O lobo da estepe e o convite ao enfrentamento de nossas múltiplas identidades
Por Rafael Kafka
A
Larissa Oliveira
O lobo da estepe é um daqueles romances experimentais que fazem até mesmo os
leitores mais experientes e fãs de pesadas viagens literárias terem uma certa
vertigem em diversos pontos de seu enredo. Isso porque uma obra de narrativa
fluida, com ar similar ao de certos textos realistas, aos poucos assume uma
atmosfera de sonho perturbador e de profunda viagem existencial rumo à
descoberta de uma identidade que deve se achar na perdidão do mundo da
modernidade tardia.
Harry Haller, o
narrador em primeira pessoa desse belo texto escrito por Hermann Hesse, é o
típico burguês decadente o qual critica a classe da qual faz parte sem
conseguir colocar em prática um projeto de vida que sirva de alternativa ao
mundo de aparências de onde busca fugir. Até mesmo o seu eruditismo é uma criação
do universo burguês renegado pelo protagonista, que em certos momentos do
romance, em especial quando se depara com Pablo e o jazz e as novas formas de
música distantes do modelo tido como clássico, não esconde as raízes burguesas
de sua atitude em relação a gosto e cânone cultural.
Afundado no
niilismo e inspirado por um estranho manifesto, Harry cria a estranha teoria de
possuir em si dois seres existentes em constante conflito. De um lado, há o ser
racional e socializado; do outro, o lobo, um ser domado pelo lado mais social
de Harry, mas que em certos momentos assume o controle e faz o pobre homem
assumir uma postura selvagem.
Todavia, no
próprio manifesto do Lobo da Estepe, Harry se depara com a verdade de que tal
cisão entre dois seres é na verdade uma ilusão simplista do mundo moderno
negado pelo protagonista do romance. Podemos dizer que a divisão entre racional
e irracional remete tanto ao freudismo quanto ao cartesianismo, com sua divisão
entre alma e corpo. O manifesto deixa clara a existência de diversos seres
dentro de um único, que somos vários em nossas manifestações e que a cisão
entre homem e lobo nada mais é do que uma tentativa esquemática de entendimento
dessa multiplicidade de seres os quais somos para de alguma forma não sucumbirmos
diante da loucura.
Impossível não
ler tal enredo sem lembrar dos escritos de Bauman feitos algumas décadas depois
acerca da desconstrução de uma identidade racional e completa em si mesma,
seguindo o modelo de pensamento liberal europeu. Em especial os textos de O mal-estar na pós-modernidade denunciam
os modos como os habitantes da sociedade ocidental, em particular os com relativo
poder aquisitivo, tentam de todas as formas disfarçar de si mesmos a angústia
diante de um mundo cheio de demandas que geram um profundo sentimento de cisão
e de náusea, por conta da incerteza em relação à própria identidade que os
indivíduos atuais devem encarar.
Se Harry apela
para a crença na cisão entre homem e lobo, nós muitas vezes nos afundamos no
consumismo ou em outras formas de simplismo ontológico as quais nos tragam
alguma certeza acerca do que e de quem somos. O que Hermann Hesse faz é negar a
divisão fixa criada pela psicanálise em suas origens e afirmada por autores
como Robert Louis Stevenson, em seu famoso O médico e o monstro. Para Hesse, assim como para Bauman, não há como fugir
das várias máscaras que somos e é preciso achar alguma forma de viver o
minimamente bem com tal fato.
Em O lobo da estepe é Hermínia quem
começará a iniciar Harry nos mistérios ditos no manifesto no tocante às
múltiplas identidades apresentadas por ele em seu andar angustiado por esse
mundo. A personagem, que em outros tempos foi Hermann, é o reflexo mais concreto
do modo fluido como as pessoas são e agem em tempos modernos tardios e que por meio
uma série de experiências, que começam com aulas de dançam e se aprofundam na
vida boêmia, a moça ensinará a Harry uma nova função da arte, que está além da
erudição exibida pelo pobre homem que não consegue se livrar das raízes
situacionais de sua classe.
