Crime e castigo: relato psicológico de um crime
Por Carlos Spinosa Dominguéz
Dostoiévski
é o único que me ensinou algo em psicologia.
Nietzsche
“Como
sempre, a velha estava de cabeça nua. Os seus escassos cabelos brancos,
disseminados e distantes, gordurosos e oleosos, também estavam, como sempre,
entrançados em forma de rabo de rato e presos por um dente de pente, formando
carrapito sobre a nuca.
Deu-lhe o
golpe precisamente na saliência do crânio, para o que contribuiu a baixa
estatura da vítima. Continuava ainda segurando o objeto de penhor numa das
mãos. A seguir feriu-a pela segunda e pela terceira vez, sempre na saliência do
crânio. O sangue brotou como de um copo entornado, e o corpo tombou para a
frente, sobre o chão. Ele se deitou para trás para facilitar a queda e
inclinou-se sobre o rosto da velha: estava morta. As pupilas dos olhos,
dilatadas, pareciam querer saltar-lhes das órbitas; a fronte e o rosto
contorciam-se nas convulsões da agonia.
Deixou a
machada no chão, ao lado da morta, e começou imediatamente a revistar-lhe os
bolsos, procurando não manchar as mãos no sangue que jorrava. Começou pelo
bolso da direita, aquele de onde ela tirara as chaves da última vez. Conservava
toda a sua lucidez de espírito e já não sentia náuseas nem vertigens; apenas as
mãos lhe tremiam ainda. Mais tarde havia de recordar a maneira sensata e
prudente como se conduzira, como tivera o cuidado de não se manchar... Tirou as
chaves; tal como antes, estavam todas juntas, num molho, por meio de um só aro
de aço. Assim que as teve em seu poder, dirigiu-se correndo para o quarto”.
O fragmento anterior
corresponde à descrição de um dos crimes mais famosos da literatura universal.
É de Crime e castigo que juntamente com
Os irmãos Karamázov é o romance mais conhecido
de todos os escritos por Fiódor Dostiévski. Com Guerra e paz, de Tolstói divide ainda o privilégio de ser considerada
uma das obras mais influentes da literatura russa. Quando publicada há 150 anos
logo obteve notável êxito e foi traduzida em várias línguas. Poucos anos depois
que o cinema deu seus primeiros passos foi levada à grande tela. A primeira
versão é de 1909 e foi realizada na Rússia, como a mais recente, que data de
2007. No total, até agora, existem umas vinte adaptações do gênero, feitas nos
Estados Unidos, Alemanha, França, México, Finlândia e Peru.
cena de Crime e castigo. Filme de Lev Kulidzhanov (1970). |
Dostoiévski começou
a escrever Guerra e paz em 1865.
Preencheu três cadernos de anotações que foram editados postumamente com o
título de Os cadernos de Crime e castigo.
A leitura dessas páginas permite o leitor seguir o processo de composição e escrita
do romance. E o leva a manter contato com versões alternativas do desfecho da
obra bem como observações sobre algumas personagens como Sônia Siemiônovna e
Svidrigáilov. Um detalhe surpreendente é que originalmente essa obra havia sido
pensada para ser um longo conto ou uma novela narrada em primeira pessoa. Seria
a confissão de Raskólhnikov, quem, retrospectivamente, reconstruiria seu crime
depois do arrependimento. De modo que, em sua primeira versão, Crime e castigo estava mais próximo de Memórias do subsolo que do romance que
hoje conhecemos.
O romance
primeiro apareceu em forma de folhetim na revista O mensageiro russo que publicou doze capítulos e depois – no mesmo
ano de 1866 – apareceu como livro. A maneira como o livro veio a lume serviu
para restaurar a posição do autor como um dos melhores da Rússia de então. Marcou,
também, o início de sua fase da maturidade, quando criou suas obras mais
importantes: além de Os irmãos Karamázov
(1880), O idiota (1869) e Os demônios (1872). De acordo com a
opinião crítica de Ettore lo Gatto, com esses romances, assim como seu pessoal Diário de um escritor, Dostoiévski acrescentou
sua influência, apesar das polêmicas político-ideológicas que mais tarde
ganharam mais força que a obra. Aos temas tratados por poetas, narradores e críticos,
o autor de Humilhados e ofendidos incorporou
“precisamente o caráter denominado dostoiévskiano, em que racionalidade e irracionalidade
chocam-se entre si enquanto valores intelectuais e a normalidade se funde com
a anormalidade demarcada por penetração psicológica”.
A grande acolhida
que teve Crime e castigo contrastou com
a reação desfavorável da imprensa liberal, que se colocou ferozmente contra
o retrato do protagonista. Várias décadas depois o romance teve outro crítico
desapiedado com Vladimir Nabokov. Nas notas de suas aulas sobre literatura
russa estão recolhidas suas opiniões. Reconhecia que sua posição a respeito de
Dostoiévski era curiosa e difícil. Para o autor de Lolita, Dostoiévski “não era um grande escritor mas um escritor
bastante medíocre: com tiradas de excelente humor, separadas, desgraçadamente
por desertos de vulgaridade literária”. E sobre o protagonista de crime e castigo
afirmou, entre outras coisas que “não se sabe porque assassina a velha agiota e sua irmã”.
Trata-se, enfim, de juízos discutíveis e arbitrários – mas é a opinião de
Nabokov.
Inclusive, muitos dos que leram o romance sabem de memória em traços largos qual é seu esqueleto
argumentativo: Raskólhnikov é um jovem que precisou abandonar a universidade
por falta de dinheiro. Apenas consegue sobreviver e nem sequer os esforços de
sua mãe e sua irmã chegam para melhorar sua situação. Esta última aceitou se casar
com o intuito de ajudá-lo e assegurar à mãe uma velhice tranquila. Isso indigna
o protagonista pois sabe se tratar de um casamento doloroso. É quando tem a
ideia de matar a velha de quem é inquilino, uma agiota desapiedada que guarda
muito dinheiro em casa. Acredita que assim poderia salvar da desgraça uma alma
nobre.
Com alucinada
frieza Raskólhnikov se dedica a elaborar um plano. Durante a consumação do ato
se vê obrigado a matar também a irmã da velha quem o surpreende no lugar do crime.
O esforço entretanto é mínimo – nesse momento ele se dá conta de que perdeu o
jogo: o dinheiro roubado é insuficiente para resolver, ainda que em pequena
medida, sua ideia de justiça. Então, segue convencido de que não cometeu crime
algum mas que só se equivocou ao matar inutilmente. O delito cometido o deixa
em grande confusão. Confessa as razões que o conduziram a isso para Sônia
Siemiônovna, uma moça pobre e boa que se prostitui para ajudar sua família e
dar de comer aos irmãos pequenos. Justamente pela pureza do seu coração
que Raskólhnikov se aproxima dela. Assombrado pelas dúvidas e pela pressão de
sua irmã e da jovem, entrega-se finalmente à polícia. É condenado a oito anos
na Sibéria, onde vai cumprir a sentença acompanhado por Sônia.
No caso de
Raskólhnikov, o castigo não é só o determinado pela justiça, mas a própria condenação
autoimposta, a penitência. Não é o típico criminoso que encontra razões para
eximir-se da culpa. Dostoiévski demonstra que a violência, inclusive quando
está motivada pelo propósito de fazer o bem, é intrinsecamente anti-humana e
que todo crime representa uma violação das normas da ética dos homens. Através
dessas ideias, transpostas do plano individual ao social, o escritor russo
julga o movimento revolucionário de seu tempo como uma reação de homens
ressentidos e ambiciosos.
O próprio Dostoiévski deu uma acertada definição de Crime e castigo: é o relato psicológico de um crime. Nesse aspecto, estamos diante de um romance de natureza não só filosófica – pelo debate que propõe – mas de cunho psicológico, pois nele se analisa, da perspectiva de quem comete um assassinato os aspectos relacionados ao ato como a culpa e o castigo. O escritor adentra de maneira admirável nos recôncavos dos sentimentos mais contraditórios da personagem enquanto deambula pelas ruas de São Petersburgo. O núcleo central do qual derivam todas as situações narradas no romance baseia-se precisamente na complexidade dos motivos que ocasiona no protagonista o delito cometido por ele. E se pode afirmar que, em contadas ocasiões, a secreta interioridade do ser humano alcança uma solidão tão completa quanto desesperada.
Raskólhnikov recusa a ética coletiva e quer experimentar os limites da liberdade mediante a transgressão da moral. Está firmemente convencido de que os fins humanitários justificam a maldade. Mas, desde que mata a velha agiota, a culpa se transforma em pesadelo permanente com o qual será incapaz de conviver. Duas ideias se tornam obsessivas nele: o bem que poderia fazer com o dinheiro e a faculdade própria de um espírito superior para apropriar-se por todos os meios desse dinheiro. Mas esses dois pontos de vista são contraditórios: um está animado por um ideal humanitário; o outro se dirige a uma doutrina do super-homem, que distingue rigorosamente os seres humanos comuns dos eleitos. O único aspecto que possui em comum é que ambos buscam uma solução no delito.
O próprio Dostoiévski deu uma acertada definição de Crime e castigo: é o relato psicológico de um crime. Nesse aspecto, estamos diante de um romance de natureza não só filosófica – pelo debate que propõe – mas de cunho psicológico, pois nele se analisa, da perspectiva de quem comete um assassinato os aspectos relacionados ao ato como a culpa e o castigo. O escritor adentra de maneira admirável nos recôncavos dos sentimentos mais contraditórios da personagem enquanto deambula pelas ruas de São Petersburgo. O núcleo central do qual derivam todas as situações narradas no romance baseia-se precisamente na complexidade dos motivos que ocasiona no protagonista o delito cometido por ele. E se pode afirmar que, em contadas ocasiões, a secreta interioridade do ser humano alcança uma solidão tão completa quanto desesperada.
