É isto um Prêmio Nobel de Literatura?
Por Pedro
Fernandes
Quando saiu
o Prêmio Nobel de Literatura 2016 escrevi, ironicamente, no Twitter: “Quer
dizer então que o clube de leitura da Academia Sueca não leu nada neste último
ano? Só estiveram ouvindo Bob Dylan”. A frase, antes de encerrar uma posição
contrária ou um lamento sobre o desperdício de um prêmio, possui duas questões:
uma, a convenção cristalizada desde a invenção da escrita de que a literatura é
um artefato construído pela escrita e, logo, exercício para leitores;
outra, a não tão firme linha que, também com a invenção da escrita,
separou poesia da música embora da música nunca tenham separado a poesia.
Entre gostar
ou não gostar de para quem o prêmio foi dado e compreender as questões que ele
reinaugura para leitores e, sobretudo, o pequeno grupo estudantes da literatura
– essa selva de egos – há uma distância muito grande. Recordo uma consulta
realizada pelo jornal português Sábado ao
escritor António Lobo Antunes sobre seu ponto de vista acerca do galardão a Bob
Dylan: “É evidente que há grandes escritores que nunca ganharam nada. O
Tolstói, tantos. Todos os prémios são aleatórios, todos os prémios são
discutíveis. Dêem a quem derem, as pessoas discutem. Eu não daria, mas isso é
uma opinião pessoal, não quero polémicas nem chatices nem nada. Deram àquele,
pronto, não tenho que discutir. Quem sou eu para dar opiniões?” Sim: na era em
que todos têm uma opinião formada sobre tudo, a posição do escritor português
bem se coloca na contramaré porque não vê a necessidade de se polemizar sobre
uma decisão realizada por um grupo. É lúcida. E também um tapa à importuna consulta que a mídia sempre faz aos sempre-possíveis de receber a honraria.
“Pensar é
difícil, é por isso que a maioria das pessoas preferem julgar”. Recordo Jung
nessa ocasião em que nos ofendemos muito fácil pelas escolhas do outro como se
o mundo todo girasse ao nosso entorno e ocupássemos a posição inquestionável de
centro de todas as coisas. Toda vez que as coisas são apresentadas de maneira
simplista e reduzida eu reconstruo uma convicção pessoal (mas é isso, uma convicção)
de que já a condição de pensar encontra-se em fase quase total de soterramento.
Estamos muito próximos da imbecilidade – se já não estamos totalmente com pés
atolados nesse lamaçal. Há um princípio de polêmica em tudo e em toda parte estão acesas as centelhas interessadas em fazer com que o fogo cresça e ponha tudo por terra.
Embora o
Nobel não deixe de ser a marca de um gosto particular, é uma escolha realizada
não por uma máquina mas por um grupo de pessoas, só por isso deve ser uma decisão a se respeitar. Mesmo que sejam escolhas que reflitam, em parte, o alienamento
social, que seja uma operação técnica, com interesses de toda sorte, mesmo o
midiático que sempre acusam a Academia. Como bem disse António Lobo Antunes
quem somos para questionar uma decisão alheia? Os gostos prevalecem quando
podem prevalecer; no caso de uma escolha dessas, por exemplo, há toda uma
tradição histórica (um poder construído e outorgado à instituição) que respalda
a decisão de um grupo sobre as decisões individuais e mesmo coletivas de outras
instituições de igual prestígio.
Mas, todo
prêmio é simbólico; ainda mais quando se é o Prêmio Nobel. O de 2016 amplia o
debate em parte reiniciado e em parte iniciado em 2013 quando o prêmio foi para
a contista Alice Munro: o reiniciado é o sobre a invalidação das estreitas
fronteiras conseguidas pela imposição teórica para a conceituação racional
sobre as formas literárias. O iniciado é sobre o valor literário de
determinadas formas literárias. Com Alice Munro, Svletana Aleksiévitch e agora
Bob Dylan acusam o Nobel de fazer pacto com a simplificação e ‘midiotização’ da
arte literária; de respaldar a invalidação do gosto pela leitura. É muito
possível que, sim, o prêmio tenha se modernizado ao ponto de se liquefazer dos
seus valores numa sociedade cujas todas certezas são só absolutismos vazios. Pensar
assim, entretanto, é uma atitude simplista porque foge das implicações do
pensar sobre a natureza do tema.
O debate
sobre valor literário e forma literária, por exemplo, não podemos esquecer nunca
disso, não é novo na ordem das discussões teóricas. Remonta a Aristóteles, um dos
primeiros a compreender sobre a tradição de seu tempo. O debate também não se
encerra com a decisão do comitê de um prêmio literário e nem essa decisão rompe
com toda essa tradição teórica desde os gregos. Isto é, a balbúrdia, o alarido,
a revolta em torno da indicação de Bob Dylan nada mais é que isso: balbúrdia,
alarido, revolta. Não há nada de novo sob o sol. E nem a Academia modernizou-se
ao ponto de se liquefazer, como a acusam. A Academia deve se reger por uma
compreensão sobre o literário que destoa totalmente da forma simplista que nos
induziram a pensar: de que só é obra de mérito ao prêmio, por exemplo, o romance.