Mas aqui não falo
de função da arte como algo pedagógico ou pragmático. Falo de sensitividade
mesmo. Em outros textos meus, falei de dois tipos de leitores existentes no
mundo: o leitor por status ou obrigação, aquela pessoa cuja obrigatoriedade
reina em seu ato de leitura, seja por questões de classe social ou de prestígio
acadêmico – geralmente para melhorar seu currículo Lattes e as chances de obter
sucesso em instâncias maiores do mundo da pesquisa – e o leitor desassossegado,
o leitor idealizado por José Saramago, que se propõe a ler como se não houvesse
amanhã, como diria Gabriel García Márquez. Podemos considerar Harry como um
membro do primeiro tipo de leitor, assim como boa parte das personagens
analisadas e belamente desenhadas por Virginia Woolf em seu Noite e dia, personagens estas que
definiram um cânone de leitura como algo absoluto, julgando como ideológico e
político tudo que coloca entre parênteses esse cânone, como bem diria Terry
Eagleton em seu ensaio sobre teoria literária, quando ele afirma o hábito de
muitas pessoas só verem como política as análises feitas pelos outros.
Hermínia leva
Harry a sair de sua vida parada e conceitual para sentir em plenitude os
desvarios de um tempo que exige a paródia e o humor para não morrermos diante
do absurdo de sermos vários. Por meio do sensacionismo, Harry descobre o
erotismo da arte sentida na carne, chegando inclusive a sentir o amor. E ao
adentrar no macabro teatro mágico, descobre o encantamento de se ver a si mesmo
em diversos ângulos, o que o leva ao temor e tremor, mas também à liberdade.
No final das
contas, Hermínia ensina a Harry, com a ajuda de figuras como Pablo e Maria, que
somente por meio do desassossego é possível se ter alguma paz, paz esta obtida
pela consciência de si mesmo e pela vida autêntica. Muitas pessoas podem ver em
Harry uma forma ainda mais decadente de Nietzsche, ainda mais por certos
trechos de falas suas altamente egocêntricas e repletas de um certo complexo de
não compreensão. Mas na verdade, temos de ver Harry como a concretização do
projeto desenvolvido pelo teórico alemão em seus textos: a arte como uma
transcendência de uma vida simplesmente regida pelo pensamento de rebanho, seja
ele regido pela lógica do mercado ou por políticas que anulem, de alguma forma,
a individualidade de seus seguidores.
Tanto que no
decorrer do romance há uma constante retomada dos pensamento perturbadores de
Harry diante da aparência falsa do mundo no qual vive. Em diversos momentos,
pensa mesmo em se matar, lembrando o dilema filosófico mais relevante para
Albert Camus: o suicídio em tempos nos quais nada mais faz sentido. Todavia,
assim como o pensador francês, Harry apela para a revolta por meio da arte, por
meio do humor e da paródia e renasce para encarar a realidade bruta da qual faz
parte.
Ao contrário de
Martin, protagonista de Equus, filme
incrível de Sidney Lumet, que sucumbe
a loucura por ter o princípio de prazer anulado pela realidade opressora do
conservadorismo e de uma realidade familiar cindida; e de Venâncio, personagem
de A república dos sonhos, que parece
sair do sanatório resignado a seguir fugindo da realidade cruel do mundo cheio
de conflitos e desgraças, Harry parece adquirir uma nova força mostrando-se
mais apto a encarar o fato de ser vários em um em uma realidade opressora e
inautêntica, regida pelo capitalismo até mesmo nas questões de gosto e de
sensitividade.
Muitos podem ver no
texto de Hermann Hesse – curiosa relação deve haver entre o nome do autor e de
Hermínia e Hermann no livro – uma ode ao sofrimento e ao nietzscheísmo. Porém, o
próprio autor, mesmo sabendo não ter como controlar as intenções leitoras que
regem a construção de significados, afirma em uma nota explicativa ser esta uma
obra de redenção, não de sofrimento. Em seu projeto literário, Hesse procura
mostrar como a arte, quando livre de uma preocupação meramente erudita, quando
preocupada em realmente ampliar os limites de percepção e sensitividade dos
leitores, tem dentro de si os caminhos para a liberdade.
Talvez haja aí
muito do ideal humanista tão criticado por teóricos como Sartre e Eagleton,
mais cultos do que e mais aprofundados nas verves marxistas as quais espero
conhecer melhor um dia. Ainda assim, em um tempo no qual as falsas promessas de
unidade de ser se tornam cada dia maiores com discursos conservadores,
consumistas e fundamentalista, os quais em um contexto de cada vez maior número
pessoas desprovidas ou desinteressadas pelo atos de leitura, há muito no texto
de Hesse que deve ser levado em conta no sentido de promover uma difusão da
arte, nos teatros mágicos da vida, para promover o autoconhecimento humano e a
sua não submissão a qualquer regime de verdades prontas.
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