Raskólhnikov recusa a ética coletiva e quer experimentar os limites da liberdade mediante a transgressão da moral. Está firmemente convencido de que os fins humanitários justificam a maldade. Mas, desde que mata a velha agiota, a culpa se transforma em pesadelo permanente com o qual será incapaz de conviver. Duas ideias se tornam obsessivas nele: o bem que poderia fazer com o dinheiro e a faculdade própria de um espírito superior para apropriar-se por todos os meios desse dinheiro. Mas esses dois pontos de vista são contraditórios: um está animado por um ideal humanitário; o outro se dirige a uma doutrina do super-homem, que distingue rigorosamente os seres humanos comuns dos eleitos. O único aspecto que possui em comum é que ambos buscam uma solução no delito.
No interior
da rica galeria de personagens dostoiévskianas, Raskólhnikov se destaca como uma
das mais complexas dado sua força intelectual e moral. Seu amigo Razumíkhin o
descreve com estas palavras: “áspero, severo, altivo e orgulhoso; nos últimos tempos (e
pode ser que até já muito antes) tornou-se rabugento e neurótico. Lá generoso e
bom é ele. Não gosta de exteriorizar os seus sentimentos e prefere proceder com
dureza a revelar por meio de palavras aquilo que guarda no seu coração. Além disso,
às vezes não é nada neurótico, mas apenas frio e de uma insensibilidade que
toca a desumanidade; é assim mesmo, como se nele altercassem dois caracteres
desencontrados, que se manifestassem alternadamente. Às vezes é terrivelmente
taciturno. Não tem tempo para nada, toda a gente o incomoda, e fica deitado sem
fazer nada. Não ouve o que as pessoas dizem. Nunca se interessa por uma coisa
que noutro tempo o interessou. É terrivelmente orgulhoso, admira-se a si
próprio e, segundo parece, tem algumas razões para isso”.
Apesar de
seu isolamento dos demais, não é frio nem duro de coração. Antes é acessível ao
amor, à piedade e aos sentimentos ternos e generosos. Como característica
principal de seu espírito, possui a capacidade de concentrar-se teoricamente e
de transformar em pensamento as torturas de sua alma. Se viu nele uma
antecipação do super-homem nietzschiano, o ser humano além do Bem e do Mal.
Ao final, aparece nele o caráter russo, com a ideia de uma purificação mística à
base da humildade e da renúncia. Aceita a condenação dos homens vulgares e
graças a ela se salva. É a trágica redenção russa através da estoica
passividade, algo que na Europa não se podia compreender. Também convém
sublinhar que Raskólhnikov se apresenta como um espelho no qual se refletem os
principais motivos que agitarão o seu tempo – do super-homem de Nietzsche às
ideias sociais de Karl Marx, bem como o misticismo renunciador e messiânico que
Dostoiévski via no povo russo.
No romance
há ainda outras personagens de grande importância. Entre elas se destacam duas
especialmente interessantes. Uma é Sônia Siemiônovna, a jovem que, apesar de se
prostituir, se mantém tão nobre que é capaz de redimir Raskólhnikov. Pertence a
um núcleo feminino predileto do romantismo e do pós-romantismo, exemplificada por Maria de Os mistérios de Paris,
de Eugène Sue, e Fantine de Os miseráveis,
de Victor Hugo. Mas diferentemente delas, Sônia se sente responsável por sua
degradação e admite a necessidade de um sacrífico que lhe redima. É forte e
está segura de sua fé, o que lhe permite arrastar consigo Raskólhnikov. Em
certo sentido, representa um novo tipo de mulher nascida do feminismo do século
XIX: já não é vítima indefesa, mas uma criatura que pode salvar-se e salvar os
outros, ao assumir o pecado alheio como se fosse seu.
Outra
personagem significativa é Porfíri Pietróvitch, o juiz de instrução que conduz
o caso. Alguns críticos o catalogam como personagem secundária. Pessoalmente,
penso que em seu caso a classificação é pouco adequada, pois até em várias
situações é figura-chave do romance. Atua como comentarista da trama, segue e
intui o seu andamento desde o início. É também quem secretamente a conduz
até seu inevitável desenlace. Segundo ele próprio confessa, se considera um
homem fracassado e intui quem é o autor do assassinato da velha, pois ele mesmo
sentiu gritar dentro de si um Raskólhinkov, um super-homem preparado para
provar os limites da liberdade e elevar-se acima de seus semelhantes. Porfíri
antecipa o tipo policial sossegado e consciente que décadas depois se tornará
em figura indispensável para a narrativa policial.
Crime e castigo perdura como o mais conhecido
e famoso dos romances de Dostoiévski. Possivelmente, isso se deve graças ao
atrativo de uma situação de fundo policial que serve ao seu autor para abordar
dois grandes temas, das fronteiras da liberdade até a legitimação da violência. Psiquiatras
e criminalistas leem essa obra do escritor russo para estudar as reações de
Raskólhinkov, como se nelas vislumbrassem um trabalho de investigação científica. E com
perdão de Nabokov, esta constitui, sim, a obra-prima de um grande escritor. Somente os
diálogos entre Raskólhinkov e Porfíri são considerados por autores como Stefan
Zweig, um dos pontos altos da literatura universal.
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* Este texto é uma tradução livre para "Relato psicológico de un crimen", publicado em Cubaencuentro.
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