A tradutora, de Cristovão Tezza
Por Pedro Fernandes
A literatura
brasileira contemporânea está repleta de romances bem escritos, mas vazia de
narrativas capazes de produzir no leitor um encantamento por uma personagem. A
afirmativa leva em consideração uma literatura que tem a presença de figuras como Macabéa, Dom Casmurro,
Riobaldo, Policarpo Quaresma, figuras que, depois de a encontramos, incorporam-se
à nossa existência e passam a conviver conosco, como se alguém muito próximo ou
que conhecemos em vida numa ocasião qualquer. E delas falamos quando precisamos
explicar determinadas situações que se passam ao nosso redor ou proximamente.
Isso ocorre, em parte, porque de algum tempo para cá os escritores têm estado preocupados
em construir bem determinados temas (modismo que se reflete também entre os
leitores, que querem, antes de tudo tratar sobre recorrências temáticas e não
sobre o labor estético, isto é, os modos de composição da narrativa e seus
elementos estruturais).
Isso tudo
serve para dizer a surpresa que o leitor encontrará com a leitura de A tradutora. Perceberá, de imediato que
os temas são aspectos subjacentes, como devem ser, e o que sobressai é
narrativa extremamente bem estudada e lapidada pelo seu criador. Notará um escritor
muito seguro de praticar toda sorte de movimentos no processo de construção da
narrativa, desfazendo-se do ideal clássico de ordenação temporal para alcançar
um efeito de interpenetração dos tempos e, com isso, exercitando-se em reanimar
o ideal de se contar uma história.
Cristovão Tezza está muito à vontade na
construção dessa obra; se foi trabalhoso engendrar algumas situações, como se
mostra na nota de agradecimento no final do livro, essas dificuldades não se
mostram no produto final e o que leitor tem é um romance leve, sem grandes
pretensões, muito bem escrito e que acrescenta à sua existência uma
interessante figura: Beatriz, quem se mostra por trás do termo que designa a
obra e a profissão que exerce. E esse envolvimento se dá pela maneira com que
as situações mais corriqueiras, aquelas que, descartando o contexto em que se
inserem, se repetem com muita constância diariamente com outros tantos de nós.
Além disso, pela naturalidade como essa personagem aparece para o leitor, desconstruindo
um dos mitos ainda recorrentes na comparação entre a escrita realizada por
homens e mulheres. É que aqui se tem um escritor que constrói uma narrativa sobre
uma mulher e em parte ela é quem assume a controle do cordão narrativo e esse motivo
não transparece ao leitor, isto é, não é uma obra que se mostre uma caricatura
do ethos feminino. Além de técnica é
necessário sensibilidade ao escritor no processo de engendrar um universo tão
diverso da sua perspectiva natural. E uma coisa é o escritor construir isso do
ponto de vista de um observador e outra é assumir esse ponto de vista como
participante.
O romance recorta
um momento muito particular na vida de Beatriz – aquele em que nossas vidas são
tomadas por uma sorte diversa de acontecimentos como se tudo necessitasse acontecer
assim, de uma vez: ao mesmo tempo em que recebe a proposta de traduzir seu
primeiro trabalho mais importante na carreira, uma tradução para uma editora de
certo nome e que finalmente se sentirá à vontade para assinar seu real nome e acrescentar
o trabalho ao seu currículo, precisa colocar um ponto final no relacionamento com
Paulo Donetti, um escritor ranzinza e fracassado em busca de escrever o grande
romance, e recebe a proposta de trabalhar como intérprete de um figurão da FIFA,
Erik Höwes, que vem num final de semana vistoriar (possivelmente) a cidade para um plano de marketing da federação. Agora, a proeza
do escritor: construir essas três circunstâncias em simultâneo. Adota, para
isso, a alternativa de situar a narrativa como se fosse contada pela personagem
principal para uma amiga, a Bernadete, cuja participação é de intervir e
organizar determinadas passagens da memória de Beatriz.
O efeito se completa
ainda não pela constante de outro que conta o narrado mas pela correlação que
esse ponto de vista se manifesta com o ponto de vista de um narrador externo
que entra e sai da narrativa com a mesma constância que a voz de Beatriz; a
explicação para o “fenômeno” é dada pela própria narrativa quando o leitor sabe
que Donetti inicia a escrita de uma obra cuja grande estratégia de criação está
na “fusão de eus e eles”. Interpenetram-se nesse cerzido as idas e vindas
da protagonista com o texto de Felip T. Xaveste, um pensador catalão e conservador,
que, ora se alinha ora se coloca em contraste, com sua sinuosidade barroca, com
o que pensam as figuras desse romance sobre o seu contexto: os primeiros
momentos de descrédito ou desencanto com a esquerda no Brasil e o levante de um
pensamento que, embaçado pela efervescência e euforia com que se mostra o país,
ainda não é possível de se visualizar com a clareza, por exemplo, que se tem
hoje.
