Albert Camus jornalista
Provavelmente
esta é uma novidade conhecida apenas dos admiradores mais próximos à obra de
Albert Camus – porque sabe-se de sua faceta como escritor, ensaísta, romancista
e dramaturgo – mas não de jornalista. Mas seu trabalho nesse meio é de
extrema valia para compreender algumas nuances de sua obra artística e as
posições pessoais do escritor que, se hoje fosse vivo, seria com certeza um
militante em nome da liberdade de expressão e crítico ferrenho do atual modelo
de se fazer jornalismo – ora atendendo interesses escusos das grandes empresas
que o patrocina ora posicionando-se de maneira tendenciosa em favor de determinadas
pautas cujos valores repousa apenas no retorno financeiro e nos interesses dos
grupos dominantes. Sua trajetória, inclusive, ensina muito sobre a escassa ética
aos jornalistas de hoje.
“Jornalismo clandestino
é honrável porque
é uma prova
de independência, porque
envolve um risco. É bom, é saudável, tudo o que tem haver com os atuais
eventos políticos têm se tornado perigoso.
Se há algo
que nós não
queremos ver novamente,
é a proteção
da impunidade por trás
de quem com
um comportamento tão
covarde e com
muitas maquinações uma vez teve
refúgio” – assim se posiciona sobre o trabalho do jornalista num dos tempos
mais difíceis e, possivelmente, numa das primeiras fases da crise da
informação. Noutra ocasião assim se posiciona: “O que nós queremos? Uma
imprensa que seja clara e viril e escreva em um estilo decente. Quando nós sabemos,
como nós jornalistas
temos conhecimento nesses
últimos quatro anos, que
escrevendo um artigo pode trazer você até a prisão ou te matar, fica claro que
as palavras têm valor e devem ser mensuradas cuidadosamente. O que nós estamos
esperando é restaurar a responsabilidade
jornalística com o público”.
Albert Camus
exerceu a profissão de jornalista com paixão, em curtos períodos, mas de uma
grande intensidade. Com seus escritos buscou clareza, verdade e justiça nas
difíceis circunstâncias das quais foi testemunha. Primeiro em Argel e depois
durante a ocupação nazista em plena Segunda Guerra Mundial. Como no caso de
outros escritores franceses do século XIX e XX que exerceram a profissão,
tornou-se um modelo para a produção jornalística que lhe foi gênese e fundamento
para sua obra. Foi, como Zola, jornalista profissional no sentido mais completo,
aquele que faz do noticiário sua principal porta de acesso ao mundo.
Albert Camus e a equipe do jornal Combat. |
Tinha só
vinte e seis anos quando se converte em grand
repórter com seu trabalho de investigação “Misère en Kabylie”, um conjunto
de textos sobre a miséria nessa região montanhosa no nordeste da Argélia.
Passou apenas um ano trabalhando como jornalista no diário Alger-Républicain, onde aprendeu o ofício, escrevendo notícias
sobre processos, acidentes e faits divers;
outro tempo no Soir-Républicain.
Depois tornou-se editor em Paris, para onde havia se mudado em 1940, escrevendo
para o jornal clandestino de resistência ao nazismo Combat uma série de editorias em favor da democracia e da paz. Todo
esse último material, publicado entre agosto de 1944 e junho de 1947, somam
três dezenas de textos mais um que ficou desconhecido durante muito tempo
porque censurado pelo Soir-Républicain.
Depois de uma rápida passagem pelo L’Expres,
ele dará adeus definitivamente ao jornalismo em 1957.
Para escrever
“Misère en Kabylie” percorreu durante dez dias, a pé e de ônibus, esta perdida
região da Argélia; precisou vezes sem conta da ajuda de intérpretes porque não
sabia árabe e nem berbere. Dez dias fatigáveis para uma exaustiva e extensa
reportagem que foi publicada numa série de 5 a 15 de junho de 1939; um excelente
trabalho de investigação em que seu testemunho sur le terrain serve para descobrir as condições subumanas em que
vive a população local. Seu grande mérito é tornar pública uma região esquecida
pela França num dos períodos mais vergonhosos daquele país no domínio sobre a
Argélia.
Como bom
jornalista, militante humanista (está a florescer essas suas raízes), Camus vai
onde ninguém lhe espera para descobrir o silenciado, uma realidade ignorada
pelo resto da imprensa dentro e fora da Argélia. Ninguém até então havia se
interessado por revelar o que aí se passava e coloca o leitor ante uma visão
que lhe prende os sentidos (sentir, ver, ouvir, pensar) como fizeram grandes
outros jornalistas da envergadura de Ryszard Kapuściński. Mais tarde, o próprio
Camus fará sua confissão de surpresa ante horror em Kabylie: “Nasci pobre, num
bairro de periferia, e não sabia, no entanto, o que era a verdadeira desgraça
antes de conhecer nossos subúrbios mais miseráveis. A miséria árabe é o limite
extremo a que se pode comparar, debaixo do céu, a pobreza”.
