Jack London, vozes do além
Se o gênio
saísse da lâmpada e nos desse a possibilidade de pedir estes três desejos que
só ele pode conceder, cada um teria seguramente ao menos um ente muito querido,
desses que nos marcam com sua partida, com quem gostaríamos de trocar as
últimas palavras, os últimos olhares, antes do adeus. É esse impulso o que nos
leva, ante uma perda importante, à sua fotografia, sua última mensagem de
telefone, ou qualquer coisa que signifique um rastro seu.
No último filme de
Ariel Rotter, Luz incidente, com
fortes toques autobiográficos, Luisa (Erica Rivas) cheira com intensidade a camisa
de seu companheiro recém-falecido para tentar reter através do cheiro que
deixou aí algo dele. Volta ao lugar do acidente para buscar, entre outros
restos dispersos, algo sem o qual não pode continuar respirando, nem seguir
adiante. Eram os anos 1970. Hoje recorremos à técnica na procura desses restos
dispersos.
No último
dia 22 de novembro passaram-se 100 anos da morte do romancista Jack London –
efeméride pouco lembrada; obras suas, reconhecidas, como Caninos brancos (1906) e O chamado
da floresta (1903) seguem alimentando a imaginação de incontáveis gerações
de leitores. Em 2001, chegou ao Brasil uma reedição de uma antologia de contos
que contêm relatos marcados pelas experiências do escritor em Klondike, Canadá, onde esteve na busca do ouro, e outros mais contestatórios, que, reafirmam-no entre um
desses contadores de história já quase peça rara na atualidade.
Um
programa dedicado à ciência, da emissora italiana Rai Ter marcou a data do centenário lembrando o trabalho pioneiro do físico Carl Haber, quem juntamente com o
biógrafo do autor de Caninos brancos, Alex Kershaw, passou três anos na
elaboração de um projeto cujo interesse é revelar a voz do escritor a partir
das gravações que haviam sido realizadas em 1915: London utilizava um aparelho que podemos dizer ser uma espécie de gravador de voz:
composto, então, por um cilindro de cera, onde registrava suas cartas que depois eram transcritas por um datilógrafo.
A gravação
recuperada reproduz a resposta do escritor ao poeta Max Ehrmann, quem lhe
perguntava, em carta anterior, se o que contava no livro O andarilho das estrelas sobre as
condições nas prisões estadunidenses eram verdade. O escritor que vagou pelos
Estados Unidos no início do século passado, foi aventureiro em busca de ouro no
Canadá, correspondente de guerra, caçador de focas na Sibéria, marinheiro,
esteve várias vezes preso tanto por suas vigorosas ideias socialistas como por
sua condição de transeunte sem emprego e sem residência fixa, respondeu o que
agora se pode ouvir muito bem:
“Querido Max
Ehrmann:
Só uma
rápida carta, antes de partir para o Havaí. Só quero lhe contar que tudo
relativo às prisões da Califórnia no romance O andarilho das estrelas é verdade. Ed. Morell é um homem de
verdade, e Edward Morell é seu nome verdadeiro. Tinha uma sentença de cinquenta
anos e passou cinco deles numa solitária, como descrevi. Há dois anos Jake
Oppenheimer foi executado na Califórnia por assalto e resistência à autoridade.
Só posso repetir que o que descrevi é corriqueiro na Califórnia até o ano de
1913. Não sei o que aconteceu depois disso.
Se alguma
vez chegar a ler um livro meu intitulado A
estrada, em que dou algumas pistas sobre minhas experiências, poderá
observar que no centro penitenciário do condado de Erie, em Buffalo, Nova York,
preferi não dar grandes detalhes de boa parte do pior que vi. O que encontrei
ali era impublicável, quase impensável. Ainda estou intrigado por saber de que
maneira pude afetá-lo à maneira como tratei a situação de Cristo em Jerusalém”.
Sua voz parece
vinda do além. Algo que teria sido perfeitamente verossímil para os pais de Jack
que eram praticantes do espiritismo. No programa é possível, além de ouvi-lo, compreender
melhor sobre as referências que dão forma ao conto “Acender um fogo” e ao filme
Na natureza selvagem, em que o ator
Sean Penn recupera, como diretor, uma história real que poderia ter sido, precisamente,
a de uma personagem de London, ou a dele mesmo.
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