Como eram Cervantes e Shakespeare
Por Antonio Espinoza
Miguel de Cervantes visto no falso retrato de Juan de Járuigui. |
Como eram
fisicamente os dois grandes gênios da literatura universal Miguel de Cervantes
Saavedra e William Shakespeare? É tanta a abundância de retratos de um e outro
que há quatro séculos da morte de ambas as personagens deveríamos saber com
plena certeza como eram em vida. Mas não é bem assim: suas fisionomias continuam
um mistério. A única coisa certa mesmo é um testemunho pontual deixado por
Cervantes sobre sua aparência física, enquanto o quadro que supostamente
expressaria em detalhes a dita aparência e que supostamente haveria sido executado
em vida do escritor, é falso. Pior ainda, os muitos quadros realizados
depois de sua morte, além de serem obras muito medíocres, oferecem imagens tão
dispares e tão forçadas de Cervantes que dificilmente podemos escolher alguma como a mais próxima da realidade. No caso de Shakespeare, não é diferente, pois
vários dos retratos do dramaturgo – grande parte realizados depois de sua morte – nos
apresentam também imagens muito diferentes de sua pessoa. E, cada vez que se anuncia
a descoberta do “verdadeiro rosto” de Shakespeare, como aconteceu em 2015, a
festa dura muito pouco e logo surgem as dúvidas. Revisemos brevemente a
história das imagens polêmicas dessas duas personagens.
De rosto aquilino
No prólogo
da edição de 1613 de suas Novelas
exemplares, Miguel de Cervantes se descreve fisicamente da seguinte
maneira: “Este que vedes aqui, de rosto aquilino, de cabelo castanho, testa
lisa e desembaraçada, de olhos alegres e nariz curvo, embora bem-proporcionado;
as barbas de prata, que não faz vinte anos eram de ouro, os bigodes grandes, a
boca pequena, os dentes nem miúdos nem numerosos, porque tem apenas seis, e
estes em más condições e piores disposições, porque não se encaixam uns com os
outros; o corpo entre os dois extremos, nem grande nem pequeno, de cor viva,
mais branca que morena; as costas meio castigadas e não muito ligeiro de pés –
este, digo, é o rosto do autor de A
Galateia e de Dom Quixote de La Mancha, e do que escreveu a Viagem do Parnaso, à imitação da de César
Caporal Perusino, e outras obras que andam extraviadas por aí, talvez sem o
nome de seu dono. Chama-se comumente Miguel de Cervantes Saavedra. Foi soldado
muitos anos e escravo cinco e meio, quando aprendeu a ter paciência nas
adversidades”.
Algumas linhas
antes de sua descrição física, Cervantes assegura que o “famoso dom Juan de
Jáurigui”, pintor e poeta com quem manteve amizade, fez um retrato seu. Juan de
Jáurigui (Sevilha, 1583 – Madri, 1641) foi, de fato, amigo do escritor, mas o
retrato que supostamente pintou nunca foi localizado. O quadro que pertence à Academia
Real de Língua Espanhola e exibida na grande exposição “Miguel de Cervantes: da
vida ao mito” realizada pela Biblioteca Nacional da Espanha, o famoso e mais
reproduzido dos supostos retratos do escritor, não foi pintado por Jáurigui nem
data de 1600. Foi doado à Academia Real pelo restaurador José Albiol em 1911 e
desde o início provocou acalorados debates entre os cervantistas.
A polêmica se
prolongou durante muitos anos, mas hoje sabemos que o quadro não é verdadeiro.
É um feito da pintura, mas foi realizado depois da morte de Cervantes e o autor
– que não foi Jáurigui – tratou de ser fiel à descrição física deixada pelo
novelista. O quadro tem duas inscrições: uma na parte superior (“Don Miguel de
Cervantes Saavedra”) e outra inferior (“Juan de Jaurigui. Pinxit, año 1600”),
mas nada o salva. E o afã do pintor por descobrir o mais exato possível as características
do escritor resultou numa pintura em falso papel da época e, o pior, de execução
frágil e medíocre. A peça encontra-se muito deteriorada pelas sucessivas
restaurações e manipulações de toda sorte que sofreu.
Existe outro
retrato atribuído a Jáurigui no qual também se quis ver o autêntico Cervantes.
O quadro nada mal pertence à coleção do Marquês da Casa Torres, mas não se
demonstra que seja uma autêntica imagem do autor do Quixote. O certo é que todos os retratos do escritor que existem
foram realizados depois da sua morte. Desgraçadamente, a grande maioria são de
autores pouco reconhecidos, bem inferiores, incapazes de realizar obras
maiores. O único grande mestre que representou Cervantes foi Francisco de Goya,
no seu famoso desenho La visión de don
Quijote, pertencente ao British Museum; a tela nos oferece um Cervantes que
se confunde com sua personagem pois se trata de um louco e velho fidalgo escrevendo
suas próprias aventuras. Esta interpretação se aproxima muito do caráter
fantástico e grotesco da série Los caprichos
(1799) do gênio espanhol.
