Natália Correia: um sopro de liberdade na poesia portuguesa

Por Maria Vaz


Confesso aquilo que o ‘dever ser’ evitaria: não sabia bem sobre quem escreveria desta vez. Contudo, há sempre qualquer coisa de correspondência anímica que nos envia para aquilo que amamos em alguém. A inconvencionalidade que só tem quem é tocado pela liberdade. Uma liberdade que é amor. Um amor abstracto e nada mesquinho. Pelos Direitos Humanos. Pela emancipação feminina. Pela preocupação com genuinidades, e não com o politicamente correcto: que nunca é para nós, mas para o que os outros possam pensar; que, paradoxalmente, não é altruísmo de nenhum tipo, mas egoísmo e vaidade. Enfim. Para quem passe os olhos pela biografia de Natália Correia torna-se facilmente visível o brilho ontológico que carregava consigo: um brilho que a perseguia em palavras ordenadas em estrofes ou, simplesmente, na liberdade que a sua existência sempre exalou. Era uma existencialista. Uma rebelde.

Não lhe chamemos poetisa, afinal sempre defendeu que a poesia era assexuada. A sua exalação de liberdade fez correr tinta em biografias dadas à estampa, publicadas em ambos os lados do oceano. Com todo o amor ou repulsa que provocava, deixou uma certeza: ninguém lhe era indiferente. Dona de uma personalidade forte, embora romântica, combateu o preconceito e o fascismo em várias frentes. Nasceu na ilha de São Miguel, nos Açores, a 13 de setembro de 1923, muito embora se tenha mudado para Lisboa quando tinha 11 anos de idade. Para descrevê-la nada melhor do que recorrer a um poema, da sua obra Poesia Completa, com o nome de “Auto-retrato”:

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.

Ou, ainda, no poema “Defesa do Poeta”:


Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

(…)
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!

A poesia é para comer.




Contudo, a inconvencionalidade de Natália Correia não se circunscreveu à poesia. Alargou-se à literatura, como um todo: aos romances, à investigação, aos ensaios e ao teatro. A sua obra publicada é muito vasta. Parte dela encontra-se traduzida em várias línguas estrangeiras. No que toca à sua poesia, muitos a rotularam de possuir toques líricos e irónicos, sobretudo após a publicação de Dimensão Encontrada (1957). Natália parece ter sido uma indignada crónica, sobretudo com aquilo que cria tratar-se de opressivo à sua liberdade de expressão e de Imprensa. Afinal, não podemos desconsiderar o facto de Natália ser contemporânea da ditadura salazarista, mais conhecida por ‘Estado Novo’. Dessa sua indignação surgem versos como os seguintes, precisamente da sua obra Dimensão Encontrada:

(…)
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.
            
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.
(…)
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo.
           
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro.
(…)
Dão-nos um nome e um jornal,
um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino.
            
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
não é a vida. Nem é a morte.



Não obstante a indignação supra mencionada, não se furtou a quebrar os tabus de um tempo em que as mulheres eram remetidas a ideais de castidade, de castração, em nome de princípios obsoletos que propiciavam a continuação de uma espécie de superioridade, até intelectual, dos homens sobre a duplicidade do cromossoma XX. Nesse sentido, foi sem muito pudor que publicou poemas de teor erótico, como o que veremos abaixo (constante de uma colectânea de poesia com o nome de Eros de passagem, Poesia erótica contemporânea).

O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro.

A forma de Natália Correia encarar a vida, com toda a sua liberdade de aceitação da diferença, granjeou-lhe muitas amizades com personalidades de destaque no Portugal da segunda metade do século XX. Amizades, essas, que alargaram as fronteiras deste país que, nas palavras de Salazar, se dizia “orgulhosamente sós”. Amizades sem fronteiras, que foram aumentando ao mesmo tempo que a sua personalidade irreverente se foi dando a conhecer pelo mundo. Na década de 70, abriu um bar com umas amigas, denominado botequim: lugar que ficou célebre pelas reuniões intelectuais e artísticas. Os amigos, mais ou menos ilustres, amavam-na e reconheciam-lhe a beleza do espírito na rebeldia das causas que sempre defendeu, da humanidade e das palavras que tinha sempre prontas. 

Após a revolução dos cravos, tornou-se deputada na Assembleia da República e, em 1991 – dois anos antes da sua morte –, foi eleita Grande-Oficial da Ordem da Liberdade e viu a sua obra Sonetos Românticos ser granjeada com o prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.

A sua vida pessoal, nos intervalos de uma vida social bastante preenchida, dividiram-se entre o tempo dedicado à escrita e às paixões e aos amores que viveu. Tinha em si tanto de romântica, quanto de realista. Talvez tivesse ocultado mais do romantismo pela força que teria que mostrar aos outros. Afinal, uma mulher com a liberdade dela com certeza feriu muitas sensibilidades, típicas de quem se inferioriza e tem necessidade de falar mal ou arranjar defeitos. Natália Correia travou batalhas em várias frentes. Foi uma corajosa. E uma diplomática, ao mesmo tempo. Uma romântica, embora realista, diplomática, que lutou pela igualdade. Alguém que, no fundo, sempre quis que a deixassem em paz, na sua Liberdade. Veja-se a sua “Ode à Paz”:

ela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza, 
Pelas aves que voam no olhar de uma criança, 
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza, 
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança, 
Pela branda melodia do rumor dos regatos, 

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia, 
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos, 
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria, 
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes, 
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos, 
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes, 

(…)
Abre as portas da História,
                               deixa passar a Vida!

Nas palavras de Fernando Vieira-Pimentel, em “O sol na noite e o luar nos dias, de Natália Correia: romance, a três vozes, de uma ocidental”:

“Quem quiser compreender a poesia de Natália não poderá nunca prescindir do seguinte: de que se trata de uma obra gerada, do princípio ao fim, sob o signo do amor ao Todo (chame-se ele Natureza, Universo, Ser, Deus, Vida, Alma ou Espírito...). É por isso que acertadamente ela se define como romântica: em primeiro lugar, porque liberta da apertada malha dos universais literários; em segundo lugar, porque jubilosa de cooperar na grande obra da criação; em terceiro lugar, por saber que a cada momento nela se renova a tradição literária, vale dizer, que a cada momento nela se refaz a odisseia de um espírito determinado pela íntima necessidade de perdurar ('Em mim se resolve / o alto sentido / do fruto na árvore / incontido', I, p. 95).”

Natália faleceu a 16 de março de 1993. A notícia do seu falecimento correu o mundo. O jornal The New York Times, inclusivamente, no dia seguinte publicou uma nota em que a homenageou como “uma das mais conhecidas escritoras portuguesas” – aludindo aos ‘Sonetos Românticos’ como “a mais bonita literatura portuguesa na contemporaneidade” –, não deixando de mencionar as suas batalhas políticas.

Concluo com a afirmação do indesmentível: Natália terá sempre um lugarzinho ao sol da minha lista de personalidades inspiradoras. Pela genuinidade. Pela ousadia. Pela ausência de medo. Pelo amor à liberdade e à igualdade. Por dizer exactamente aquilo que pensava.

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