Saint-Exupéry inédito

Por José María Plaza

Os encontros de O pequeno príncipe

– “Este é um planeta diferente”, disse para si o pequeno príncipe enquanto viajava. Havia ido direto do deserto até o Himalaia. Desejava há tanto tempo conhecer uma montanha de verdade! Possuía três vulcões, mas chegavam aos seus joelhos. Apoiava-se frequentemente sobre o que estava adormecido, mas apenas lhe servia de assento.

– “De uma montanha alta como esta montanha – disse –, poderia ver toda a humanidade de uma vez”. Mas não viu nada, só picos de granito bem afiados e grandes destacamentos de terra amarela. Se reunisse todos os habitantes deste planeta um ao lado do outro, apertados como numa plateia, os brancos, os amarelos, os negros, as crianças, os velhos, as mulheres e os homens sem esquecer um só, a humanidade caberia inteiramente em [palavra ilegível] da ilha de Long Island.

– Se buscas um mapa-múndi escolar e perfuras com uma agulha, a humanidade se abrigaria toda ela na superfície deste orifício de agulha. Eu mesmo, é certo, havia visto ao longo de três anos de voo quão vazia estava a Terra. E, de fato, as rotas e os caminhos traçados nos dão a ilusão porque os encontramos além de onde estão os homens. Havia refletido sobre tudo isso do alto sem muita atenção. É graças ao pequeno príncipe como pude vê-lo com um pouco de mais clareza. “Onde estão os homens?, se perguntava o pequeno príncipe desde que começou a viajar.

– Encontrou o primeiro deles numa estrada. “Ah! Agora saberei o que é que pensam sobre a vida neste planeta” – disse para si. “Veja, talvez este seja um embaixador do espírito humano”.

– Bom dia – disse com alegria.
– Bom dia – respondeu o homem.
– Que fazes?
– Estou muito ocupado – respondeu o homem.
– “Claro que está muito ocupado” – pensou o pequeno príncipe – “pois vive num planeta muito grande. Há tanto o que fazer...”   
– E eu não queria incomodá-lo muito.
– Talvez possa lhe ajudar – disse, porém, pois tinha muito interesse de ser útil.
– Talvez – respondeu o homem. Há três dias que trabalho sem resultados. Busco uma palavra de seis letras que começa por G e que significa ‘gargarejo’.
– Gargarejo – disse o pequeno príncipe.
– Gargarejo – disse o homem.

***

Saint-Exupéry nos Estados Unidos; acompanha-lhe sua companheira e o poeta Leo-Paul Fargue.


Provavelmente, O pequeno príncipe não existiria sem a aventura americana de Saint-Exupéry. Em dezembro de 1940, o escritor – piloto de guerra, não se esqueça – mete-se no transatlântico Siboney, rumo a Nova York. Seu objetivo é convencer os Estados Unidos para que entrem no conflito, o que provocará, de imediato, a desconfiança por parte do FBI.

Antoine de Saint-Exupéry é, então, recebido como uma grande personalidade do mundo da cultura. Seu livro Voo noturno havia sido um sucesso de vendas; inclusive adaptado para o cinema num filme protagonizado por ninguém menos que Clark Gable. O escritor francês é uma celebridade; visita atores famosos como Greta Garbo, Marlene Dietrich, o próprio Gable, Charles Chaplin e pintores famosos. Não fala inglês, e se nega aprender; sua opinião é que o contato com uma língua estrangeira pode prejudicar seu estilo literário. Vive o ambiente do mundo do cinema e lhe contratam para o roteiro do filme Anne Marie, de Raymond Bernard, protagonizado por Annabella, uma grande amiga do escritor.

Na França foi assinado o armistício com a Alemanha, de modo que convive o governo títere de Vichy com a resistência, comandada por De Gaulle. É um país dividido, e Saint-Exupéry, em novembro de 1942, faz um chamamento à unidade dos franceses através dos microfones da NBC. Leva dois anos nos Estados Unidos. Embora viva um exílio dourado, sente-se desenraizado. Gostava de poder regressar ao seu país.

Enquanto isso, entretém seu ócio, jogando xadrez, cartas e levando uma vida mundana. Não abandona a escrita. Em oito meses escreve Piloto de guerra, que, logo se publicará em 1942. Nesse mesmo ano começará a escrever O pequeno príncipe por sugestão de Elizabeth Reynal, companheira de seu editor nova-iorquino. A cena, tal como se reflete nas páginas de O pequeno príncipe. Enciclopédia ilustrada, de Christophe Quillien foi mais ou menos assim. O editor Eugene Reynal, que havia publicado Terra de homens está comendo com sua companheira e Saint-Exupéry no Café Arnold, de Nova York. Durante o almoço falam sobre o sucesso de Mary Poppins, uma obra de Pamela Travers que havia sido publicada oito anos antes. E a companheira do editor pede a Saint-Exupéry que escreva para eles uma história infanto-juvenil. Sugere escrever um conto de Natal. Em novembro de 1942 é assinado o contrato e lhe pagam um adiantamento de US$ 3 mil, mas Saint-Exupéry não escreve nenhum conto natalino.


