O quinze, de Rachel de Queiroz
Por Rafael Kafka
A jovem Rachel de Queiroz quando do período em que escrevia O quinze. Arquivo do Museu Histórico de Quixadá. |
O quinze é longe de ser um
romance grandioso se o compararmos com outras obras do regionalismo modernista
brasileiro, como Vidas secas, ou mesmo obras da própria autora, Rachel de
Queiroz, em momentos mais tardios de sua carreira, como Memorial de Maria Moura.
Todavia há nele alguns elementos do ponto de vista formal e conteudístico os
quais devem ser levados em conta no presente texto.
A começar pela temática da seca
sendo abordada por uma jovem de apenas 20 anos de idade na ocasião
utilizando-se de memórias da grande seca que assolou o nordeste brasileiro em
1915 – ano que dá nome ao romance de estreia de Rachel, que pelo volume
poderíamos facilmente dar o rótulo de novela, mas é mesmo um romance por em
suas poucas páginas se utilizar de diversos focos narrativos. Devido ao fato de
ser um romance estreante em fase tão juvenil, percebemos nele um ar rústico
muito evidente ao mesmo tempo em que há aspectos que se mostrarão de forma mais
madura em textos mais evoluídos, como o romance citado no primeiro parágrafo
deste texto.
Já aqui, vemos a predileção da
autora em usar períodos curtos para escrever a história, o que garante um
desenrolar veloz do enredo sem perda de tempo com explanações psicológicas
densas e por demais tediosas em determinados momentos. Todavia, em alguns
pontos do romance há um certo ar raso causado pela falta de desenvolvimento das
personagens devido a essa falta de exploração das questões psicológicas. Mas do
que um recurso psicológico utilizado para agradar ao grande público, penso que
Rachel reflete em sua maneira a aridez do sertão que condiciona o ser humano
sertanejo a viver de forma dura e limitada, lutando arduamente para ter o que
comer e o que beber. A miséria reduz toda a ontologia humana à mesmidade da
luta da sobrevivência e toda a análise psicológica se torna, de certa forma,
inútil quando queremos expor o desespero de pessoas passando fome e
necessidades.
Claro que autores mais maduros
como Graciliano Ramos e mesmo a própria Rachel em outros romances conseguirão,
utilizando-se de recursos de animalização das personagens humanas – como
esquecer Fabiano? –, discutir temáticas como a exploração que o ser humano provoca
no mais fraco da cadeia social. Nesse sentido, o humor adstringente com o qual
são narrados romances como O quinze e Vidas secas é a essência dos modos de ser
de personagens sem perspectivas de vida, afundados em miséria e descaso.
A seca aqui não é vista,
portanto, como algo natural tão somente. Ela é vista como um fenômeno piorado
pela falta de investimento do Estado em auxiliar as camadas mais pobres que
residem na região e que precisam de um esforço sobre humano para não sucumbirem
diante da morte, que a cada instante parece espreitar as famílias de retirantes
que procuram abrigos nos verdadeiros campos de concentração mantidos de forma
parca por algumas instituições sociais. É em um de tais campos onde se
encontram os dois focos narrativos principais de O quinze, Chico Bento e sua
família, que estão a fugir da seca depois de perderem tudo, e Conceição,
professora de família relativamente abastada que ajuda os mais pobres como pode
e tem uma paixão não concretizada por Vicente, um vaqueiro da região de Quixadá,
no Ceará.
O motivo do não cumprimento
desse amor durante o romance são as diferenças entre os dois seres: Vicente é
um ser da terra que se orgulha de sua bruteza, criticado inclusive por membros
de sua família por não ter seguido carreiras importantes como a de advogado; já
Conceição, como citamos acima, é professora e amante de romances e quando pensa
no tipo de diálogo que haveria entre ela e o vaqueiro sente profunda dúvida se
deve levar adiante ou não o sentimento por ele nutrido.
Durante boa parte da história, o
foco é a luta da família de Chico Bento para chegar a algum local seguro para
si. No meio de tal viagem, vemos um dos filhos do homem morrer na seca. Outro,
Duquinha, acaba sendo adotado por Conceição, a qual por sua vez indica a Chico
a possibilidade de este viajar para São Paulo e ali conseguir emprego. Vemos
assim no enredo um indício do que viria a ser o êxodo rural, algo que naquela
época, 1930, começava a ganhar contorno mais nítidos, com levas de nordestinos
mudando-se para os grandes centros urbanos para trabalhar na construção das
principais cidades do país. Tal fenômeno
explica muito da injustiça social de nosso país bem como do preconceito
dirigido ao sertanejo até hoje por certos membros da sociedade brasileira.
Vemos também durante o romance
uma cena na qual Chico Bento, mesmo com recursos bastante escassos, doa boa
parte de sua comida, farinha e rapadura, para outra família de retirantes que
estava prestes a comer um cadáver de uma vaca morta por conta de mal dos chifres.
Embora tendo de encarar a fome atroz, o vaqueiro prefere dividir o pouco que
tem a ver outros pares correrem risco de morte por comerem algo que poderia
lhes causar problemas. Dessa forma, Rachel atesta a boa índole do povo
sertanejo no plano romanesco, que ela atestará também em outros pontos de sua
obra, em especial nas crônicas.
Apesar de não possuir o mesmo
poder dramático de um Vidas secas, O quinze é um bom livro para se promover o
debate acerca da questão da seca e da desigualdade social. Nele já vemos alguns
elementos presentes em outros textos de Rachel, como a narrativa multiplanar e
veloz, que tornaram seus textos muito populares entre o grande público, ainda
mais pelas adaptações para o meio televisivo. Vemos também a necessidade de se debater
um tema que segue atual no cenário político e literário de nosso país: o
constante descaso do Estado para com as camadas mais baixas, que seguem a viver
como se por elas ninguém devesse fazer nada, exceto a providência divina.
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