O vento da noite, de Emily Brontë
Há um livro
que sempre será apresentado como se fosse o único de Emily Brontë e cujas
edições e traduções têm crescido consideravelmente desde sua popularização: O morro dos ventos uivantes. Mas, há uma
face da escritora que certamente é novidade para muitos leitores e é também uma
das melhores da sua obra – a poesia. A nova edição de O vento da noite, livro em que desde o título ecoa traços recorrentes
do universo literário da escritora é uma das melhores surpresas.
O livro
integra o trabalho de recuperação da obra de outro escritor, Lúcio Cardoso,
quem trabalhou durante longo tempo com a tradução de importantes obras da
língua inglesa para o português. Isto é, O
vento da noite significa muito não apenas para os que desejam contatar com
a escrita de Brontë mas também com a escrita do brasileiro – um duplo diálogo
favorável à compreensão criativa de um e outro. Há, por exemplo, na escolha de Cardoso
pela tradução dessa obra uma série de temas que lhe servem à composição da atmosfera
de obras como Crônica da casa assassinada.
Basta citar que, nessa época, ele dedicou-se à tradução de títulos como Drácula, de Bram Stoker e O fim do mundo, de Upton Sinclair.
A poesia de
Emily Brontë, apesar do reconhecimento por seu romance, foi publicada um ano
antes de O morro dos ventos uivantes
juntamente com criações do gênero propostas pelas irmãs. A antologia primeiramente organizada por Lúcio foi publicada no Brasil era 1944, quase um século
depois, se lembrarmos que seus poemas saíram em 1846. Fez parte de uma imponente
coleção editada pela José Olympio, a Rubáiyát, em capa dura e brochura e,
depois, noutra tiragem, fora de comercialização, em apenas dez exemplares em
papel especial e outros cento e cinquenta numerados e assinados pelo tradutor com
capa e ilustrações de Santa Rosa. A nova edição de O vento da noite reabilita, assim, uma obra que desde esses arroubos havia
estado esquecida e, mais que isso, pela sua acessibilidade coloca-se à frente
de um público maior e diverso.
O leitor perceberá
algumas particularidades no trabalho de Emily com esse gênero literário: não é
apenas a maneira como recupera determinadas expressões temáticas que engendra
em O morro dos ventos uivantes, mas
“a poesia de Emily Brontë não se assemelha ao padrão da produzida por muitas
mulheres”, conforme reforça Ésio Macedo Ribeiro no prefácio que escreve para O vento da noite: ele é quem ficou responsável pela edição ora publicada e pelo trabalho acurado que revisão. “Embora seus poemas pertençam, à chamada escola romântica, marcada pelo lirismo,
pela subjetividade, pela emoção e pelo eu,
eles fogem em muito à pieguice e ao derramamento exacerbado característicos
daquele movimento literário. Sobretudo pela concretude com que ela trata os
mais diversos temas em O vento da noite,
a exemplo da passagem do tempo, a noite, a solidão e a morte”, completa. Mesmo que sempre saiba-se que o brasileiro teria ampliado mais esse distanciamento, fora desse contexto, a obra poética de Emily sempre figura entre as melhores criações do gênero em língua inglesa.
E esta
qualidade da poesia de Emily não é desperdiçada por Lúcio Cardoso quem escolhe
não uma tradução ao pé da letra, presa no idioma original, mas uma tradução
livre, como ele próprio anuncia no prefácio da primeira edição. Essa liberdade do
tradutor é marcadamente um trabalho de recriação ou recreação com a linguagem –
um tratamento que muito recobra o de outros poetas que se dedicaram ao exercício
de tornar legível no seu idioma determinadas obras, como fez Ana Cristina Cesar
com a poesia de Emily Dickinson, por exemplo. “Emily se esmera nas rimas, nos
metros, nos ritmos, nas tônicas em suas estrofes de quatro versos. Lúcio não
segue as rimas, não segue os metros, não segue ritmos e tônicas, não segue
sequer o número de versos. Emily multiplica aliterações, assonâncias,
metáforas. Lúcio não se pauta por sonoridades e figuras de linguagem. Lúcio não
se detém sequer no tom dolorosamente lírico de Emily: carrega, exacerba, dramatiza,
excede”, sublinha Denise Bottmann.
De modo que
o que ele constrói se constitui mais num diálogo ora irmanado ora conflituoso, como
lembra Bottmann; isto é, não é sequer o conceituado como transcriação. Mas,
engana-se quem acredita que ele não terá captado certas particularidades da
poesia de Emily. O exercício de contato entre um texto e outro, reafirma a
sensibilidade do tradutor impressa desde a criação do título para sua antologia.
O elemento noite é uma constante de sua poesia, como se nota mesmo em alguns
nomes dados aos poemas – além do que nomeia e abre o livro, cite-se, para
efeito, “A noite se torna mais escura...”, “A noite brilhante do infinito”, “O
sol acabava de descer” – e na recorrência dessa atmosfera ao longo dos textos.