Saint-Exupéry e seus editores estadunidenses


Alguns amigos do escritor deram detalhes e contaram anedotas para mostrar a origem de O pequeno príncipe. Parece que a história já vivia com o escritor e a inspiração para o livro remonta a sua infância: daquelas férias felizes no castelo Saint-Maurice-de-Rémens, propriedade de Gabrielle de Lestranger, sua madrinha e tia-avó. No enorme jardim, isolado do mundo, o pequeno Antoine olhava o céu cheio de estrelas e planetas de todos os tamanhos e os imaginava com vida própria. Outra das influências para seu livro foi as memórias sobre as histórias lidas por sua mãe, Marie, com quem esteve tão próximo. Em Cartas a uma desconhecida confessa: “Sabemos que os contos de fadas são a única verdade da vida”.

O pequeno príncipe era um livro para o público infanto-juvenil. O pintor Bernard Lamotte, que havia ilustrado Piloto de guerra, fez os primeiros desenhos que Saint-Exupéry não se agradou porque lhe pareceram muito obscuros e porque faltava ingenuidade, a palavra-chave da narrativa. A pintora Hedda Sterne logo sugeriu ao escritor que ilustrasse ele mesmo a história ao ver os homenzinhos que costumava desenhar em suas cartas e nos espaços de suas anotações.


Desenhos de Saint-Exupéry para O pequeno príncipe

O livro foi escrito em pouco tempo em sua mansão em Long Island, uma casa que havia sido encontrada por sua companheira, quem finalmente decidiu viajar aos Estados Unidos para viver com seu companheiro. Consuelo Gómez Carrillo e Saint-Exupéry haviam se casado em 1931. Ela era de San-Salvador, baixinha e morena (o oposto dos gostos femininos do escritor), viúva de um diplomático, que sabia contar histórias como sua mãe. Viveram juntos até o fim da vida, embora a relação tenha sido um bocado tumultuada porque cada um deles tiveram muitas amantes.

O pequeno príncipe foi publicado pela primeira vez em inglês em francês no dia 6 de abril de 1943, pela editora nova-iorquina Reynal & Hitchcock num volume com 91 páginas. Lançaram 525 exemplares numerados e assinados pelo autor de The Little Prince e 260 de Le petit prince. Na França foi editado pela Gallimard, em abril de 1946, dois anos depois da morte do escritor, uma edição com 12.750 exemplares. A primeira tradução (depois do inglês) foi para o polonês, em 1947. Nos anos cinquenta e sessenta começou a crescer a fama do pequeno livro e espalhar-se por todo o mundo. Hoje, O pequeno príncipe pode ser lido em 270 idiomas e dialetos (Harry Potter, em 70) e é a obra literária mais traduzida do mundo depois da Bíblia.

Todas essas informações estão incluídas em O pequeno príncipe. Enciclopédia ilustrada, um amplo volume onde se recolhe, de maneira sintética e com muitas imagens e desenhos, o universo da obra e o que ela tem produzido ao seu redor: livros imitadores, filmes, adaptações para o teatro, música, quadrinhos, álbuns, edições de colecionador, séries para televisão, licença comercial para exploração de 10 mil produtos relacionados com o pequeno menino loiro e um parque temático. Mas, o mais interessante para os admiradores do livro será certamente a parte em que são reproduzidas algumas páginas do manuscrito original, escritas com essa letra miúda e difícil de ler, conservado no museu da Livraria Morgan, de Nova York, e que inclui, entre elas, um capítulo inédito que o próprio Saint-Exupéry desejou para a versão definitiva.

Fragmento de página com capítulo inédito de O pequeno príncipe.


Também são apresentadas algumas anotações com outros encontros do pequeno príncipe recusadas pelo escritor, como o diálogo com comerciante em que se criticava a sociedade de consumo ou com um inventor que havia idealizado uma máquina cheia de botões. O início do capítulo XX, em sua primeira versão, era diferente do que agora conhecemos. Começava assim: “Que bem se está no topo da colina. É onde melhor se está. Uma montanha sempre é arrogante, um planeta só é triste, mas uma colina é acolhedora e alegre. O topo de uma colina sempre está repleto de coisas bonitas que parecem brinquedos: maçãs em flor, ovelhas, pinheiros como para o Natal. O pequeno príncipe, muito surpreso, seguia com passos curtos o topo da colina quando descobriu um jardim, e neste jardim cinco mil flores...” Como se vê era um esboço para polir.

Na introdução para a obra Christophe Quillien destaca: “Este livro conto a história de um menino diferente dos demais. Chama-se pequeno príncipe. Também conta a história de Saint-Exupéry. Ou melhor, dos Saint-Exupéry: o menino, o narrador, o aviador, o escritor, o inventor, o filósofo, o homem que amava as mulheres. Aos 10 anos já tinha um futuro planejado. Escrevia, desenhava, sonhava com viajar num avião. Havia construído um que nunca chegaria a decolar”. Porque, à margem da escrita suas duas grandes paixões foram desenhar e voar. Morreria num voo: no amanhecer do dia 31 de julho de 1944 fumará seu último cigarro Craven antes de partir, de uma base aliada da Córcega até os Alpes para um voo de reconhecimento. Algumas horas depois se perderá sua pista para sempre. Há outo anos o piloto alemão Horts Rippert assegurou que foi ele quem abateu o avião do último voo de Saint-Exupéry – o homem que sempre foi o pequeno príncipe.

Ligações a esta post:
>>> Leia matéria sobre os 70 anos de O pequeno príncipe.


* Este texto é uma tradução livre para “De Saint-Exupéry, inedito”, postado em El Mundo.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual