Dias de abandono, de Elena Ferrante
Por Pedro Fernandes
A certa
altura da narrativa de Dias de abandono,
a narradora volta a uma situação presente na série napolitana sobre a escrita
de um romance por recomendação de uma professora e o anseio pela composição de
um livro que, ao contrário dos sugeridos, não fosse sobre “senhoras cultas, em
boa condição social, quebrando-se feito bibelôs nas mãos de seus homens
distraídos”; que não fosse sobre “mulheres emocionalmente burras”: “queria escrever
histórias de mulheres com muitos recursos, mulheres com palavras
indestrutíveis, não um manual da esposa abandonada com o amor perdido como o
próprio pensamento da lista”. Se o desejo se cumpre? Em parte sim; noutra parte
não.
Em parte sim
porque Dias de abandono é a história
de uma mulher abandonada; em parte não porque não é um manual, é a narrativa de mulher com palavras indestrutíveis. As elucubrações de uma mulher que, de uma
hora para outra, recebe a notícia da separação e que não sabe ao certo como
fará para conviver com essa perda, como viverá sozinha, ainda que, durante os
quinze anos de casada sempre foi quem esteve à frente, como grande parte das
mulheres, das principais necessidades de casa: seja manter tudo em ordem, cuidar dos dois
filhos e encontrar entre uma fresta e outra de tempo a disponibilidade para
ensaiar seus passos pela escrita literária.
A separação
– apesar de abrir um tema possível de ser trabalhado por esta aspirante escritora
que deixou grande parte dos interesses de jovem para se dedicar à vida de dona
de casa – é como uma extensa cratera no estabelecido, uma ruptura na rotina, e
logo o nascimento de uma obsessão. Saber quais motivos foram favoráveis ao fim
do casamento, com quem Mario teria se envolvido para tomar uma decisão tão
repentina e até buscar uma saída capaz de reaver as vias de sempre são alguns
dos elementos que dão forma ao desenvolvimento da trama desse romance.
Sua composição
– numa combinação entre relato e fluxo de consciência – é quase sempre um ir e
vir contínuo e sufocante de emoções. Olga, a mulher centro da avalanche de acontecimentos
em Dias de abandono, ora se mostra
uma figura inteira, ou que pelo menos busca manter a pose de sujeito racional, capaz
de não se deixar abalar pelo acontecido, sobretudo quando tem para si a fixa
ideia de que poderá reconquistar seu companheiro; ora fora de controle, incapaz
de não cumprir a tarefa mais simples, porque há todo o sopro da obsessão –
misto sórdido de ódio, vingança, automutilação – que lhe toma ponta-ponta e lhe
cega, lhe corrói o raciocínio e, por último, lhe impede a capacidade da ação.
Esse ritmo,
entre o racional e o irracional, não se verifica somente nas ações da personagem-narradora;
são transmitidos pela própria estrutura do texto através de, no primeiro caso,
a capacidade de descrição minuciosa de tudo, outra característica que o leitor
de Ferrante já conhece desde o primeiro volume da tetralogia napolitana; no segundo caso, irrompe a rapidez da narração, o embaralhamento das situações, a
substituição das descrições pelo vocabulário raso. Não há uma só atitude que não
seja cuidadosamente inventariada por essa narradora a fim de registrar não o
sentido da mulher abandonada, mas da ideia de abandono capaz de acometer homens
e mulheres quando o tema é o fim de uma longa relação. Ou seja, este é um
relato sobre os transtornos da perda e sobre a aprendizagem de conviver com
ela.
Em toda
perda dessa natureza sempre passam quase-sempre as mesmas questões; além das
razões que justifiquem o fim de um relacionamento e das suspeitas de ser trocado
por outra pessoa, vêm as razões mais intimistas cujas respostas muitas vezes
nunca serão alcançadas, como, por que o outro e eu não ou o que há no outro que
me faz ser abandonado. Essas questões passam pela escrita do drama de Olga, mas
passa sobretudo para uma carreteira de sentimentos – este é romance deles sem
ser piegas ou sentimentalista. Elena Ferrante construiu uma narradora, embora
tomada pela bílis negra da sorte ruim, muito incisiva, ríspida, não-melancólica,
tomada pelos ventos do furacão que ela própria trata de arrastar para si: “Eu
era íntegra, e íntegra continuaria a ser. A quem fez mal, devolvo na mesma
moeda. Sou o oito de espadas, sou a vespa que pica, sou a cobra escura. Sou o
animal invulnerável que atravessa o fogo sem se queimar”.
Num mundo
que desmorona – e pasmem, por novamente uma Lolita, o que nos leva a ler Dias de abandono como se uma versão da
mulher cujo lar é destruído pela intervenção de uma – ou cujas saídas cada vez
mais vão se tornando distantes, é simbólica a obsessão da narradora com a porta
de acesso à casa. Num estudo interpretativo mais acurado, este é um elemento,
uma simbologia, incapaz de passar despercebido ao exercício de leitura do
analista.
É notório
que, enquanto Mario larga a casa, a não preocupação de Olga com a porta de acesso
ao apartamento se confunde com a fase quando ainda acredita na possibilidade de
que o fim anunciado seja uma brincadeira. Em parte, essa é uma falsa certeza
que todos construímos por acreditar em nunca mais sermos capazes de nos envolver
com outra pessoa depois de tanto tempo fixos com uma; quando, na verdade não só
estamos suscetíveis a novos encontros, como essa ideia do amor eterno é mais uma
das falácias embutidas culturalmente em nossas vidas.
Depois das
idas e vindas de Mario ao apartamento – seja para buscar parte das suas coisas,
seja para visitar os filhos – desenvolve-se toda uma sorte de situações que
culminarão com uma total clausura de Olga num mundo cada vez mais marcado pelo
peso de sua obsessão e pela certeza do fim. É quando substitui a fechadura de casa,
depois de descobrir que a porta, na verdade, nunca ficava trancada e do sumiço
do par de brincos presenteado por Mario numa ocasião em que o companheiro buscou
assinalar a total integração de Olga à tessitura de sua origem: os brincos eram
da mãe dele. A nova fechadura imporá uma quantidade variada de desafios à
narradora, numa clara metáfora sobre os desafios que se mostram maiores mesmo
que ainda sejam os mesmos de sempre porque tomada de consciência sobre o lugar
de figura à parte porque abandonada.
Todo o drama
só se acentua. As fechaduras emperram. E Olga entrega-se num volteio
psicológico que mais lhe arrasta para os fantasmas do passado que para as
soluções que precisa tomar a fim de resolver toda a sorte de problemas que se acumulam
com esse simples acontecimento. O leitor assiste sufocado todas as intervenções
negativas do acaso e a impossibilidade, como se estivesse num pesadelo ou numa
sessão em que o tempo do ponteiro do relógio urge pela tragédia e a não saída da
personagem das provações que lhe acomete; é Teseu preso num labirinto sem que
haja um só deus – mesmo humano – capaz de lhe socorrer.
Apesar das críticas negativas, que sempre apontavam este texto como um exercício menor da criação literária de Ferrante, é preciso dizer: não, este não é um romance menor que a tetralogia. É o contrário: bem construído, justo na medida certa, entre os melhores de Ferrante e integra desde já uma lista de obras indispensáveis às traduzidas no Brasil de 2016. O leitor desconhecerá alguma narrativa que trata com tanta propriedade, pelo ângulo do feminino, sobre a desilusão amorosa, tema que nada tem de novo mas que é trabalhado pela italiana com a maestria que já conhecemos.
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