José Saramago, tão ou mais necessário
Por Pedro Fernandes
Os seres humanos não podem aceitar as coisas
como elas são, porque isso leva-nos directamente ao suicídio. Temos que
acreditar nalguma coisa e, sobretudo, temos de ter um sentimento de
responsabilidade colectiva, segundo o qual cada um de nós será responsável por
todos os outros.
José Saramago
*
O livro é só
um espaço habitado por palavras. E essa não é uma concepção que tenha adeptos
apenas entre os que lhe atribuem uma dimensão participativa na vida das pessoas
e concordam que a obra nasce toda vez que o leitor torne a vibrar as palavras
que aí habitam; entre aqueles adeptos do livro-objeto também essa ideia faz
algum sentido. Mas não é entre esses últimos que encontraremos José Saramago.
Porque a necessidade do leitor enquanto figura participativa se imprime logo na
liberdade a ele concedida no ato de construção da narrativa. É bem verdade que
há muito a literatura busca romper com a condição do leitor mero receptor –
exemplo disso são os comandos ao
narratário em A vida e as opiniões do cavalheiro
Tristram Shandy, de Laurence Sterne –, mas faltava ainda uma obra que não
direcionasse, que propusesse esse envolvimento de maneira natural e democrática.
Não falta mais.
Isso se
traduz em respeito ao leitor, qualidade que é neste tempo um dos maiores valores
de um escritor. Cada vez mais escravos do tempo, tempo nos é ouro e um escritor
não tem o direito de nos subtrair a existência com banalidades quando sabemos –
e ele também sabe – da extensa quantidade de obras significativas que nos cobram
serem lidas. Respeito ao leitor passa ainda pelo reconhecimento de sua
inteligência sobre determinados temas, que por serem sempre os mesmos devem ser
tratados com o intuito de nos possibilitar olhá-los por outro ângulo, aquele
mais improvável. E, se os mais incrédulos concordam que uma obra literária não
tem nada a ensinar para os leitores, é porque veem nela, muito provavelmente, e
quando muito, apenas uma condição de contemplação sobre seu valor estético e o
labor do seu criador em reinventar a técnica de contar histórias – se for o caso
da narrativa.
Mas isso não
é suficiente: uma obra precisa significar. Quer dizer, introduzir no leitor uma
saída do mesmo. Assim, numa ocasião em que todos os gestos, mesmo aqueles que
não deviam apresentar justificativas como o ato da leitura, é preciso reforçar
que pela literatura passa o mundo e dela extraímos percepções muito caras e certamente
não alcançaríamos sozinhos. O diálogo que obra literária mantém conosco e a
maneira não-impositiva de nos dizer as coisas são uma das maiores preciosidades,
sobretudo, quando olhamos para o mundo e o que vemos são os discursos rasos,
impositivos e de cerceamento da pluralidade de visões. Portanto, é lúcido considerar
a literatura como este interlugar pelo qual transitam além das visões, os
saberes e valores capazes de florar em nós a humanidade – essa condição que
rareia na apoteose do império da razão.
No caso da
obra de José Saramago, as lições são muitas. Não hesitaria dizer que a leitura
de sua literatura vale por uma vida. Trata-se de uma obra que cobra de nós um
necessário regresso à vida em sua plenitude, uma negação ao total marasmo e comodismo,
esse terreno tão fértil para a irrupção das ervas daninhas que, ingenuamente,
quando acomodados, pensamos há muito aparadas ou mesmo extintas. Compreensão
ingênua porque a vida é, sobretudo, embate. Isto é, a ruptura com a condição de
pacientes nascida no exercício de criação da obra pela maneira diversa de lê-la
imiscui-se no discurso literário que sempre é, em Saramago, um apelo ao homem
para um realinhamento com o espírito questionador e revolucionário capaz de,
sempre à espreita, introduzir pequenas mas significativas mudanças individuais
e coletivas. Toda sua literatura romanesca é uma estratégia de dizer sobre a necessidade
de espreita que devemos imprimir à nossa existência como prática.