Segundo
explica Daise Lilian Fonseca Dias em seu ensaio “Mulheres escritoras, cânone e
poesia: Emily Brontë”, muitos dos poemas têm essa tônica do noturno porque
foram escritos numa época quando a poeta trabalhava em Law Hill: “foram escritos tarde
da noite, quando seus alunos dormiam e suas obrigações, com conserto de roupa e
costura, eram postas de lado”; “Era nesses momentos que sua imaginação fluía ao
som do silêncio e em companhia da liberdade de criação, de pensamento, de
espaço, livre das amarras do mundo exterior, isto é, fora da casa paterna que
tanto a incomodava. A noite e a escuridão são retratadas como símbolos de
liberdade, assim como a imensidão escura das charnecas que Brontë visitava
quase que diariamente”. Ou seja, a noite e a escuridão são nos poemas, em parte,
justamente o contrário da condenação dolorosa a que estavam submetidas as forças
líricas do romântico.
Agora, fazendo um retorno à compreensão sobre a qualidade da obra poética de Emily, há um poema seu que conclui essa antologia – sempre lembrado com um exemplo sobre o
elevado nível de criação da poeta – que, também num retorno àquela relação apresentada
entre temas da sua poesia e do seu romance, vale citar nessa ocasião; chama-se,
na tradução de Lúcio Cardoso, de “Minha alma não tem coisa alguma” e foi
escrito poucos anos antes da morte da poeta
conforme informa uma pequena nota da irmã Charlotte Brontë.
Minha alma
já não teme coisa alguma,
E a escura tempestade
em que sem descanso o mundo
Gira,
Não mais a
abalará:
Já vejo a
glória dos Céus extasiantes,
E a fé que
resplandece no fogo de sua armadura
Aniquila o medo
no meu ser.
Ó Deus que
eu trago dentro de mim,
Deus
todo-poderoso, Presença universal!
És a Vida – em
meu seio Tu repousas,
E minha
eternidade encontra em Ti o seu poder!
Vejo a
vaidade nas múltiplas nuances,
Onde o homem
alimenta a força do seu coração:
E vejo esta vaidade
e a sua impotência
Fanadas e
mortas como a erva dos campos,
Como a espuma
louca das vagas no oceano,
Tentando
inutilmente reanimar a dúvida,
Quando a
alma já está sã e salva,
Aprisionada
para sempre em Teu Ser infinito,
Através de
uma certeira âncora
Lançada ao
rochedo imutável da vida eterna!
Teu sopro,
com amor, abraça os espaços
E penetra
com sua vida os séculos eternos,
Espalha-se
como um rio e cobre o nosso mundo,
Mudando ou
preservando as coisas,
Dispersando-as,
criando-as, trazendo-as à vida.
E se viesse
o fim deste mundo e o fim dos homens,
O fim dos
universos, a ruína dos sóis,
Se apenas Tu
ficasses,
Serias ao
mesmo tempo todas as existências.
A Morte se
esforça em vão para achar um espaço,
Mas seu
poder não pode aniquilar um átomo sequer.
Tu és o Ser
e o Sopro,
Nada poderia
abolir as Tuas formas.
Para Daise,
este poema “mostra o repúdio da autora pela religião ortodoxa e a celebração de
uma fé individual” e “marca o ponto culminante das muitas ideias, crenças e
preocupações” da poeta. Já Katherine Frank, numa leitura sobre a biografia de
Emily, assinala que poema ora lido conformam no tom e na dicção um elo que o
coloca em estreita relação com O morro
dos ventos uivantes e entre tudo que ela havia produzido. “Críticos admiram
a excelência da visão panteísta do referido poema, sua autenticidade de voz, ao
sugerirem que a autora não assumiu uma persona,
mas compartilhou seu profundo relacionamento – embora a seu modo – com Deus;
destacam contradições que representam o profundo insight de Brontë em relação à natureza do universo e a tentativa
de o homem se encontrar nele, bem como a rejeição da religião ortodoxa de
influência Metodista na qual ela foi educada”, completa Daise.
Entre as
criações de Lúcio Cardoso nas suas traduções está a tarefa de atribuir títulos
a determinados poemas que no original não foram nomeados; este que foi citado é
um exemplo. Detalhe que ao leitor comum poderá passar despercebido, mas que
para o reorganizador de O vento da noite se
mostrou um empecilho quando decidiu acrescentar às traduções de Lúcio os poemas
originais. A perspicácia de Ésio para driblar essa dificuldade propositalmente
– talvez – imposta pelo tradutor foi acrescentar a identificação dos poemas por
números. Outra dificuldade foi encontrar qual obra Lúcio teria utilizado para o
trabalho de tradução; pergunta para a qual a resposta talvez nem exista, o jeito foi
escolher uma que melhor atendesse aos princípios de coerência e melhor servisse
ao leitor de aproximação com a poética de Emily – optou, assim, por uma edição
de 1908 com a obra completa da escritora.
Apresentados
os detalhes sobre O vento da noite
nem é necessário reafirmar o valor da obra nesse novo contexto; ela supre uma
lacuna das maiores na bibliografia de Emily Brontë no Brasil, no mesmo instante
em que reanima o interesse pelo trabalho de Lúcio Cardoso.
______
O vento da noite (edição bilíngue)
Emily Brontë
Lúcio Cardoso (Trad.)
Lúcio Cardoso (Trad.)
Ésio Macedo Ribeiro (Org.)
Civilização Brasileira, 2016
154 p.
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