Outro mestre
espanhol que se dedicou num momento à autoria de um retrato de Cervantes foi
Diego Velázquez. Em meados do século XIX, o quadro circulava como uma cópia
realizada por Velázquez de um retrato de Cervantes supostamente pintado por
Francisco Pacheco. Sem dúvidas, a autenticidade de ambos os quadros foi logo
questionada. Também se quis ver a figura de Cervantes numa das personagens de
outro quadro de Pacheco: San Pedro Nolasco
embarcándose para redimir cautivos (óleo sobre tela, 1600).
É bastante
diverso o número de supostos retratos de Miguel de Cervantes; entre os mais conhecidos
estão duas xilogravuras em cobre – uma realizada em Amsterdã em 1705 e outra em
Londres em 1938 –, ambas inspiradas supostamente no autorretrato que o escritor
propôs na introdução de Novelas
exemplares. A não existência de retratos fidedignos de Cervantes acabou
sendo um grande problema para a Real Academia Espanhola que, em 1773, decidiu
preparar uma edição monumental do Dom
Quixote. Apareceu então um óleo atribuído a um tal de Alonso del Arco, um
quadro que reproduz, com algumas variantes, o gravado inglês de 1738. A Academia
optou então por encarregar um desenho a José del Castillo, quem tomou como
modelo também o gravado inglês e realizou um retrato que foi impresso em 1780
por Manuel Salvador Carmona e se converteu na “versão oficial” da personagem
até 1911, quando apareceu o falso retrato atribuído a Jáurigui.
Há outros
retratos de Miguel de Cervantes. A maioria desenhos que serviram para ilustrar
edições do Quixote e outras obras do
ilustre Maneta de Lepanto em distintas épocas e países. Muitas destas obras
foram inspiradas em obras anteriores, como a xilogravura holandesa e inglesa já
mencionadas. Muitas foram inspiradas ainda no autorretrato de Cervantes
apresentado nas Novelas, sobretudo as
em que a personagem aparece com “rosto aquilino”, forjando assim sua fisionomia
e fazendo-a inverossímil. O certo é que ainda quando se tenham indicado como do
imortal novelista variados retratos, não existe um quadro completamente digno
de fé que nos permita conhecer a verdadeira aparência física de Cervantes.
Ser ou não ser
Em maio de
2015 uma notícia varreu o mundo. A revista britânica Country Life apresentou o que chamou de “descoberta literária do século”:
um suposto retrato inédito de Shakespeare – o único realizado em vida do
dramaturgo. O botânico e historiador Mark Griffiths afirmou haver descoberto o
autor isabelino na capa do livro The
herball or generall historie of plantes, publicado em Londres em 1597 e cujo
autor é John Gerard, pioneiro da botânica. A capa do livro foi ilustrada por William Rogers, quem desenhou quatro figuras humanas que se pensavam
ser imaginárias. De acordo com a revista, Griffiths precisou decodificar os
motivos florais e heráldicos em torno das figuras para revelar sua verdadeira
identidade. Segundo ele, as figuras são o próprio autor do livro (Gerard), um
botânico chamado Rember Dodoens, o secretário do tesouro da rainha Isabel I
(Lord Burghley) e Shakespeare. A suposta figura do dramaturgo, que ostenta
barba, bigode de pontas para cima e uma coroa de louros, carrega na mão direita
uma planta chamada Fritillaria e na esquerda umas espigas que segundo Griffiths
são referências ao poema Vênus e Adônis
e a obra teatro Tito Andrônico.
William Shakespeare. Retrato de Cobbe. |
Não é
primeira vez que se anuncia como
bomba ou rastilho de pólvora o “verdadeiro rosto” de William Shakespeare. No
ano de 2009, Stanley Wells, pesquisador da Universidade de Birmingham, anunciou
ao mundo a descoberta de um suposto retrato de Shakespeare que acredita ser a
autêntica imagem do bardo de Avon feita em vida. Diz que a pintura pertenceu a
Henry Wriothesley, terceiro conde de Southampton e mecenas de Shakespeare. O
quadro, propriedade da família Cobble desde o início do século XVIII estava classificado
como o retrato de uma personagem desconhecida e permaneceu esquecido durante
três séculos na residência Newbridge House na periferia de Dublin. A coleção
foi herdada em princípios dos anos oitenta por Alec Cobbe, quem ao visitar a
exposição “Searching for Shakespeare” na National Portrait Gallery, em 2006, se
surpreendeu ao ver um retrato do dramaturgo que pertence à Folker Shakespeare
Library de Washington, pois se parecia muito com o de sua coleção.