O imperativo
da dúvida – esta mesma que permitiu ao pensamento sua evolução e a construção
desse aparato que chamamos civilização – é fundamental à revisão contínua do que
somos e para que não regressemos à barbárie. Em Saramago, todas essas linhas
divisórias estabelecidas como certezas inabaláveis são mostradas como simples
fiapos capazes de se romper com a menor facilidade e, quando menos pensamos, podemos
nos encontrar do lado oposto ao que queríamos estar. Entre civilização e
barbárie, por exemplo, há somente um acordo tácito cujo feitio pode se desfazer
no mínimo movimento fora das linhas estabelecidas. E pensemos no Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez e nas Intermitências da morte.
Sobre a necessidade
da não confiança branca é útil pensar que todo discurso é uma construção marcada
por um ponto de vista. Isto significa dizer que a imparcialidade e a
objetividade são algumas das farsas das mais caras para a humanidade porque reforçam
os pontos de vistas unilaterais sem que o outro se interrogue sobre o avesso
dos dizeres. E é sobre esse avesso que a literatura saramaguiana se concentra.
É uma obra de desconstrução porque compreende a não-sedimentação da existência,
a existência como work in progress,
feita e refeita pela força do que pensamos e das nossas ações. Sua principal visão
é a de que precisamos romper com os determinismos a fim de não cairmos num mundo
de convenções fechadas – esse que nos rouba o não-limite de existir. Seu
primeiro exercício então é demonstrar que as fronteiras não nos separam, nos
une, e do esforço coletivo, derivado de uma variação individual do que somos
que se constrói a capacidade de construir essa liberdade necessária. Isso está claramente
em Manual de pintura e caligrafia, Levantado do chão e Memorial do convento – para citar três obras do início da criação
romanesca de Saramago e para não dizer que é uma recorrência apresentada de
forma diversa ao longo dos demais romances.
Nesse
ínterim, prova-nos que os discursos, da História (História do cerco de Lisboa), da política e da mídia (os três
primeiros romances citados neste texto) e religioso (O evangelho segundo Jesus Cristo e Caim) são meras convenções, representações de um ponto de vista que
não é necessariamente o único, indubitável e necessário a todos. E toda vez – acrescentaríamos,
cada vez – se faz necessário ir pela tangente no intuito de se construir uma
condição mais autêntica sobre o vendido como verdade porque imparcial e objetiva.
Nesse sentido, a literatura saramaguiana se faz sempre mais necessária.
A revisão dos discursos oficiais, de nós mesmos e o valor da
coletividade são lições que se completam com uma outra: a necessidade de construir
outra vida, essa ânsia do homem desde a invenção do pós-morte aos discursos
representativos da existência além da vivida como experiência sobre o mundo. A
outra vida proposta por Saramago, entretanto, muito se distancia desse ideal
fantasioso da fé e mesmo dos discursos da ficção; sua obra nos convida a uma
estadia autêntica nesse único plano de vida, ainda que tudo que nele exista caminhe
para a total extinção. Quando o almejado é extirpar o comodismo é porque essa
outra vida deve ter por base a ação. Isto é, a literatura saramaguiana cobra-nos
o engajamento; só então deixaremos de estar submetidos ao que nos impõem. Na
possibilidade, no sempre almejado, ainda que numa pequena chama ou lapso de lucidez,
está a profissão de fé de Saramago no homem criador de todas as coisas. Só nele
repousa toda força para uma reinvenção de seu lugar no mundo.
E numa condição que
tais responsabilidades individuais são escamoteadas para uma coletividade que
se ausenta, ler Saramago é munir-se de uma exegese sobre o que deixamos de ser.
É, pois, um ato de rebeldia existencial cujo valor só reafirma que devemos ler
sua obra não apenas para mantê-la viva mas como um gesto de partida em não aceitar
que as coisas são porque são por mera convicção. Mais que leitores sua
literatura reforça a necessidade da militância em prol de um mundo mais justo
para todos sobretudo para aqueles que são pisoteados pelo poder. Não há lição
mais coerente para um mundo cuja sombra do poder tem ganhado as proporções que não
pensávamos ganhar.
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