Canadá, de Richard Ford
Por Javier Úbeda
O romance começa
de maneira espetacular e arriscada que nos deixa já boquiabertos desde as
primeiras linhas, contando-nos um feito tão chamativo, significativo e melodramático
que marcará todas as situações posteriores. “Para começar, vou contar o assalto
que meus pais cometeram. Em seguida, os assassinatos que aconteceram mais tarde”.
A partir daí, o leitor não fará outra coisa que ir dando nós como possa, um
após outro, no ritmo marcado por Ford, quem tão sabiamente o guiará e deixará
aqui e ali pequenas antecipações que atuarão como anzóis que antecipam algo
desta fascinante história, mas não em sua totalidade, já que a trama, que está
perfeitamente urdida, manterá em suspense até o final.
O narrador é
o já sexagenário Dell, mas no início nos contará sua história com o frescor do
adolescente que um dia foi quando sucedeu o assalto produzido por seus pais,
sua posterior fuga para refugiar-se no Canadá, atendendo o desejo expresso de
sua mãe quem decide enviá-lo com sua irmã Berner, embora esta última não consiga,
com sua amiga Mildred, com o intuito de não caírem nas mãos do Serviço Social
que provavelmente os levariam para um orfanato.
Estas 456 páginas,
escritas do desassossego, tratam de diferentes temas: como sobreviver a um fato
que parece que vai marcar e condicionar toda nossa existência e como sair
fortalecido ou tentar, da desestruturação familiar, à medida que pouco a pouco
vai sendo forjada nossa personalidade através do vivido. Tanto que poderíamos catalogar
este livro como um grande romance de trama psicológica em que o adolescente
Dell não para de amadurecer e de crescer através dos acontecimentos que se sucedem
– e nós crescemos e amadurecemos com ele.
E, para
armar a história, para que frutifiquem com sucesso todas as situações, o lugar
eleito por Ford, como dissemos e como o título sugere, é o Canadá. E é o Canadá,
com suas particularidades, e todas as paisagens, no todo, que aparecem aí e são
também protagonistas indiscutíveis pela beleza incomensurável e pormenorizada com
que aparecem descritas. O escritor confessa ter optado por este entorno árido
pela sensação de liberdade e de tolerância que este país causa nele. Um lugar
rude, ideal, além disso, para reencontrar-se com si mesmo, uma terra que ainda conserva
algo hoje em dia de rural e de selvagem, onde tudo é possível e ainda pode
dar-se a esperança, a regeneração, a crença num futuro melhor e às segundas
oportunidades.
O estilo de
Ford é sóbrio, impecável, elegante, frio e, ao mesmo tempo, nu, sem demasiados artifícios
como as paisagens naturais que descreve, por exemplo, o desolado povoado de
Great Falls em Montana ou Fort Royal já no Canadá. E emprega uma linguagem
direta com ritmo mais moderado em sua primeira parte, mais ágil na segunda, e
de novo mais pausada em sua última trama, o que nos convida à reflexão; é um
intenso romance em que há um antes e depois do acontecimento crucial e decisivo,
a suposição de um assalto a um barco conduzido pelos pais do protagonista. A
maneira de escrever pausadamente nos deslumbra e nos surpreende – tudo de uma
vez; talvez porque o próprio Ford antes tenha reconhecido neste contar da
pausa e da serenidade a fala do disléxico e por isso fez com que o leitor sempre necessite de mais tempo
para ler o que logo o fisga porque o fixa e o concentra em cada detalhe.
O fato é que
Richard Ford é um autor de referência, nos deixa impressionados com sua indiscutível
maestria; quase não leu até aos dezoito anos pelo problema de dislexia que carregava.
E seu destino parecia no princípio ser outro bem diferente do de ser escritor, já
que, primeiro, ingressou na Universidade de Michigan para estudar administração
hoteleira, depois em Saint Louis chegou a iniciar a carreira de direito que
mais tarde abandonará e terminará realizando um mestrado em escrita criativa na
Universidade da Califórnia em 1970. E atualmente é professor de humanidades na
Universidade de Columbia. Uma trajetória arrítmica que demonstra que um escritor
pode forjar-se quase do nada e chegar até o mais alto pódio da literatura.
Seu êxito como
escritor começa com a conhecida trilogia dedicada à personagem Frank Bascombe,
que inicia com o livro O cronista
esportivo (1986), considerado pelo Times
como um dos maiores cem romances daquele ano e finalista do prêmio Faulkner;
segue-se com Independência
(1995), que obteve prêmios como o Pulitzer e novamente o Faulkner. A saga finda
com Ação de Graças (2006). Enquanto Canadá (2012) é uma obra que demorou para escrever – cerca de vinte
anos – e com ela alcança seu ponto alto como romancista conforme atesta a
diversidade de prêmios que ganhou com sua publicação. Outros romances são também
destacáveis: A última oportunidade
(1981), Incêndios (1990) e Francamente, Frank (2014). E é, além
disso, a autoria dos vários livros de contos como Rock Springs (1987), Mulheres com homens (1997), Pecados
sem conta (2002), Contos imprescindíveis
(1998) e também do ensaio Flores nas
frestas. Autobiografia e literatura (2012).
Ford é, sem
dúvida, um escritor cuidadoso, imprime grande profundidade narrativa, originalidade
e realismo em tudo o que narra. E o que gosta de falar é das dificuldades, como
faz em Canadá; quando Dell parecia condenado
por umas circunstâncias adversas que lhe arrancam do seio familiar e lhe
empurram a levar uma vida difícil, de desenraizado, se sobrepõe e se reinventa.
Um livro que nos fala então claramente da esperança, da fé em si mesmo e de
nossa capacidade para lutar, adaptarmo-nos e sair quase sempre vitoriosos na
luta.
As três
partes de Canadá são bastante
diferentes, não apenas pelo ritmo com são narradas: a primeira conta como era a
vida da protagonista antes desse feito crucial e tudo referente ao roubo de
seus pais; a segunda nos descreve a vida de Dell, o adolescente de quinze anos,
quando chega ao Canadá e inicia aí uma nova vida; e na terceira e última aparecem
já todas as conclusões acerca de sua vida – o Dell já maduro e reflexivo, que
agora é professor de Língua e de Literatura inglesas.
As
personagens estão perfeitamente caracterizadas e são muito peculiares, mesmo os
que têm vidas diferentes são apaixonantes; estão no limite de tudo. Dell, o
protagonista, ou sua irmã Berner ou o enigmático Arthur Relinger, que é a
pessoa que será responsável por Dell por estranhas razões que só lendo a obra
para conhecer pouco a pouco.
Um começo
provocador, uma estrutura circular, já que o final é um retorno princípio para por um
ponto final, são algumas das chaves deste impressionante romance que é do início
ao fim uma proeza técnica e uma dessas poucas obras que deixam o leitor sem
alento e que chegam para ficar, e logo ficamos de acordo que Ford é um, por que
não dizer, dos melhores escritores estadunidenses atuais.
* Este texto é uma tradução livre para Canadá, de Richard Ford, publicado inicialmente em Letralia.
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