Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro
Por Rafael Kafka
Na tradição
literária, sabemos que o épico origina o romance em um processo complexo que
para ser explicado exige mais espaço e base intelectual do autor desta pequena
post. Mas basicamente, podemos dizer que o épico é o primeiro exemplo mais
claro de narrativa dentro do campo literário que se volta para uma questão mais
temporal, enquanto o drama foca mais nas ações das personagens. O épico narra
fatos heroicos e se passa, como bem mostra Lukacs em A teoria do romance, em um mundo no qual existe harmonia entre o
indivíduo e o universo no qual reside.
O romance já se
configura como gênero em uma Europa saída da Idade Média e começando a ter as crises
de identidades que marcarão a história da civilização ocidental desde então. Ao
contrário das epopeias, o romance se dá em um plano mais individualizado,
servindo de expressão ao universo pessoal de um sujeito de carne e osso, que
por ter em sua essência a identidade entre escritor e herói ou não. De qualquer
forma, o romance é a visão de um sujeito sobre o mundo enquanto a epopeia fala
de uma coletividade encarnada na figura de um indivíduo. Nesse sentido, Vasco
da Gama em Os Lusíadas não é somente navegante,
mas sim a própria nação portuguesa com seu nacionalismo em busca de novos
horizontes de comércio e de existência.
Mesmo sendo tão
díspares, há momentos em que o épico e o romanesco se confundem de forma bem
interessante, exibindo então uma narrativa em prosa com grande poder de
explorar as minúcias sociais de determinada coletividade. Aqui em um tom mais
prosaico, vemos não mais seres grandiloquentes proferindo verdades, impropérios
ou profecias, mas seres de carne e osso expondo suas verdades e defendendo seus
pontos de vista. Nasce assim o romance polifônico como exposto por Bakhtin e
percebido em Dostoiévski, como uma narrativa não presa a uma visão fechada do
autor sobre suas personagens, demonstrando as mesmas de forma profusa e difusa,
cheias de vida e de contradição. A narrativa polifônica é a narrativa que
revela uma coletividade desconstruída, cheia de nuances e de ideias contrárias
entre si, o tempo todo em choques de ideias, nascendo e renascendo a cada
embate.
Assim, o romance
épico ou polifônico é um romance que mostra uma constante síntese de
individualidade e coletividade, com o ser representando em seus pontos de
vistas elementos da sociedade à qual pertence. No decorrer de enredos do
gênero, vemos uma série de diferentes vozes que compõem o panorama social
daquele ambiente ali exposto e mais do que uma simples narrativa o romance
assume a importância de investigação sociológica e estética de uma série de
fatos sociais.
Na literatura
brasileira, tive a chance de ler bons exemplos de narrativas com alguns
elementos típicos da polifonia. Impossível não encontrar a carnavalização em Memórias de um Sargento de Milícias, mas
a mesma vem rodeada de personagens fechados em si mesmos de tão planos que são.
Bem como é impossível não perceber elementos de polifonia no gigantesco
monólogo em forma de confissão que o protagonista d’O Mulo, de Darcy Ribeiro, faz
em busca de sua salvação terrena. Mas penso que seja em Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, que esses elementos
de polifonia e carnavalização melhor se fundem na criação de um romance
monumental.
Nele a personagem
central é o povo brasileiro com todas as suas contradições. De certa forma,
podemos dizer que aqui há uma concretização do que teoricamente posto por
Gilberto Freyre em seu Casa grande &
senzala. No romance de Ubaldo, vemos a casa grande usando a senzala em um
regime patriarcal escravagista com o intuito de garantir o controle econômico
do território brasileiro ao mesmo tempo que se utiliza do sangue negro para
proliferar por aí sua genética. Um novo elemento surge, a cultura do estupro, e
o romance de certa forma, assim como gigantesco ensaio mais acima citado,
evidencia as origens dessa prática em nossa sociedade.
O povo negro é
visto como ser condenado e inferiorizado pelo povo colonizador. A única forma
encontrada dentro da moral cristã para garantir aos africanos alguma salvação é
a servidão aos caucasianos. Essa desumanização é a justificativa aplicada para
uma série de barbáries cometidas ao longo dos séculos com os povos de origem
africana, discursos que hoje se diluem em uma torpe meritocracia. No decorrer
da história, vemos o próprio negro assumir essa verdade para si e assim nascem
os chamados capitães do mato, negros que tinham como meta maior controlar outros
negros por terem dentro de si alguma coisa de branquitude na visão dos
colonizadores da época.
