Tempestades de aço, de Ernst Jünger


Por Pedro Fernandes



Tempestades de aço, de Ernst Jünger, está marcado pelo espírito de seu tempo: aquele que, saído do romantismo, mas ainda preso a ele, acreditou de forma – se irracional aos nossos olhos de hoje – coerente e absoluta na necessidade da guerra para refundação da civilização humana. Que acreditou na ruína como base para uma diversa quantidade de impasses, inclusive espirituais de indivíduo para indivíduo. Se este é um ponto de partida e justifica a maneira louvável como o escritor constrói seus modos de ver o dia-a-dia no front, não deve ser o ponto definitivo para uma compreensão sobre a obra dentro e fora desse contexto. Isto é, o leitor não pode, de maneira alguma, passados tantos anos do conflito de 1914, e cuja expressão, ainda mais danosa, se repetiu poucos anos depois como se numa ressurreição do espírito não expurgado do conflito anterior se deixar levar por essa única perspectiva.

O relato do escritor alemão está tomado pela ambivalência – e é um discurso típico de um alheado à novidade do horror e da maneira como, de uma para outra hora, a vida humana se esvai de toda certeza que a mantém viva e em ação. É um livro que registra sobre essa atmosfera de encanto e engano ideológico que deu forma a guerra mas é também a expressão quase fotográfica da transição para uma compreensão sobre o vazio utópico que representou a monotonia dos conflitos sempre resumidos ao exercício de sobreviver e matar a qualquer custo o inimigo sem nunca se questionar acerca do porquê desse ódio mortal contra um outro que só responde pela diferença da diversidade, visto que, do ponto de vista natural todos são iguais.

Se a primeira parte, que assinala a entrada de Jünger para a frente de batalha quando ainda era só um jovem de vinte e um anos com sonhos, quase sempre é a lógica do sujeito tomado pelo espanto e o encanto com tudo isso à sua volta, da segunda metade do relato, o leitor perceberá, em situações como quando o escritor fala sobre os lugares antes de atingidos por toda sorte de artilharia e no que se tornam depois, esse titubear da consciência sobre o horror e uma certa nostalgia pelo retorno aos dias de paz.

Essa alteração da percepção não se dá, evidentemente, pela simples compreensão do sem-sentido que domina as ações de matar e escapar da morte mas pela continuidade das baixas que, faça o que precisar ser feito, ronda-lhe toda a parte e pela percepção que ganha sobre seu papel e todos os homens e mulheres no conflito: “As aldeias que atravessamos ao marchar haviam assumido o aspecto de grandes manicômios. Companhias inteiras derrubaram e arrancavam muros ou estavam sentadas sobre os telhados e destruíam as telhas. Árvores eram derrubadas, vidraças quebradas; à volta, nuvens de pó e de fumaça subiam das poderosas montanhas de escombros. Viam-se soldados em trajes masculinos e com vestidos de mulher deixados para trás pelos moradores, usando cartolas nas cabeças e correndo adoidados por ali”; “Pela primeira vez, vi ali a destruição planejada que ainda haveria de encontrar à farta mais tarde em minha vida; ela está desastrosamente atada à orientação econômica de nossa época, trazia mais prejuízos que lucros, inclusive a quem destrói, e não proporcionava nenhuma honra ao soldado”.

Agora, não espere o leitor por um mea culpa dos atos irracionais desse herói – a expressão é utilizada aqui pela força do hábito mas também tem sua conotação com o sentido clássico da epopeia uma vez que estamos diante de um sujeito que à custa de uma intervenção silenciosa e invisível do destino consegue sobreviver a uma sorte diversa de ciladas do inimigo enquanto o mundo todo desmorona e parece querer lhe engolir com toda fúria. Ficaremos toda vez balançado entre a sorte e o milagre para compreender sobre essa salvação e, por vezes, somos induzidos a acreditar que no front só morre aquele cujo espírito é tomado pela valentia desmedida e os céus sempre dará quantas chances forem necessárias aos que troçam com o própria destino. Isso também tem uma verve da astúcia que permite Ulisses sobreviver à intempérie dos deuses no seu retorno a Ítaca, embora não seja bem de retornos o que trata Tempestades de aço.

