História de quem foge e de quem fica, de Elena Ferrante
Por Pedro Fernandes
A
grandiosidade de um escritor encontra-se na capacidade de falar sempre sobre a
mesma coisa sem nunca deixar de parecer ao leitor que é a primeira vez que fala
sobre. Assim, não resta dúvida de que Elena Ferrante filia-se à grande tradição
do romance como a interessada em, no âmbito da literatura italiana, repensar os
estatutos sobre a mulher, e no âmbito universal, contribuir para o debate sobre
diversos conceitos e lugares inaugurados e sedimentados pelo feminismo.
No terceiro
volume que integra a série napolitana – ou no romance cuja estrutura deve ao buildungsroman, tipo em que se expõe de
forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico,
estético, social ou político de um sujeito desde sua tenra idade – os temas são os mesmos de
quando começamos acompanhar sobre a vida de Lenu, alterego da romancista, e Lila,
o outro de Lenu: as maneiras diversas de encarar a realidade e os desafios por
ela impostos, o embate nas relações amorosas e as reflexões sobre o papel das
mulheres numa sociedade marcadamente dominada pelos homens, o esforço da criação
literária e os bastidores sobre a gestão e tessitura do próprio romance que
temos diante de nós, as relações de força do capital numa inflexão contínua capaz
de favorecer as transformações mais inesperadas possíveis em nome de
determinados status quo.
O que o
leitor encontrará de diferente em História
de quem foge e de quem fica – e não é pouco – é o extenso painel de
degradação do chamado ideal de civilização, a efervescência do fascismo numa
ocasião em que a história atravessa um dos períodos de maior ebulição, o dos
levantes de estudantes, mulheres e trabalhadores numa Europa – e na mesma maré
numa Itália – pós-Segunda Guerra. Outra qualidade admirável em Elena Ferrante
está na maneira como faz relacionar de forma dialética essas ebulições sociais,
políticas, culturais e econômicas no comezinho das personagens, sempre capazes
de se atravessar no âmbito individual pela mesma náusea com que esses elementos
vibram fora, na arena da sociedade.
Assim, se
este título evoca uma situação particular da narrativa – o casamento de Lenu,
sua saída de Nápoles para ir viver em Florença, e o retorno de Lila a Nápoles –
evoca também a fuga e permanência dos indivíduos na participação das ações coletivas,
como o engajamento de Lila com os movimentos operários e de combate ao fascismo e
o fechamento de Lenu ao cotidiano da casa, depois de publicar o primeiro romance
que lhe projeta, embora, evidentemente, não seja possível amarrar cada uma das
personagens à situações tão delimitadas.
Lenu, por exemplo, também estará, no
princípio, engajada socialmente nos debates em favor do proletariado, mas suas
armas de atuação, pelo contexto onde se insere, são outras. É nessa ocasião que
Elena Ferrante cobra a necessidade de incursão do intelectual sobre as itinerâncias
de seu tempo embora, num contexto em que os valores individuais começam a obter
um peso maior que a coletividade, produto de um ideal do bem-estar do indivíduo
mesmo que este não esteja, como no caso da protagonista narradora, afinado com
os projetos articulados noutro tempo. Aqui também se confirma aquela condição
universal que parece ser a da impossibilidade de ajustamento do indivíduo no
mundo simplesmente porque sento isto um sentido é algo que nos escapa. Não é o caso
de o destino obter uma atuação de manipulação de nossas condutas mas o de que a
luta pela vida é contínua e que nunca saberemos ao certo se o lugar que alcançamos
era o lugar que queríamos ou se o que queríamos é mesmo o que pensávamos.
Se por um
lado, a narradora observa a continuidade da existência – seja pela condição de
mãe de duas filhas e por reencontros com a irmã em mancebo com uma figura de sua
geração e se não sua inimiga aquela que deve-se evitar qualquer tipo de contato
– por outro ganha aqui a força de um contínuo desencanto ou descrédito frente a
possibilidade de uma âncora capaz de tornar o mundo e as coisas numa placidez
sadia. O retorno à periferia de Nápoles – a marca havia ficado no reencontro com
a amiga numa periferia ainda mais imunda que a que nasceram quando Lina sai de casa,
dos mimos de mulher bem-posta socialmente para viver na miséria com o amigo Enzo
e o pequeno filho Geovanne – é o motivo para essa visão. Possivelmente, o
bairro onde viveu nunca tenha sido de outra maneira, mas é agora o olhar desfeito
do encanto infantil, aquele capaz de tornar as menores coisas numa amplidão de
sentidos e de significados e agora não mais alcançados pela memória de adulta. Por
vezes, é a constatação de que a vida é ato contínuo e que nada será de novo do
que já foi no passado. A sujeira das ruas, a violência gratuita, a perseguição
às liberdades comuns, o falatório, os descasos, tudo, a degenerescência do
bairro, é entrevisto como a ruína da humanidade, embora esta seja uma
consciência em desenvolvimento para Lenu da sua relação com a força da esquerda
da qual a família do seu companheiro, o professor Pietro, é simpatizante e ligada.
