A convergência dos ventos, de Nuno Júdice
Por Maria Vaz
Há dias em que os ventos convergem e, entre chuvas de dúvidas, lá nos
levam a perder em palavras soltas, que nos respondem ou ampliam indagações.
Sim: há palavras aglomeradas em estrofes em que – ainda que não nos revejamos
totalmente em termos existenciais – trazem os ventos que nos levam a convergir
para aquilo que vamos sendo. Sem esquecer essa mutabilidade do verbo ‘ser’: uma
mutabilidade, tantas vezes, com bases fixas. Ontologias ou intelectualidades à
parte, aquilo que extraímos do nosso interior não passa de uma narrativa
subjectiva – com todas as críticas que a redução ao real-objectivo formalizam
–, uma obra permite-nos sempre vislumbrar um pouco do seu autor de acordo com a
nossa mundividência. Não obstante, procurarei enunciar as notas objectivas
daquilo que ressalta na obra A convergência dos ventos.
Assim, podemos dizer que os ventos convergiram para questões e temas
que perpassam a existência de todos os seres emocionalmente intensos. É assim
que somos encaminhados a vislumbrar a obra. Logo no primeiro poema, embrenhado
nos ventos de outono – de nome “Memória familiar” –, pode antever-se as temáticas
dominantes: o sexo, envolto em desejo e memória. Veja-se o seguinte excerto.
Os ventos, no litoral que os seus olhos procuram,
guiam-lhes o desejo. E os lençóis erguem-se sobre eles,
como velas, afogando na sua brancura as mulheres
que em vão os abraçam.
A precisão do pensamento com que Nuno Júdice nos guia, encaminha os
leitores mais atentos para o seu fascínio pela sensualidade e pelas formas
femininas, criando na temática uma certa mística de encantamento. Um
encantamento que varia entre o entusiasmo e a razão, conforme os ventos das
estações. Podemos, deste modo, destacar a nota gradativa dos ventos, conforme o
frio ou o calor das estações figurativas da existência. Assim, encontramos nos
ventos de inverno notas de aprisionamento da mente aos desejos que não se
realizaram: “e ninguém me liberta da sua memória, / enquanto a roda do tempo
apodrece no seu eixo de sangue”.
Contudo, deixamo-nos embeber em viagens do tempo: aquelas em que o
autor nos traz os seus ventos de passado, em que aflora a saudade e a
incompreensão da memória, bem como com toda a fenomenologia da lembrança. Algo
que se torna uma espécie de diálogo com o Destino (ainda que em nada o autor
admita a sua crença). Um qualquer ‘quid’ que nos leva a um raciocínio estranho:
como se tivéssemos que guardar aquilo que sabíamos que perderíamos; como se a
memória funcionasse, pelo instinto, como forma de salvaguardar o amor de que
não queríamos abdicar e de que, no fundo, talvez nunca tivéssemos percebido a
razão ou a ‘sem razão’ de existir (ou ter existido). Veja-se o seguinte
excerto.
(…) Assim, ao ver-te sair
De uma caixa de papéis antigos, é
Como se já soubesse que te iria
Perder, ou como se tivesses querido
Que um dia, ao olhar para o que ficou
Da tarde em que nos amámos, tivesse
De perguntar quem és, como te chamas,
E que destino me impuseste quando
Me obrigas a lembrar porque guardei,
No meio de papéis inúteis, a fotografia
Em que apareces desfocada.
O apelo aos sentidos – na chamada do sensacionismo e da imaginação com
que cruza o desejo com a memória, com as estações ou com analogias figurativas,
ora das formas femininas ora do acto sexual –, é uma constante desta obra de
Nuno Júdice. Com a chegada dos ventos de primavera, o desejo toma as vestes do
optimismo e gera estrofes como as seguintes.
Todos os dias te encontro; e todos
Os dias a manhã se concentra no centro de ti, quando
Te aproximas, e um movimento de cor te envolve,
e faz do teu corpo o centro da única paisagem que
percorro, sob o sabor lento de uma realidade em que
os sonhos se esbatem, como se os tornasses inúteis.
(…)
No lume brando a vigília em que o teu contorno
Se esculpe, e os meus dedos o percorrem, circunvalando
Ângulos e colinas, invadindo segredos e fontes,
Demorando a viagem no porto dos teus cabelos,
Até chegar ao cais dos teus braços, e sentir
A ondulação exausta, a nua espessura do fim.
Partindo do sensacionismo das formas, o autor acaba por nos remeter
para uma série de questões filosóficas, ainda que tente criticar a filosofia. É
nessa linha de pensamento que acaba por questionar a existência de Deus: uma
metafísica que não entende. Não é que negue a sua existência, mas como expressa
no seu poema “Catecismo Negativo”, a dúvida leva-o a escrever o seu nome com ‘d’
minúsculo. Nessa linha de pensamento formalista no apelo da objectividade do
real – que o faz duvidar da existência de Deus –, acaba por fazer com que, no
nosso entendimento, reduza a ideia de amor à intensidade do desejo sexual: uma
intensidade tal que nos remete ao ato sexual como uma forma de atingir a
plenitude divina. Vejam-se o seguintes versos.
(…) E subi o dorso da baleia, até onde
Acreditei que poderia tocar o céu, enterrando-me
Na sua carne movediça até me confundir com
O corpo de deus.
