O violão azul, de John Banville
Por Pedro Fernandes
Novamente é
preciso retornar ao tipo de romance que não assume – ao menos explicitamente –
nenhum interesse pretensioso de renovação estética e, se não faz isso, consegue
imprimir um tom único, no sentido de singular, na estruturação e, logo, na
forma. A literatura contemporânea tem alguns exemplos desses consideráveis; o caso
mais notório é certamente o da Elena Ferrante. A obra dessa escritora tem se
utilizado dos mesmos protocolos narrativos tradicionais e abordado os temas
mais caros da contemporaneidade, mesmo aqueles relativos ao interior do homem.
E não somente: tem reelaborado as relações entre interior e exterior no âmbito
da narrativa de modo a evidenciar novas possibilidades de engendrar uma
totalidade do indivíduo. É evidente que, diferentemente de Elena Ferrante, é
possível ser essa constatação verificável através da leitura da chamada série
napolitana, Dias de abandono e A filha perdida não sintonizável com a
literatura de John Banville porque a relação aqui introduzida considera,
perigosamente, apenas a leitura de O
violão azul.
O romance em
questão é um complexo objeto narrativo embora essa complexidade não afete em
nada uma leitura fluente e sem grandes desafios ao leitor comum. Em duas
linhas, trata-se da história sobre um pintor em crise, Oliver Otway Orme, quem
narra esse processo de desvencilhamento da pintura a partir da investigação
sobre si não para o porquê do deserto criativo mas sobre um gosto que traz consigo
desde a infância, digamos assim, de furtar objetos. Estaríamos diante uma
narrativa simplista se fosse só isso. Mas o romancista irlandês transforma o
ato de furtar – tornar algo de estima de alguém ausente –, uma obsessão, numa
possibilidade estética e existencial.
O trabalho
artístico de Oliver está em desenvolver uma estética na pintura atenta não à coisa
em si, “somente seus efeitos”. Tal como o ato de furtar em que não é objeto em
falta o que leva os sentidos à crise e sim os afetos em grande parte simplesmente
adormecidos que se tornam aguçados depois se aperceber da perda, seria esta uma
arte cuja motivação do espectador passaria pelo afloramento dos sentidos ante a
ausência da natureza ou do objeto retratado.
Existencialmente,
isso se manifesta na obsessão sem-planos, apenas uma leva do espírito, em
isolar-se do mundo de maneira abrupta e só perceptível pelos do seu entorno muito
tempo depois, como alguém deixado por se levar desavisadamente pelos sentidos:
é assim que Oliver sai de casa, dias depois de envolver-se com uma mulher casada
do seu círculo de amizade familiar e é da mesma maneira que sai do ambiente
familiar de Polly, a amante em questão, para citar dois exemplos que corroboram
com esse pressuposto estético de sua pintura demonstrado ainda no início do
romance, ocasião quando busca uma explicação para a crise criativa porque
passa:
“Acho que a
perda de minha capacidade para pintar, vamos dizer assim, foi resultado, em
grande parte, de uma consideração florescente, irresistível e, em última instância,
fatal por esse mundo, quero dizer, o mundo cotidiano e objetivo das meras coisas.
Antes, eu sempre olhava para além delas num esforço de chegar à essência que eu
sabia estar ali, oculta nos recessos, mas não inatingível a alguém determinado
e perspicaz o bastante para penetrá-los. Eu era como um homem indo ao encontro
da amada numa estação de trem e que anda apressado entre a multidão que
desembarca, erguendo a cabeça e desviando das pessoas, relutante em olhar para
qualquer rosto salvo o daquela que anseia ver. Não me entenda mal, não era do
espírito que eu estava atrás, de formas ideais, linhas euclidianas, não, nada
disso. A essência é sólida, tão sólida quanto as coisas da qual é a essência.
Mas é essência. À medida que a crise se aprofundava, não demorou muito para que
eu reconhecesse e aceitasse o que me parecia ser uma verdade simples e óbvia, a
saber, que não havia essa coisa de a coisa propriamente dita, apenas os efeitos das coisas, o
generativo remoinho da relação. Você se permite discordar?, eu dizia, fazendo
uma pose desafiadora, as mãos na cintura. Tente isolar a decantada coisa-em-si,
então, retrucava eu a um bando de objetores imaginários, e veja o que obtém. Vá
em frente, chute aquela pedra: só o que vai conseguir será um dedão inchado. Eu
não me deixava demover. Nada de coisas em
si, somente seus efeitos!”
Bom, se o
desenvolvimento dessa estética parece fadado ao fracasso pela sua impossibilidade
de realização ao menos será tornada num elemento fundamental para a percepção diversa
que assume esse olhar do narrador Oliver, responsável por captar o mundo numa delicadeza plástica que, ora oferece ao
leitor extensos painéis construídos por através dos planos extremamente visuais
com que pinta o que vê com palavras, ora perfeitos exercícios poéticos
desfazendo o caráter objetivo da mimese, sem desprezá-lo. Isto é, o tecido
narrativo é poroso e, logo, constantemente invadido por regatinhos de poesia, o
que atribui ao que narra outro volume por introduzir outras camadas de
densidade a este tecido.
Não apenas
isso: estamos diante de um narrador entre o médio e elevado tom erudito que consegue
cerzir ao narrado vários elementos da pintura e da literatura com estreita
naturalidade. Percebam que a narrativa de O
violão azul se faz, assim, como uma grande pintura, por camadas; e isso
exige do leitor, cujo interesse possa estar além do da leitura prazerosa, um
trabalho detetivesco já ensaiado por algumas evidências reveladas pelo tradutor
em notas esparsas de rodapé que em nada toldam a estratégia criativa de
Banville: munir-se de uma diversidade de materiais e construí-los pela recriação
dos sentidos um objeto autêntico e singular.
Há ainda um
tom de forte ironia e sarcasmo ao ponto de, reiteradas vezes, ouvirmos o eco do
Oscar Wilde de O retrato de Dorian Gray.
Nota-se claramente isso quando se dedica às descrições sobre alguém e suas
atitudes quando varia entre a elevação dos defeitos sobre o que o quem é descrito
ou o rebaixamento produzindo não retratos em si mas formas caricaturescas. A
mirada desse Oliver é desacreditada e desapiedada de tudo e com todos, mesmo
sobre ele não há qualquer tentativa de sagração.
A crise criativa,
não demorará muito, se torna numa visão desencantada da realidade, ponto de
grande valia porque faz com que a própria narrativa encontre o tom real sobre o
mundo sem se ater à coisa em si e sua essência. Indiretamente, portanto, Oliver
realiza através da pintura verbal o projeto almejado para as artes plásticas e
fracassado.
Ressuscita,
ainda, Banville, o mito do artista em dissintonia com o mundo – a grande
maneira e possivelmente a única, capaz de levar o artista ao trabalho de criação.
Reforma-se por outros caminhos a compreensão de não existir arte
verdadeiramente autêntica no sujeito em perfeita harmonia com a existência. O
que também não é o caso dos que se apegam a posturas inconformistas; estes, por
sua vez, podem se tornar apenas uma figura ranzinza e autor de uma obra tão
medíocre quanto aqueles primeiros. A capacidade de criação reside naquele que
vive no limiar das dicotomias e trata-se, antes de tudo, de uma postura, em
parte natural e em parte exercitada no mundo – isso não percebe Oliver. Ao
menos de um todo. Para ele é suficiente sua condição de transgressor como
furtador no ambiente tradicional um motivo de excentricidade; depois, a simples
troca de ares, produzindo no seu universo conformado aos universos comuns
realidades marcadas por uma dose elevada de sentimentos e dilemas existenciais.
E, nem um nem outro alcançam o motivo capaz de reacender o espírito de criação
em crise ao ponto de recusar-se à criação artística.
Na visão
desencantada de Oliver – vale citar a conclusão que alcança sobre o amor, como exemplo,
“todo amor é amor-próprio” – e pela própria incapacidade de criação, passa um
mundo que tem se tornado cada vez mais árido para as artes representativas,
entre elas as duas aqui evocadas, a literatura e a pintura; não sem uma
alfinetada certeira na mercantilização da arte pelo capital – singular a
presença de Perry, uma espécie de mecenas de Oliver. Embora, não se produza uma
discussão direta sobre o tema – aliás, nada é direto neste romance – a crise
por ser apenas uma recusa do artista ante um modelo de criação estruturado e
submisso aos desígnios do mercado.
No mais, nossos
dilemas pessoais até caminham na contramaré, ou seja, estão cada vez distantes
de encontrar um ponto de solução mesmo se atestarmos as transformações porque
passou a psicanálise desde Freud – o que, por sua vez, pode significar um vasto
território favorável à criação. Entretanto, por um feito de alheamento temos
sido impedidos de tornar críveis nossos dilemas em formas artísticas criativas
o suficiente para reavivar algum fôlego entre a tradição – constantemente
relegada ao descrédito, como objeto sem serventia – e as criações contemporâneas,
quase sempre dotadas da petulância de que nelas está a maneira mais elevada da criação
quando, em grande parte, é mero pastiche.
Talvez
invisibilizar-se, “o louco projeto ao qual” Oliver enxerga-se como um devotado de
toda a vida – “invizibilizar o mundo” –, represente para além de uma negação
aos estatutos mercadológicos (plano pessoal) e realistas (plano da arte) numa
maneira de outra percepção sobre o mundo e as coisas. E que esta condição se
torne capaz de fazer a arte, apropriando-se dos nossos dilemas mais profundos,
significativa ao ponto de estabelecer relações há muito dicotomizadas e por
isso caídas no descrédito. A ambição de Oliver não é vã; é uma angústia sobre a
necessidade de construção de uma aguda percepção sobre que tanto falta a arte ser
arte. Ou o que dela foi furtado ao ponto de ser mero objeto entre objetos.
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