É preciso destacar como a vida de Beatriz é também reflexo desse tumulto
social numa implicância muito coerente entre indivíduo e sociedade, entre sociedade
e o conteúdo artístico e a integração disso com um universo de natureza
universal, seja da obra com o estritamente nacional seja da obra com as outras
que lhe antecedem, como se marca no elogio da memória através da citação a Mansfield Park, de Jane Austen. Em parte
A tradutora é um exercício de memória
– fora do ambiente comum construído por narrativas do gênero, mas não livre do necessário ir e vir dos tempos e da
não sequência dos acontecimentos.
Agora,
dentre a diversidade de temas que circulam nesse curto espaço de vida de
Beatriz, sejam eles políticos (as passeatas contra o governo, a incompetência
dos organizadores com as obras para Copa do Mundo, a corrupção, a formação de
uma insatisfação geral com a política, a denúncia sobre uma FIFA que capitalizou
um dos lugares do espírito, o futebol, o embate entre direita e esquerda), culturais
(os pontos turísticos de Curitiba, cidade construída aqui em desencanto, a cachaça,
o churrasco, a umbanda) A tradutora
toca noutras questões bastante sensíveis ao romance tradicional – e aqui se escuta
as interferências saudáveis do que um dia foi, em parte, um tema único entre os
romancistas – as relações individuais e amorosas. O fim mal arranjado do
envolvimento de Beatriz com Donetti, sua queda de atenções com Chaves, seu
editor, e a simpatia casual por Höwes, revelam ao leitor ao menos três
variantes da ars amorosa.
Nesse ínterim, se destaca uma interrogação cujo eco é bastante longo na literatura (e pude
ouvir com forte reincidência em Dias de
abandono, de Elena Ferrante): todo amor não se torna, mesmo quando acaba,
ainda que de maneira passageira, numa obsessão? O amor não será uma forma de
obsessão? Em duas ocasiões, por exemplo, A
tradutora reafirma essa indagação: em certa altura, Paulo Donetti entra em contato
com Beatriz para dizer que iniciou uma nova obra e que vai precisar muito dela
nesse momento: “Eu sinto que agora acertei
a mão novamente. Eu sei que você continua esperando meu grande livro desde A foto no espelho. Pois estou perto
dele. Eu não posso mais decepcionar você. Mas vou precisar de você”, dize ele,
enquanto ela reflete: “Ele vem precisando de mim há anos – é uma necessidade
inesgotável. Ao mesmo tempo, ele me elegeu a sua autoridade. Não estou esperando nada dele, ela contaria a
Bernadete, não é assim que os sentimentos funcionam, mas ele precisa de minha
aprovação para se sentir vivo, e Beatriz sentiu o desconforto da descoberta –
em que momento a relação amorosa se desmantelou, transformando-se nessa secreta
escravidão?”
Em toda parte, todas as circunstâncias e expressões Donetti aparecem como se um fantasma, um amigo imaginário de Beatriz; “Desejou que esses quatro
dias de trabalho [os em que acompanharia o alemão da FIFA] voassem rápidos,
terminassem de uma vez, ela recebesse seu dinheiro bom e honesto – e então
ligaria para Chaves como quem vai passar a vida a limpo, sugerindo um encontro
ou em São Paulo, ou em Curitiba – tem um
restaurante ótimo na rua Itupava, eu queria te levar lá – para apresentar
seus projetos de literatura infanto-juvenil e suas fantasias poéticas e isso como
que reergueu a autoestima tão sufocada pelo peso de Donetti e seu pessimismo antológico e ontológico, e Beatriz mais
uma vez sorriu intimamente, o meu humor é
o humor do Donetti, as pessoas pegam e absorvem, na alma, o jeito e o gesto, o
espírito das outras, como vírus de comportamento. A diferença é que eu sou
alguém de substância alegre, um sentimento inacessível ao Donetti; ele é alguém
definitivamente condenado à prisão de si mesmo”.
Beatriz
propõe – situada na ponta de um imbróglio cultural que sempre reservou às
mulheres o lugar cativo de incapazes de racionalizar a existência e por isso
mais frágeis ao delírio amoroso – desfazer-se dessa condição; para ela, está
muito claro as mulheres conquistaram o direito de serem o que desejam e a
liberdade, mas em grande parte, ainda estão acomodadas numa posição que tão arcaica
quanto a visão da figura submissa às forças do amor. Tanto é verdade que entre
seu esforço por se libertar das linhas que lhe amarram a Donetti está em
assumir-se autenticamente como mulher livre e cujas as decisões – sobretudo as
amorosas – estejam no seu campo de controle e no do homem. Essa variação de comportamento
coloca a personagem no rol ainda raro de um longo e lento processo de ruptura cultural
no qual possa se vislumbrar uma igualdade – não no ponto do direito ou dos
espaços na conjuntura social – entre humanos. Isto é, entre o que somos ou
deixamos de ser há algo que nos iguala: somos humanos. Isso é suficiente para
justificar porque esta é uma personagem que acompanhará o leitor além da sua
posição no interior da narrativa.
______
A tradutora
Cristovão Tezza
Record, 2016
208 p.
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