E os tais inéditos de Roberto Bolaño?



Roberto Bolaño nem sempre foi escritor; primeiro trabalhou como lavador de pratos, lixeiro, cozinheiro e até vigilante noturno. Nem sempre morou no mesmo lugar: passou pelo México, El Salvador e vários países europeus antes de ir viver na Espanha. Era janeiro de 1981, quando chegou a morar na casa do bairro Las Pedreras, em Girona; antes, havia deixado seu quarto na rua Tallers, em Barcelona, cinco anos depois de seu itinerário por parte da América Latina. Estava ainda na casa dos vinte anos e a instalação ao norte da Catalunha foi numa habitação alugada pela irmã Salomé que logo regressou ao México deixando o escritor só com sua cadela Laika. Foi aí que começou a se dedicar melhor à literatura; foi aí que construiu uma contínua recepção para velhos amigos.

“Toda vez que eu o visitava estava sozinho e fazia um frio que carcomia os ossos”, recorda Bruno Montané. “Roberto se agarrou com a biblioteca de livros de ciência de ficção que o cunhado Narcís havia lhe emprestado”, acrescenta o poeta que juntamente com Bolaño e outras figuras deram voz ao Movimento Infrarrealista, quando estavam na Cidade do México.

“Naquela época eu tinha vinte e tantos anos e era mais pobre que um rato. Morava nos arredores de Girona, numa casa em ruínas que minha irmã e meu cunhado tinham me deixado depois de irem para o México, e acabava de perder um trabalho de vigia noturno num camping de Barcelona, o qual havia acentuado minha propensão a não dormir de noite. Quase não tinha amigos e a única coisa que fazia era escrever e dar longos passeios que começavam às sete da noite, depois de acordar, momento em que meu corpo experimentava uma coisa parecida com o jet lag, uma sensação de estar e não estar, de distância com respeito ao que me rodeava, de indefinida fragilidade. Vivia com o que tinha economizado durante o verão e, embora quase não gastasse dinheiro, meu pé‑de‑meia ia minguando com o passar do outono”, relata o narrador de “Sensini”, texto incluído em Chamadas telefônicas. Bolaño esteve em Girona até 1984.

Nesse tempo participa e ganha alguns concursos de contos e escreve pelo menos quatro romances: Diorama, A virgem de BarcelonaDF, La paloma, Tobruck e O espírito da ficção científica. E lê autores do gênero fantástico como Fritz Leiber, Ursula K. Le Guin, Joe Haldeman e, possivelmente Philip K. Dick, sobre quem disse, duas décadas depois, ser “o escritor dos paranoicos, o profeta marginal”. Nenhum desses títulos veio a lume e sobre eles nunca o escritor fez menção de publicá-los ou simplesmente interessar-se por.

Alguns dos romances que saíram quando estava em Girona foi Conselhos de um discípulo de Morrison a um fanático de Joyce, escrito junto com seu amigo Antoni García Porta, e Vereda dos elefantes. É 1984 e o jornal local El punt entrevista Bolaño. “Um verdadeiro escritor de romance negro”, sublinhou-se como se numa espécie de apresentação à sociedade para o jovem chileno que se converteria depois da sua morte, sobretudo, aos 50 anos, em 2003, na figura literária latino-americana de maior projeção mundial.

“Recusas da Anagrama, Grijalbo, Planeta, com toda segurança / também da Alfaguara, Mondadori: um não de Muchnik, / Seix Barral, Destino... Todas as editoras / Todos os leitores / Todos os gerentes de vendas [...] Sob o poeta, enquanto chove, uma oportunidade ouro / Para ver a mim mesmo: / como uma serpente no Polo Norte, mas escrevendo” – anotou Bolaño nos anos 1980.

Essa condição não acabaria aí; o escritor precisaria esperar até a década seguinte para encontrar uma saída. É quando o editor espanhol Jorge Herralde, da editora Anagrama, apostaria na sua obra. E é assim que começou uma amizade que durou até o último dia de sua vida e até postumamente com a publicação de 2666, o primeiro livro publicado depois da morte de Bolaño. “Há momentos para recitar poesia e há momentos para boxear”, disse em alguma ocasião o escritor que assim compôs sua escrita. Romances como Estrela distante, O terceiro Reich, Os detetives selvagens ou a já citada primeira obra póstuma, entre muitas outras, provam que Bolaño tentou forçar os limites da literatura ao ponto de consagrar-se uma das vozes mais importantes da literatura latino-americana.

2666 não foi planejado por Roberto Bolaño para ser um só volume como ficou conhecido. Ele havia planejado cinco volumes e deixou assim apalavrado com Herralde que assim a publicasse; repetindo aqueles casos em que a voz do editor é mais autoritária que a do escritor – e também porque este não tinha a voz para defender-se nesse plano – o livro saiu num só volume. Talvez tenha sido a pressa em revelar o quão Bolaño era prolífico ou que a fonte de inéditos duraria longa data sem esgotar-se tendo em vista alguém que produziu tanto – viveu para isso – e morreu jovem.

Ainda sem ouvir a voz do escritor foi as edições de alguns inéditos descartados ou extraviados que à medida que surgiram do arquivo de Bolaño passou a servir de alimento a essa serpente faminta por novidade chamada mercado editorial. Foi assim que se publicou O terceiro Reich, em 2010, e As agruras do verdadeiro tira, no ano seguinte. Nessa mesma esteira, junta-se O espírito da ficção científica, que se publica em 2016, e mais um livro de contos inéditos. Nessa mesma esteira, se planeja editar outros inéditos e até a poesia do escritor que sempre almejou ser poeta mas depois reconheceu estar mais próximo à prosa.

