua primeira edição uma popularidade e êxito inolvidáveis e para tanto necessita-se estabelecer uma edição ne varietur; noutro aspecto, revela ao leitor, pela minúcia, a variação adquirida pela obra ao longo de sua história. No caso do livro de Euclides da Cunha, Walnice diz que se levou em consideração não apenas uma “análise comparativa das edições em vida do autor e as modificações por ele introduzidas em seus próprios textos” como “todas as edições especiais feitas a partir do exemplar com emendas autógrafas (5ª e 12ª edições da Francisco Alves), da cópia do AP do Grêmio Euclides da Cunha (edições da Universidade de Brasília e da Cultrix) e do AP da Academia (28ª edição da Francisco Alves)”.

Se, quando da sua publicação, Os sertões provocou as mais diversas opiniões críticas – da recusa por parte de determinados setores, sobretudo aqueles que trabalharam para forjar uma imagem pejorativa do condado de Canudos, passando pelo acalorado debate de em qual categoria se inscrevia uma obra que bebia de fontes tão diversas, até à compreensão de que a literatura brasileira acabava de ganhar uma obra-prima – o livro é ainda um desses desafios fundamentais aos que são motivados ao desafio propiciado pela grande obra. 

Não é à toa que este se tornou um dos livros que mais tem servido de inspiração para obras diversas ao redor do mundo: O mago do sertão, do francês Lucien Marchal, Veredicto em Canudos, do húngaro Sándor Márai, A guerra do fim do mundo, do peruano Mario Vargas Llosa, entre outros diversos títulos na própria literatura brasileira. Isso não apenas reforça o valor da edição ora publicada, mas cobra do leitor brasileiro uma maior atenção com alguns dos objetos culturais de extensa expressão quais os que figuram nas demais culturas.

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