Se a violência
e o desencanto é um dos temas preponderantes em História de quem foge e de quem fica, não para de se marcar
as irrupções amorosas – das mais secretas, como a paixão de Alfonso pelo patrão
Michelle ou de Lena por Nino Sarratore, às mais explícitas como a já citada da
irmã de Lena, Elsa e o irmão de Michelle, Marcelo – há um tema, cuja fonte serve
à inspiração do segundo livro da Lenu escritora, que prepondera aqui: sobre o
lugar da mulher na história – seu levante na vida, nos discursos, na profissão,
na literatura. Isto é, este é um romance em que se evidencia que “Eva é Adão
mulher”; a constatação de que essa é uma operação cultural, “divina tão bem
lograda que ela mesma, em si, não sabe o que é, tem lineamentos maleáveis, não
possui uma língua própria, não tem uma lógica e um estilo próprios, forma-se como
nada. Condição terrível”. Essa invulgar situação de desajuste no mundo – cujo
viés mais existencialista foi evidenciado acima – é o da própria Elena Greco,
significação da mulher em sua integração desajustada num mundo cuja essência de
todas as coisas está laboriosamente criada pelos homens – mesmo as figuras
femininas de grande porte nas representações literárias ausentes na cultura
italiana e presentes no universo russo com Tolstói, francês com Flaubert,
inglês com Defoe, como observa a narradora a certa altura. Ou seja, volta a
ganhar eco aquela constatação sobre a necessidade de uma existência plena do
feminino com todas as suas contradições possíveis afirmadas pela voz feminina
tal qual almeja desde a infância e ecoa mesmo fora desse romance napolitano –
para citar o caso de Dias de abandono,
outro livro da Elena Ferrante cujo tema reaparece. Em Elena Ferrante os temas
romanceados vão e voltam, tornam-se questões metarranativas, uma força fecunda e
extremamente criativa e estruturadora do romance.
O tema da
mulher é aqui investigado pela sorte diversa de ângulos: o da violência do
homem contra a mulher, em sua pluralidade de possíveis, sexual, física,
psicológica; o da imposição sócio-político-econômico, a condenação da mulher
aos trabalhos mais degradantes, os baixos salários, sua impossibilidade na
tomada de decisões sobre questões diversas, da casa às posições públicas; o
inventário de imposições culturais baseadas na determinação biológica: o de
estarem condenadas à maternidade, a não-partilha no ato sexual; a servidão da
mulher aos impulsos sexuais do macho: em toda parte a narradora vê-se
assediada, sabe sobre o assédio e é temerosa de a qualquer momento está condenada
a reviver a lastimável cena de quando adolescente assediada pelo pai de Nino na
casa de férias em Ishia.
É uma denúncia explicita sobre o falocentrismo em
todas as esferas – das individuais às coletivas: “Os homens eram fixados demais
nele, no pau, tinham um enorme orgulho dele e estavam convencidos de que você
devia admirá-lo ainda mais que eles”, observa a narradora que, apesar de várias
inserções da mulher – e ela é prova disso – não são suficientes para sua
libertação e mudam-se os estratos sociais e as maneiras de violência contra ela
adquire novas formas. Também se mudam as gerações mas as novas ainda estão carcomidas
pela sorte negativa do machismo – como quando se vê diante o impeditivo da mãe
em não aceitar o não casamento da Lenu no civil e depois aceitar o mancebo
da filha mais nova com Marcelo Solara. Lenu é ela própria o signo desse
impasse: a mulher independente mas que precisa lidar com o que a tradição cultural
lhe impôs, ser mãe, dona de casa e
mulher para um homem, ao ponto de ver-se em todas as funções como sujeito deslocado,
preso numa redoma, vazia de tudo – dos gestos mais triviais ao sexo.
As evidências
temáticas, apesar de se relacionarem com um tempo mais ou menos distante do
nosso – referem-se ao período de gestação dos primeiros computadores (fato recorrente
no romance dada a participação de Lila e Enzo na manipulação das primeira
máquinas da IBM o que abre um debate em voga então que é o da substituição de
variadas tarefas desempenhadas pelo homem para dar vez à máquina – não são
meramente ilustrativas do passado. Elas estão muito vivas no debate atual e com
o crescente recrudescimento das liberdades e cinzelamento do ideal democrático
que pareceu vingar a partir da queda do muro de Berlim e o fim da guerra fria.
Nesse debate, aliás, não é necessário nem evocar a Itália de História de quem foge de quem fica
porque o Brasil tem estado entre as nações em que certos fantasmas muito caros
à nossa sobrevivência enquanto sociedade cada vez mais ditam seus ultrapassados
modelos de sociedade. Logo, o romance de Elena Ferrante no instante que revive
um dos períodos mais dramáticos da Itália pós-Guerra, em que denuncia toda
sorte de violações de uma cultura interessada no lucro e na opressão, se constitui
num alerta de que a história é um contínuo roda-mundo – todos os discursos
inflamados dos jovens do passado tornam-se mais tarde na sorte de homicídios a
qualquer custo simplesmente porque formam uma parte que não aceita conviver com
a maneira de pensar diferente do outro.
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