Ao lado desse
discurso coisificador e racista, começam a surgir discursos de mudança social,
em especial nas falas de seres como Julio Dandão e Maria da Fé. Esta teve sua
mãe morta na tentativa de salvar a filha de um estupro cometido por quatro
jovens brancos, o que acendeu na memória da velha negra a lembrança de quando
ela também sofreu nas mãos caucasianas de um ser que se julgava dono de seu
corpo e de sua dor; aquele perdera um filho sangrado por uma trapaça de Perilo
Ambrósio, futuro barão de Pirapuama, decidindo então converter sua raiva em uma
forma de luta contra a exploração do homem pelo homem, que no Brasil assume a
forma da escravidão.
Tais personagens
inserem no romance um importante elemento discursivo que reflete a famosa frase
de Freire, que fala sobre como uma educação não libertadora gera almas que
querem tomar o lugar do opressor para também oprimir. Maria da Fé e Dandão são
os seres que mostram que a mudança social só será possível no dia em que a
empatia for a tônica das relações humanas e a humanidade não sentir mais prazer
em dominar ou ser dominada.
O romance passa
um total de três séculos e desemboca no período da ditadura militar, com
cidadãos de bem reclamando da corrupção e da pobreza inerente aos nordestinos
enquanto se utilizam de órgãos públicos para terem a si mesmos e a seus entes
favorecidos em manobras sem muitos escrúpulos. Nesse sentido, em uma narrativa
genial, João Ubaldo Ribeiro consegue explorar as raízes da opressão racista
presente em nosso país, mostrando minuciosamente as formas de discurso racista
que aqui existiram e como elas desembocaram nas atuais formas de defesa de um
Estado injusto e de aparência meritocrática.
É impossível ler
este romance e não pensar nos tempos vividos por nós, em que mais e mais
direitos das pessoas mais pobres são negados e essas mesmas pessoas parecem
apoiar a causa de quem lhes remove coisas tão básicas. Percebemos a partir do
romance de Ubaldo que o pobre sobrevivente em um mundo absurdo, no qual o
Estado não representa nada no sentido de alívio de uma carga de viver, passa a
acreditar que a realidade é dura e somente a persistência e a malandragem
servem para garantir alguma chance.
As camadas mais
pobres vivem em um regime de isolamento desesperançado e o máximo que elas
podem fazer é seguir o seu trabalho na esperança de que amanhã algo de novo
ocorra. Não existe uma consciência de classe ou de sociedade, uma consciência a
qual mostre que todos estamos no mesmo barco e que todos somos humanos e que
por conta de nossa humanidade não deveríamos buscar essa dominação sobre o
outro. Não à toa, Leléu, uma espécie de capitão do mato dentro do romance,
enxerga com desconfiança o desejo de Dafé lutar contra a forma como a opressão
está organizada no país, subjugando negros. Para Leléu, o mundo sempre foi
assim e sempre será.
Pode causar
estranhamento a ausência quase que total dos índios dentro do romance, mas
talvez isso se justifique por uma maior aceitabilidade do elemento dos povos da
floresta em traços estéticos e culturais dentro do contexto social no qual
vivemos. Negros são taxados negativamente por suas vestes, seus cabelos, sua
cor o tempo todo ao passo que índios seguem a ser vistos como meio-termo entre
brancos e pretos e por isso não sofrem tantos juízos cruéis quanto a sua
aparência. Claro que isso não elimina a séria problemática dos genocídios que
eles ainda seguem a sofrer atualmente, mas penso que de um ponto de vista social,
urbano, os traços indígenas andam mais sossegadamente por aí.
Viva o povo brasileiro é um romance
polifônico que explica a questão da miscigenação do nosso povo por diversos
vieses. É uma leitura grande, densa e dificultosa em certos momentos, porém bastante
interessante para entendermos como nossa sociedade se formou de modo
conflituoso e se tornou esse panteão de convivências violentas que somos até
hoje. Neste romance é-nos possível entender melhor como a desigualdade social
de nossa sociedade possui profundas bases históricas e discursivas dentro da
existência de um povo com muitos elementos que absorveram, como verdade
absoluta, a lógica do senhor e do escravo como a única lógica possível para
este mundo.
Comentários