Julio Verne e a ressignificação da leitura
Por Rafael Kafka
Muitas vezes, uma crise de
ansiedade surge por um livro lido fora de hora ou uma compra feita nas mesmas
condições. Pensei nisso nessa semana. Estava a ler o excelente, porém altamente
denso A república dos sonhos, de Nélida de Piñon, provavelmente minha próxima
resenha para este blog, quando percebi que sofria de profundas crises de
concentração. Passei como atividade avaliativa de uma das escolas onde dou
aulas a leitura de Viagem ao centro da terra, de Julio Verne, livro o qual li
quando eu tinha uns 14 anos de idade. Em 2016, minhas leituras têm sido
marcadas por um ato grau de densidade política e social e de repente eu me via
na obrigação criada por mim mesma de ler um texto que ia para o rumo da ficção científica,
gênero pouco lido por minha pessoa nesse tempo todo de vida leitora que tive.
Segui a leitura do romance de
Nélida, mas percebi o quanto eu me esforçava para tanto até que finalmente
decidi ceder ao óbvio e comecei a ler a obra de Verne. Por mais que houvesse em
meu ser uma sensação de traição diante do fato de ter deixado de lado o bom
romance que conta a história da família de Madruga e Eulália, rever o professor
Lidenbrock, Axel e o fiel escudeiro Hans, que serve de guia na fantástica viagem
ao centro do planeta, causou em mim a mesma sensação de encanto de muitos anos,
quando eu estava ali pela terceira série.
O enredo é bem simples se
comparado em engenhosidade filosófica com romances como o de gênios como Thomas
Mann. Não há aqueles períodos cheios de pensamentos profundos, rebuscados,
tortuosos a revelar as dimensões existenciais do ser humano perdido em
experiências temporais ou pacto demoníacos ou profundas narrativas polifônicas.
Não temos diante de nós também as tergiversações de um Saramago ou a magia de
um García Márquez, mas temos uma narrativa de períodos simples, diretos, quase
que didáticos que nos falam do encanto de um homem pela ciência e de sua
capacidade de fazer essa ciência virar uma grande obra literária, certamente uma
das mais importantes de todos os tempos.
Resisti a querer Verne e tentei
lê-lo juntamente com a obra de Nélida, grandiosa por seu aparato memorialístico
digno de dissertações de mestrado e longos ensaios. Ledo engano. Cada vez mais
percebo que o mundo fragmentado no qual vivemos é um mundo que profana a
leitura tornando-a também em algo fragmentado. O caro leitor pode achar isso
uma grande besteira minha, mas minhas crises de ansiedade, as quais são quase
diárias, se dão justamente pelo fato de eu não suportar a ideia de ler textos
de forma fragmentada. Desprezo o indivíduo que se propõe a ler tão somente
capítulos de textos. Admiro mais o leitor que abandona um livro vencido pelo
desinteresse do que aquele que vai a um livro proposto a ler somente este ou aquele
trecho.
Claro que tal princípio me
coloca em certos apuros, como o de querer ler muitas coisas ao mesmo tempo. Não
querendo largar Nélida, quis ler Verne e acabei me sentindo cansado, irritado e
levado a pensar na frase que inicia esse texto. Tive de deixar então a boa
autora de lado, por ora, para me dirigir ao autor francês e nesse exercício de
abandono literário pude ressignificar meu próprio hábito de ler.
O que aprendi é que literatura
nem sempre é algo grandiloquente e volumoso. Muitas vezes, no afã de sermos
pedantes e cultos, queremos ler livros cheios de complexidade e volume. Mesmo
assim, confesso morrer de pavor de Ulysses e nunca passei da página 200. Por
conta dessa arrogância, muitas vezes me prendi a um gênero de leitura mais
pesado e cansativo e exauri por demais meu cérebro e meu espírito. De uns dois
meses para cá concluir uma leitura tem sido algo bastante complicado para mim,
devo assumir. Ler Verne me fez pensar que a grande literatura não precisa ser
algo tão grandiloquente, isso não significando que ela não precise também ser
banal, tosca, maniqueísta. A grande literatura é a literatura que de alguma
maneira desafia os limites temporais do ser humano.
Poucas cenas são mais
emblemáticas do que a luta dos seres pré-históricos assistida pelos
exploradores impávidos em sua jangada no mar Lidenbrock léguas abaixo da
superfície da crosta da terra. Tal imagem passa o tamanho da pequenez humana,
mostra o quanto somos pequenos e o quanto queremos descobrir de nós mesmos e do
que nos cerca. Nessa imagem, eu me vi rodeado por uma série de livros brigando
entre si por minha atenção, sem saber por qual começar e com medo de demorar
demais para me decidir e morrer de tanto perder tanto. Eis aí um belo começo de
conto realista fantástico.
A grande literatura, Verne me
fez entender, faz o leitor sonhar. Por isso a literatura nos torna melhor: não
há no texto literário em si essa obrigação de nos ensinar algo. Todavia, há
nele uma realidade implícita, uma ontologia própria, um conjunto de modos de
ser, de situações que leva o sujeito a refletir, a cogitar, a pensar algo
diferente. O sujeito leitor aos poucos começa a ver a realidade com novos
olhos, a se inquietar. Seja no sentido mais científico da coisa, seja no
sentido mais social da realidade. Seja por uma linguagem mais politizada, seja
por uma fala mais romantizada. Mesmo que devamos tomar cuidado em não
sacralizar por demais a função do escritor, como muito já fez a burguesia
letrada de outros tempos, é inegável o poder da leitura literária de levar o
sujeito a descomprimir o seu mundo e a si mesmo rumo a um novo patamar de
possibilidades.
Ler Julio Verne me fez entender
que há momentos nos quais o cérebro nos pede que leiamos coisas leves. Haverá
os finais de semestre em que as pilhas de provas a corrigir ou de trabalhos a
cumprir estarão pesadas demais e livros de crônica ou de poemas serão tudo o
que conseguiremos digerir. Ou mistérios, romances policiais, aventuras é o que
aguentaremos. De alguma forma, porém, é importante que a literatura em nossas
vidas resista para que nesse mundo tão fragmentado tenhamos ainda algum lastro
de unidade dentro de nossos seres alquebrados por tantas obrigações a cumprir.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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