Ou ainda:
(…) É assim que desistimos
De pensar o que não tem outra finalidade que não seja
A beleza, ou a simples existência do que, num instante
Do ser, nos concede a plenitude divina.
Como podemos vislumbrar, o autor acaba por reduzir a beleza ao corpo,
àquilo que pode visualizar, esquecendo a personalidade. O apelo da forma sobre
qualquer essencialismo é evidente ao longo de toda a obra. Isso faz com que
confunda amor com o mero desejo: como se uma coisa não pudesse existir sem a
outra; como se não pudesse existir amor sem ser pelo apelo exclusivo das formas;
como se o amor não pudesse ser outra coisa que não desejo compulsivo. Nesse
sentido, aborda a temática sob uma espécie de crítica subtil a Epicuro, no
poema “Teoria da Nuvem (versão filosófica)”.
Os desejos, cuja não satisfação não
é uma causa de dor, são inúteis, dizia
epicuro. (…)
Mas a existência e aglomeração
das nuvens podem porvir, quer de uma condensação
do ar e da convergência dos ventos, quer dos átomos
que se enlaçam uns nos outros. Assim, concluía, Epicuro,
o mesmo se aplica ao amor que nasce ou
de uma junção de corpos que são atraídos
por esse desejo tão violento como o ar, ou
da fusão dos seres que convergem para o êxtase
em que, um e outro, perdem a sua própria unidade. E
ao pensar em tudo isto, com a taça vazia
nas mãos, Epicuro ergueu-se da prostração filosófica
para reacender, com o corpo mais próximo do seu,
o amor que já se apagava nas cinzas
de um desejo inútil.
As críticas ao pensamento filosófico não ficaram pela questão do amor
reduzido ao desejo: como se fosse algo utilizável no reduto da satisfação
egoísta; como se não existisse no amor tranquilo um reduto metafísico de
pacificidade e altruísmo, além da compulsão dos corpos para a obtenção de
prazer sexual. Nuno Júdice critica a abstracção filosófica – que vislumbra como
incapaz de solucionar os seus problemas pragmáticos – no poema “A Premissa do
Sonho”. Visualiza o sonho como mera ilusão e não como uma hipótese nascente de
alteração de uma realidade cinzenta.
No entanto, muito embora critique toda a metafísica ou que vá além do
mundo das formas, indaga profundamente o que seja ‘real’ no poema “Uma Nova
Questão Prática”. Por paradoxo, é precisamente nesse poema em que deixa entrar
uma brecha metafísica, além da forma, em que deflui a profundidade: não só da
mente, como das emoções, susceptíveis de activação analógica pelas palavras que
leia. Palavras que repousam nas águas escondidas de uma personalidade aparentemente
mais pragmática do que aquilo que, interiormente, nos parece.
(…) Ora digo eu a quem me lê, o lugar
Do poema não é na mão mas no coração:
E se este bate mais depressa, isso não se
Deve ao ritmo do poema, mas ao facto
De ter corrido entre uma rua e outra,
Para evitar a chuva. Assim, o que é real
É a chuva que cai no poema e não lá fora,
E é isto que me obriga a perguntar o que é
O real: o que está no mundo ou, apenas,
O que nasceu destas palavras?
Além das temáticas já abordadas, os ventos convergiram para terrenos
longínquos do desejo. A existência de imprevisibilidades atmosféricas originou
ironias anti-ciclónicas. Nuno Júdice não renunciou da ironia e da crítica
política, sobretudo visível no poema “Austeridade”.
(…) Mas ela soprou-me o fumo para a cara
para que a deixasse em paz e me fosse embora, antes
que a troika chegasse e a obrigasse a pagar o excesso
de musas para baixar o meu défice de memória.
Podemos, ainda, encontrar traços de crenças filosóficas – dessa
filosofia que se empenhou em negar –, sobretudo no poema “Criação”: parece-nos
que vinca a ideia de que o homem é um ser inacabado, em permanente construção,
que vagueia sem saber muito bem onde o levará a sua vontade, os vazios ou
indecisões.
De igual modo, não podemos deixar de mencionar a alusão crítica, no seu
poema “Analogia Aquática”, à poesia fácil, aos espíritos de manada de criação
poética ou, talvez, à banalização das palavras e do seu sentido.
Filosoficamente questionamos: não será a averiguação do sentido uma
busca metafísica? Não será essa busca algo pessoal, variando a resposta de
acordo com a mundividência que a condiciona? Não será a objectividade e a
aceitação pragmática da realidade uma fuga mais fácil do que o sonho que
encaminha o presente para ventos primaveris? Terão as palavras que ser
recolhidas racionalmente em estrofes eruditas, com complicações analógicas e
apenas acessíveis a mentes profundas? Talvez a liberdade de elaboração poética
do profundo deva conviver com a liberdade de expressão poética do supérfluo,
bem como o poeta da erudição enciclopédica possa conviver com a liberdade
pseudo-analfabética do mais banal amante de articulação de palavras em
estrofes.
Termino maravilhada com os ventos que convergiram para a criação desta
obra de Nuno Júdice, que lhe valeu a atribuição, por unanimidade, do Prémio
António Gedeão 2016. Acho merecidíssimo.
Comentários
Gostei.
Beijos.