Neste completo
trabalho de investigação Camus utiliza o gênero reportagem completado com suas
análises, às vezes até com suas opiniões, mas sempre oferecendo ao leitor dados
em profundidade como quem documenta e contextualiza no intuito de oferecer
exatidão a fim de corroborar com que o mostra e opina. A precisão e o rigor são
as marcas dessa radiografia de uma realidade esmagadora. Sobre a reportagem,
gênero jornalístico estrela da informação, o francês aponta uma excelente
definição que deveria ser parte nos manuais de jornalismo: “Uma reportagem:
ações, cores, aproximações”.
Mas, ele vai
muito além com seu sentido de precisão e de justiça. Desde o início, Camus tem
muito claro o estilo de escrita que quer empregar para expressar com maior
exatidão a dramática situação que contempla para realizar sua reportagem
reveladora: “Usarei o mínimo de palavras para descrever o que vejo”, assim
anota em seus cadernos. Quando a cena que deseja descrever é mais difícil recorre a uma linguagem sensível, clara, precisa, objetiva, para que seu
significado moral seja mais penetrante “e para que se veja bem a angústia e o
absurdo de uma situação parecida”, como ele mesmo aponta. Para Camus, a
“paisagem moral” é tão real como a paisagem abrupta do Norte da África.
Camus denuncia
o abandono da administração colonial nesta região esquecida e arremete contra as
justificativas que amparam a “mentalidade kabylenha” para justificar a
insustentável situação do lugar. E não titubeia ao apontar a responsabilidade
do governo francês: “Não conheço nada mais depreciativo que esses argumentos. É
depreciável dizer que esse povo se adapta a tudo. Se só dispusesse de 200 francos
ao mês para subsistir, o mesmo senhor Albert Lebrun [então presidente da
França] também se adaptaria à vida debaixo das pontes, à sujeira e aos restos
de pão encontrados num balde. No apego de um homem à sua vida há algo mais forte que
todas as misérias do mundo. É depreciável dizer que esse povo não tem as mesmas
necessidades que nós”.
O impacto de
suas matérias sobre Kabylie será sentido três dias depois de sua publicação. A
polêmica começa a partir do contra-ataque do jornal ultraconservador La Dépêche Algérienne, próximo ao círculo
do prefeito Rozis. Seu redator-chefe, Roger Frison-Roche assina uma série de
reportagens intituladas “Kabylie 39” com o propósito de reparar os danos causados
pelas reportagens de Camus. Além de enaltecer os resultados do colonialismo,
ataca o próprio jornalista acusando-o de estar “cego por sua ideologia”. Não
tardará e se iniciará uma perseguição por parte do Governo ao jornal pela
revelação da situação insustentável na região de Kabylie. A censura militar só
aumenta ainda mais contra o Alger-Républicain num contexto histórico que não poderia ser mais adverso: a França acabava de entrar para a
guerra contra a Alemanha depois da invasão da Polônia em 1º de setembro de
1939. As primeiras medidas não tardam chegar: o Governo proíbe o Partido comunista
e o Partido do Povo Argelino, este de tendência nacionalista. Seus dirigentes
são presos e seus membros perseguidos. Todo movimento político ou jornalístico
que não comunga dos princípios patrióticos é perseguido ou suprimido e o jornal
fecha definitivamente no dia 28 de outubro de 1939. Camus reconheceria mais
tarde sua satisfação pelo trabalho realizado apesar dos ataques da censura:
“Fiz um jornalismo da maneira que eu acreditava verdadeira. Com isto quero
dizer que defendi a liberdade de pensar contra a censura e a guerra sem ódio”.
Terminada a
guerra, Camus não se esqueceu de seu início no Alger-Républicain e voltou à sua terra, ao país que o viu nascer,
levou adiante a ideia de escrever uma segunda parte sobre a miséria em Kabylie,
publicada desta vez no Combat numa
série entre os dias 18 de abril e 8 de maio de 1945: “Crises na Argélia”, “A
fome na Argélia”, “Argélia pede barcos e justiça”, “Os indígenas norte-africanos
se distanciaram da democracia”, “Os árabes pedem à Argélia uma Constituição e a
Justiça é que salvará a Argélia do ódio”. E chega à conclusão de que a situação na
Argélia só tem piorado passado tantos anos. As reportagens de 1939 e de 1945
são atualizáveis para o nosso presente seja pelo fracasso das revoluções da
Primavera Árabe, seja a situação crítica em que vivem vários países do norte de
África, seja a situação dos refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo.
Ficam ainda,
para retomar o início desta matéria, as recomendações do escritor sobre a prática
do “ofício mais bonito do mundo”: “Pouco importa ser o primeiro, o importante é
ser o melhor”; “Não se trata de ser rápido, o importante é ser verdadeiro”. Como
Heródoto, o pai da historiografia, recordava que era fundamental sujar os
sapatos, converter-se em jornalista “de pé”, ir “ao lugar dos fatos, falar com
o maior número de fontes e não dar nada por certo antes de ser verificado”. E acrescentava:
“A informação tem que ser baseada nos fatos certos e verificados”. Destes jornalistas é que no mundo já rareia.
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