Todos sabem
do imperativo dessa forma desde quando se consolidou enquanto tal entre fins do
século XVII e meados do século seguinte; todos sabem ainda, para recuperar um
ponto deixado acima, do esforço em transformar a escrita como um imperativo
sobre todas as outras formas de expressão – sobretudo as formas orais, essas em
grande parte perdidas ao longo da consolidação do código escritural. O que poucos
sabem é que a literatura não se faz apenas de romances; que mesmo o romance
bebeu intensamente de expressões artísticas oriundas da oralidade; tanto até alcançar
o ponto de gerir toda uma estética do romanesco: como não lembrar do, também
Prêmio Nobel, José Saramago, único escritor a conseguir essa plena fusão entre
o escrito e o oral. O que quase ninguém sabe ainda é que grande parte das
manifestações artísticas autênticas são construídas na forja entre o erudito e
o popular.
Mais: antes
do romance (a grande forma e a mais privilegiada pelo prêmio) foi o conto a
forma primitiva de narrar; antes da separação entre literatura e jornalismo,
foi este último uma fonte para a sede de fazer a ficção dizer o real; e, que,
muito antes da escrita, a música foi élan materializado pela poesia ou esta
materializada pela música. A pergunta, portanto, é: onde reside a discrepância
com a tradição literária? Não estaria a Academia reafirmando, primeiro, a
indivisibilidade das formas, segundo, o lugar primordial das formas? Isto é,
mais parece que Nobel tem buscado redimir-se da rigidez formal que reinou
durante longo tempo entre as definições de outros ganhadores num mea culpa simbólico ao condecorar
improváveis criadores mesmo quando se sabe da extensa variedade de criações em
todas as literaturas.
Discordo
muitíssimo dos acusadores que opinam sem o mínimo conhecimento sobre, ou que se
passam por ignorantes porque é preferível permanecerem acomodados nas suas convicções
tão fajutas que desprezam a abertura ao debate; acusadores que se prendem às
determinações e conceitos sem entender que, na prática, muitas vezes, tudo é
questionável e no caso do embate sobre valor e o que é ou não é literário só
significa quando precisamos construir nosso lugar, posição e convicção. É
evidente que posicionar-se de maneira ferrenha contrária ao Prêmio para Dylan
significa uma posição sobre o tema e não se deve negar jamais o direito de
fazê-lo; mas não é possível aceitar a negativa simplesmente porque pessoalmente
eu gostaria que outro e não ele tivesse ganhado o Prêmio.
A mim, particularmente,
sempre me interessou, antes do lugar encerrado das determinações teóricas, mais
o trabalho do criador com a linguagem, o diálogo que mantém com sua tradição, a
construção de uma obra e sua habilidade de introduzir novas forças às essas
mesmas fronteiras determinadas pela teoria. No caso de Dylan, não tenho mérito
de espécie alguma para analisar a justificativa da Academia – porque não
conheço o conjunto da obra tampouco a canção norte-americana. Mas vejo, e tanto
que assim procedo, a decisão como motivadora de um debate muito saudável para
essas discussões deterministas e esses lugares sectarizados pela compreensão da
teoria como se um discurso impositivo.
Por fim, uma
informação que talvez possa acalmar os ânimos em polvorosa. Bob Dylan não é o
primeiro poeta-compositor que ganha o Prêmio Nobel de Literatura. Em 1913, o
prêmio foi atribuído ao romancista, poeta e compositor indiano Rabindranath
Tagore porque seu trabalho – e no ano que ganhou havia produzido Oferenda lírica – obra que certamente
serviu à elaboração do parecer apresentado pela Academia: versos profundamente
sensíveis, frescos e belos que revolucionou a cultura musical indiana pelo
entrecruzamento entre gêneros. Uma justificativa muito próxima da utilizada em 2016? Um gesto de reaproximarmo-nos com os galardoados esquecidos como é Tagore? Não sejamos ingênuos: nada é acaso.
No mais, o
Nobel é só mais um prêmio. Se por um lado uma honraria dessas outorga algum
reconhecimento a mais para a obra dos vencedores, por outro não retira o mérito
de outros grandes criadores. Isto é, o prêmio a José Saramago não zomba de um António
Lobo Antunes, um Tolstói, um Jorge Amado, um João Cabral de Melo Neto; a Alice
Munro não zomba de um Tchekhov, um Borges; a Dylan não zomba de um Leonardo
Cohen, um Caetano Veloso. O Prêmio a Dylan sequer abre precedentes; só lhe
amplia a conta bancária. Mas, claro, espero viver, muitas décadas, para saber, quais nomes estavam na lista dos concorrentes com Dylan. Pura curiosidade, mesmo.
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