A novidade sobre os novos livros veio na ocasião em que a obra de Roberto Bolaño deixa de fazer parte da Anagrama – a editora que o projetou – para fazer parte da Alfaguara, a casa que um dia o rejeitou; sai também em meio a uma turbulência: amigos do escritor, como Ignacio Echevarría, quem cuidou da edição de 2666, por exemplo, acusam a viúva de Bolaño, Carolina López, de promover um verdadeiro abuso sobre a memória do escritor, primeiro por velar o acesso dos amigos à obra de Bolaño e propositalmente, nesse interesse, retirá-la da casa a que sempre o escritor foi fiel até sua morte.

O espírito da ficção científica data de 1984 – aquele ano em que publicou Conselhos de um discípulo de Morrison a um fanático de Joyce e Vereda dos elefantes. É anterior aos outros títulos inéditos mencionados acima e próximos de suas produções na década seguinte – a que começou a publicar sua obra pela Anagrama.

A data e a assinatura no final do manuscrito, dizem os editores, marcam a compreensão de que Bolaño deu a obra por finalizada. Depois de transcrita o texto conta 43, 612 palavras em 167 páginas. Confirmando as influências do escritor pela convivência com a biblioteca de ficção científica e a possível leitura de Philip K. Dick está além do tema evocado no título na dedicatória elaborada para a obra.

Dois jovens poetas latino-americanos, Jan e Remo, tentam viver da literatura. Obcecados pela poesia e, sobretudo, pela literatura de ficção científica estão dispostos a ganhar a vida com isso. Segundo a sinopse apresentada pela editora que publicará a obra em língua espanhola, a transcrição de uma entrevista delirante regada com vodca e tequila a um escritor sem identificação (ver o final desta postagem, na mesma noite de consagração na qual recebe um prêmio importante, por uma jornalista sem nome abre o romance. O escritor fala com ácido sentido de humor sobre o roteiro de um possível romance ambientado na fantasmal Universidade Desconhecida, essa sorte de heterodoxa formação de todo escritor, que muitos anos depois o autor converteria em título de toda sua produção dos últimos anos; isto é, Os detetives selvagens. E essa entrevista fragmentada em breves capítulos se intercala com o relato de iniciação ou aprendizagem de dois jovens poetas menores de 20 anos, Remo Morán e Jan Scherella. O primeiro frequenta oficinas de criação literária, escreve resenhas e tenta abrir o caminho da escrita; o segundo, neurastênico ou fóbico, jamais sai à rua e consome seu tempo entre a leitura obsessiva de romances de ciência de ficção e as descabeladas cartas que escreve aos autores favoritos: Forrest J. Ackerman, Fritz Leiber, Ursula K. Le Guin.

Situada na Cidade do México de entre os anos 1960 e 1970, a narrativa dividida em duas partes se dá através de três eixos narrativos, numa mistura de traços próprios da literatura realista, com outros fantásticos de caráter onírico na descrição dos sonhos dos protagonistas – um jornalista e um escritor que investigam estranhas estatísticas sobre a poesia. A obra intercala as cartas escritas para escritores reais de ciência de ficção: “Querido Robert Silverberg, os miniaturistas sempre me pareceram vassalos do demônio. Toda minha vida acreditei que a Maldade antes de aparecer ensaia suas piruetas em pequeninices”. É aqui que se verifica uma estreita relação com obras como Os detetives selvagens. É como se narrasse os dias de adolescência de Arturo Belano e Ulises Lima. Uma das seções de O espírito da ficção científica é o mesmo título que o escritor deu ao livro de poemas A universidade desconhecida – “Manifesto mexicano”. 

Apesar da euforia com que a notícia foi divulgada ao redor do mundo, todos os amigos e gente mais próxima a Roberto Bolaño diz desconhecer a obra e o interesse do escritor em fazê-la pública. Echevarría é um deles: “Que eu recorde, nunca a mencionou. Sem dúvida não contemplava sua publicação quando morreu”. “Não me falou nunca sobre este romance. Bolaño tinha muito material em caixas que lhe servia de rascunho para sua criação”, emenda Guillem Terribas, dono da livraria 22 de Gerona que conheceu o autor nos anos 1980.

Mas o escritor deixou cartas com algumas pistas. “O espírito da ciência de ficção ainda não sabe caminhar mas já diz papai (ou batata, nunca se sabe)”, escreve Bolaño a García Porta numa carta de dezembro de 1984 – informação que contradiz a divulgada pela editora de que a obra tenha sido concluída neste ano. “Espero terminar antes do fim do ano com O espírito da ficção científica, mesmo que os tendões do meu pulso se rompam, ou qualquer coisa do tipo”, volta a falar sobre numa outra carta a García Porta, um ano depois, em novembro de 1985.

Um mês mais tarde escreve ao mesmo amigo: “Enviei-lhe em anexo uns rascunhos de O espírito da ficção científica, como prova testemunhal de minha absoluta impossibilidade de vida social. Este romance de merda tem me agarrado em toda parte. Quero e devo terminá-la logo (em finais de janeiro, o mais tardar), e na tarefa me converti em Hulk, o homem verde, algo desastroso, lhe juro”. Terá concluído? A última notícia recebida por García Porta foi em 1986: “Devo voltar a meu abominável romance”, escreveu.

Uma grande exposição em 2015 em Madri abriu grande parte do arquivo do escritor e se soube que a obra completa e inédita soma quatro romances cujos títulos dissemos acima, vinte e seis contos, poesia e textos autobiográficos. Um dos romances e parte desses contos estão muito próximos dos leitores. O restante certamente virá noutros lances seguintes – quando o dragão mercado de novo estiver faminto. 



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