Combinando o registro do diário e da memória perspicaz, Ernst Jünger produz uma descrição autêntica sobre o dia-a-dia na guerra e dos que nela lutam e padecem: “Sim, o soldado é um mundo em si, completamente embebido na atmosfera sombria e atemorizante que pesa sobre o terreno deserto”. E o melhor: consegue encontrar uma variedade de ações num território dominado pelo barulho aterrador das armas e o silêncio ensurdecedor dos que buscam garantir os minutos seguintes da vida – seja as ações suas e dos mais próximos entre avanços e recuos, os muito breves envolvimentos amorosos, as celebrações à vida entre um confronto e outro, a saída para as férias, os poucos momentos de descanso em que se entrega à leitura, entre outros. Agora, como o próprio título deste livro sugere é o zumbir das armas que constrói um refrão contínuo que alinhava as ações aí desenvolvidas.



Tempestades de aço traça uma geografia do horror quando se detém na minuciosa descrição do front, como funcionou a transição entre o conflito em campo aberto para o conflito de trincheira, o seu funcionamento e o que fez o homem tornar-se um misto de toupeira de matar, e as marcas deixadas na perda da perfeição do corpo para toda diversidade de armas testadas in loco no front. Da guerra a céu aberto para a de trincheira, Jünger observa ainda a inserção das máquinas como apetrechos para tornar ainda mais dramática as batalhas: “Entre as invenções mais odiosas, estavam as bombas-relógio, que eram enterradas nos porões de casas não destruídas. Elas eram divididas em duas partes por uma plaquinha de metal. Uma das câmaras era ocupada pelo explosivo, a outra por um ácido. Depois que esses ovos do demônio eram escondidos, o ácido corroía a placa de metal em um trabalho renhido de semanas e acabava por detonar o explosivo”; finda aqui o claro prenúncio sobre a iminência de um outro confronto ainda mais cruel que o vivenciado por ele. Isto é, os sobreviventes parecem que não saíram saciados em definitivo quando a escalada para o mal dava só seus sinais do melhor-porvir

O que caracteriza ainda este livro, é a maneira como o relato se deixa infiltrar por um exercício contínuo dos líquidos poéticos. Desde o título cuja expressão traz não só uma imagem significativa do espírito da obra, ao entrar na tessitura dos acontecimentos quase sempre marcada pela objetividade e uma precisão racional de balística, o leitor encontra a maneira diversa de tons que o relator encontra para traduzir suas experiências com o entorno. Assim, os tiroteios estão sempre descritos como uma dança, o valsear sonoro das balas, dos foguetes, o balé mortal dos aviões rasantes, o trinado dos estilhaços das granadas.

É aqui que se verifica o denunciado por Walter Benjamin acerca do silenciamento do narrador no retorno dos campos de batalha; na perda da experiência eclética da vida pela monotonia da história e no silenciamento da fala pelo barulho das trincheiras: “Em pouco tempo, as primeiras granadas explodiram à nossa direita e esquerda. O volume da conversa foi baixando até emudecermos por completo. Todo mundo ouvia a aproximação gemente dos projéteis com aquela tensão estranha que empresta ao ouvido acuidade extrema”.

Apesar da larga tradição literária, dentro e fora da Alemanha, no contato com este texto de Ernst Jünger haver encontrado a transformação do horror numa expressão de beleza, também não é possível acreditar somente nessa perspectiva se não tiver munido da mesma lente com que o escritor enxerga a guerra tão logo chega ao front. Se não se pode dizer que este relato seja uma denúncia sobre a ganância do poder da dominação, também não se pode dizer que este seja um livro que cantou a plenos pulmões o horror. O distanciamento sisudo no contato com a extensa variedade de atentados e mortes assume-se muito mais como o tratamento objetivo do relato jornalístico que visa transmitir limpamente o que vê; depois sobra muito pouco de heroísmo e mesmo isso é descrito como uma perspicácia semidivina de um destino desinteressado do seu fim. E, antes que acusem a verve poética que apontamos acima de elemento capaz de fazer sentido esse canto de louvação, é preciso entendê-la como um exercício que visa romper com a clave monótona da descrição objetiva que estabelece o tom do relato.

Justifica-se, desse modo, o porquê este livro atravessou junto com a história do pós-guerra o lugar cativo entre os que melhor souberam falar da força com que o homem é capaz de se voltar contra o próprio homem; nisto paira sim – ainda que orientado por outra condição da civilização sobre a guerra – um alerta do qual nunca devemos esquecer: entre nossa inquestionável capacidade criativa habita uma quantidade ampla e diversa da perversidade. Nunca deixaremos de tê-la porque é da nossa natureza instintiva. Mas o grau de razão que atingimos deve ao menos servir de contrapeso nessa disputa em que a humanidade deve sempre o lugar supremo onde devemos repousar. É uma utopia, mas o que é vida sem utopias? 


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