O retrato
pertencente a Alec Cobbe foi objeto de estudo durante três anos. Depois de ser
submetido a provas de Raio-X, raios ultravioleta e carbono 14, com o fim de
determinar sua autenticidade e a antiguidade tanto da tela como da moldura, chegou-se
à conclusão de que o retrato foi pintado em 1610, quando Shakespeare contava com
46 anos de idade. Para Stnaley Wells, as provas científicas realizadas
demonstram que o retrato de Cobbe é a versão original de um retrato feito em
vida de Shakespeare, do qual posteriormente foram realizadas várias cópias,
entre elas a do quadro da Folker Shakespeare Library e outro que pertence a The
Shakespeare Birthplace Trust. Wells sustenta que a autenticidade do quadro
original se reforça com a citação de Horácio que aparece na parte cima da tela:
“Principum Amicitas!”, retirada de uma ode dedicada a um dramaturgo.
Realmente é
Shakespeare o homem do Retrato de Cobbe? São muitas as dúvidas a respeito. A
verdade é que o fato de o quadro haver sido realizado em vida do dramaturgo não
significa nada. Não se sabe nem sequer
quem o pintou pois não se tem uma assinatura. Mas estas dúvidas não são
apenas em torno do retrato mencionado mas a outros supostos retratos de
Shakespeare. Assim acontece com a famosa xilogravura de Droeshout que ilustra a
entrada do First Folio das obras completas do dramaturgo, publicado em 1623.
Não se sabe qual dos Martin Droeshout (o pai ou filho) realizou o desenho nem
quais foram suas referências para representar um Shakespeare careca. O retrato,
sem dúvidas, tem seus defensores, como Tarnya Cooper curadora da mostra “Searching
for Shakespeare”, quem no catálogo referente ao evento afirma que a obra possui
mensagens ocultas!
Não existem
provas documentais fiáveis que revelem a verdadeira fisionomia de Shakespeare.
O grande bardo isabelino continua sendo um enigma. Representá-lo calvo como fez
o autor da Xilogravura Droeshout ou Gerard Johnson num busto do momento
funerário localizado na igreja onde o dramaturgo foi batizado, a Santíssima
Trindade, em Stratford-Upon-Avon, Warwickshire, Inglaterra, é simples especulação.
O mesmo pode-se dizer de outro retrato famoso: o Retrato de Chandos (óleo sobre
tela, aprox. 1610), atribuído a John Taylor, que nos apresenta também um
Shakespeare meio calvo. Mas os outros retratos não ficam para trás. O medíocre Retrato
Flower, pertencente a Royal Shakespeare Company, pintado no século XIX, é a
versão pictórica da Xilogravura Droeshout; o anônimo Retrato Grafton, pertencente
à Biblioteca John Rylands, datado de 1588, nos oferece um inverossímil Shakespeare
de 24 anos; o Retrato Coblitz (óleo sobre tela, 1847), de um pintor de nome
menor, Louis Coblitz nos oferece um Shakespeare com mãos sintéticas.
Voltando à exposição
“Searching for Shakespeare”, cabe sublinhar que esta foi organizada em torno
dos seis retratos mais conhecidos que representam Shakespeare e que no catálogo
da mostra Tarny Cooper afirma que as novas “provas científicas” foram descartando
as possibilidades de cinco dos “aspirantes” a revelar o “verdadeiro rosto” do
dramaturgo. Segundo o julgamento dos especialistas, o único com possibilidades –
embora “nunca estaremos completamente seguros”, diz Cooper – é o Retrato de Chandos.
O curioso é que este quadro é o iniciou, há quase um século e meio, a hoje
enorme coleção da National Portrait Gallery. Termos, logo, muito apropriado para
o recinto que acolheu a mostra.
Em que se
parecem os retratos de Shakespeare e de Cervantes? Onde nos oferecem mais
dúvidas que certezas. Ninguém pode demonstrar a autenticidade de nenhum dos
retratos que dizem representá-los. Sabemos como eram Erasmo, Thomas Morus e
Enrique VIII, porque Hans Holbein pintou esplêndidos retratos de todos eles. Sabemos
como era o Papa Júlio II, porque Rafael pintou um soberbo retrato. Sabemos como
era Napoleão Bonaparte, porque Jacques Louis David pintou vários retratos magníficos.
Sabemos como era Maria Antonieta, porque Elisabeth Vigée-Lebrun pintou um extraordinário
retrato dela com seus filhos. Não sabemos como eram Shakespeare e Cervantes.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução de "Cervantes y Shakespeare: el misterio de los rostros", publicado em El Universal.
Comentários