Distantes, mas próximos: sete romances que dizem a história da América espanhola
Por Sergio Ramírez
Gabriel García Márquez e Juan Rulfo. |
Os romances
do que poderíamos chamar cânone clássico da literatura de língua espanhola na América têm já uma idade
provecta, segundo esse arcaico termo que se usava para sublinhar a idade
avançada. Dona Bárbara, que deu a
essa literatura uma de suas personagens verdadeiramente arquetípicas, aquelas
que saem das páginas de um livro para andar pelo mundo por conta própria, vai
já para os noventa anos de sua publicação; e seu autor, o venezuelano Rómulo
Gallegos, nos recorda algo já quase esquecido, o dos escritores que equiparava
a vida literária com a vida política.
Seu caso
parece incomum e logo memorável. Era um reformista de coração, que aborrecia a
sociedade selvagem, de intensas tintas rurais de seu país, e queria estabelecer
o legal que décadas de ditaduras militares haviam convertido em um insulto.
Reformar o campo onde reinava a lei do mais forte, substituir o arbítrio pelo pela
ordem jurídica, é a tese de Dona Bárbara
como romance. Santos Luzardo, em nome da ideia de civilização urbana, quer
submeter a natureza indômita que aparece encarnada por aquela mulher.
Dona Bárbara é um romance de tese, e sua
proposta é a mesma que Gallegos quis aplicar quando foi eleito presidente da
Venezuela em 1947 por mais de 80% dos votos: reformar a sociedade e fazer valer
as leis. Mas foi deposto apenas nove meses depois de sua chegada ao palácio de
Miraflores por militares de polainas e dragonas que a magia da democracia não
havia feito desaparecer.
Foram os
mesmos nove meses de Juan Bosch, eleito presidente da República Dominicana em
1962, também por esmagadora maioria, depois do metralharem o generalíssimo
Rafael Leónidas Trujillo. Juan não era romancista, mas escritor de contos, um
dos melhores da América Latina, mas também esqueceu que os generais amamentados
pela longa ditadura trujilista ainda continuavam ali; para eles, qualquer
reforma democrática era senão comunismo soviético disfarçado.
Eram outros
tempos e quando se falava sobre escritores comprometidos queria-se dizer comprometidos
contra as ditaduras de direita, afilhadas do Departamento de Estado, cujas políticas
se guiavam de acordo com os interesses das companhias madeireira, mineradoras
e, sobretudo, bananeiras dos Estados Unidos. Escritores anti-imperialistas. Foi
o que foi o guatemalteco Miguel Ángel Asturias, Prêmio Nobel em 1967, cujo romance
O senhor presidente chega em 2017 aos
70 anos de publicação, outra das obras capitais já veneráveis.
Carlos Fuentes |
Militância
anti-imperialista e qualidade artística não eram, evidentemente, sinônimos, e a
chamada trilogia da banana de Asturias (Vento
forte, O papa verde e Os olhos dos enterrados) é acima de tudo
uma diatribe. Mas seu branco é a United Fruit Company, patrocinada pelos célebres
irmãos Dulles, um secretário de Estado, o outro chefe da CIA, que em nome dos
interesses daquela derrotaram em 1954 o presidente legitimamente eleito da Guatemala,
Jacobo Arbenz, por tentar uma reforma agrária. A realidade política levava
indefectivelmente ao realismo literário.
Cem anos de solidão, de Gabriel García
Márquez, alcança em 2017 meio século de publicação. É um livro que nasceu como
um clássico e cada vez mais tem se tornado clássico. E ao invés de uma só
personagem arquetípica, como Dona Bárbara, ou como Pedro Páramo, de Juan Rulfo,
que já passou dos sessenta nãos, nos oferece toda uma dinastia que sai de suas
páginas, José Arcadio Buendía e sua descendência.
Esta saga converte
pela primeira vez o discurso político e a denúncia social em múltipla fábula e
é através desse jogo de espelhos que repete e altera imagens até o infinito que
podemos contemplar de outra maneira a história da América Espanhola: guerras
fratricidas, atraso rural, exploração e desigualdade. Não é só isso, mas também
é isso. Em algum sentido, Cem anos de solidão
é o último dos romances bananeiras, uma vez que a United Fruit Company está por
trás do massacre de trabalhadores em Ciénaga perpetrada pelo Exército da Colômbia
em 6 de dezembro de 1928 e é a dona do trem amarelo que transporta em seus vagões
os cadáveres para jogá-los ao mar como fruta podre.
Quando, em
1958, aparece A região mais transparente,
de Carlos Fuentes, Pedro Páramo havia
sido publicado há apenas três anos. São dois romances quase contemporâneos, mas
que abrem e fecham dois mundos à meio século.
Rulfo coloca o ponto definitivo à antiga
maneira de contar histórias rurais, quando o narrador o fazia de cima para
baixo, de um mundo civilizado, que de alguma maneira deprecia a linguagem
popular porque a entrecortava com o erudito; ele desse do palanque para
meter-se entre suas próprias personagens, falando também desde o subsolo, junto
com os mortos.
Fuentes entreviu múltiplas histórias
narradas por múltiplas vozes no que então é já a imensa selva urbana da cidade
do México, caótica e selvagem, desigual e marcada por crueldades sociais e
essas vozes falam a partir de distintos estratos sociais, um grande mural que
vai se desenrolando diante de nossos olhos. Depois já teremos O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar,
e A cidade e os cachorros, de Mario
Vargas Llosa, publicados no mesmo ano de 1963 e que já inteiraram meio século
de idade. Uma modernidade distante e ao mesmo tempo próxima.
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