Virginia Woolf - entre cartas e diários, a impressão de nunca estar pronta
Por Carmen G. de la Cueva
Virginia Woolf, 1939. Foto: Gisèle Freund |
Entre outras
coisas, por esses dias estive lendo uma biografia de Virginia Woolf publicada
no Reino Unido em 2011. A autora, Alexandra Harris, professora da Universidade
de Liverpool, tinha então trinta anos. Este dado passaria totalmente despercebido
para qualquer leitor, mas para mim, uma jovem aspirante a escritora que não cumpriu
ainda os trinta anos, qualquer sucesso de alguém dessa idade, me consola. E,
tristemente, penso: “Oh, apenas trinta anos! E ainda tenho vinte e nove, tenho
tempo de escrever uma biografia literária de Anne Carson ou, quem sabe de Joan
Didion – ainda vivas e jovens de coração – ou talvez uma grande tese sobre a
poesia feminina ou os mais belos poemas sobre a passagem do tempo”. Enquanto
minha cabeça sonha uma voz como que de desesperada diz: “não conseguirei, só me
restam três meses para publicar antes de completar os trinta”. Os trinta são,
irremediavelmente, a fronteira do fracasso. Isso devia pensar também Virginia
Woolf quando no verão de seus vinte e cinco anos (limite que, de longe, já
atravessei) escrevia a Violet Dickinson, sua melhor amiga: “serei miserável ou
feliz; uma criatura sentimentalmente loquaz ou escritora inglesa capaz de
queimar as páginas”.
Virginia
Woolf escrevia, e escrevia, seguia queimando as páginas (mas, então, só na
lareira de seu próprio quarto) e não se dava por vencida. Quatro anos depois,
aos vinte e nove, contava por carta a sua irmã Vanessa um breve e triste resumo
do que era sua vida até aquele momento: “ter vinte e nove anos e não estar casada;
ser um fracasso – sem filhos –, estar louca também e não ser escritora”.
Tinha de
passar mais outros quatro anos até que Virginia publicasse seu primeiro romance
A viagem (1915). Imagino seu
sofrimento, quantas noites sem dormir e papéis jogados na fogueira. Ela não se cansou
e no fim daquelas duas cartas confiava que no futuro, graças à sua perseverança
e seu duro trabalho, seria uma grande escritora. Então ela estava ardendo por
dentro e cheia de erotismo, inclusive advertindo seu próprio fracasso; sentia
que “cada palavra resplandecia como uma ferradura numa bigorna, com paixão”.
Irene Chikiar
Bauer, uma das últimas escritoras que se atreveu escrever uma biografia sobre
Virginia Woolf, se pergunta na introdução de Virginia Woolf. A vida por escrito* que é o que nos leva ao desejo conhecê-la
e inclusive acreditar que conseguimos isso. Aos vinte e poucos anos Virginia
pensava que nunca chegaria a publicar, que as folhas de papel que com tanto
empenho escrevia e que, às vezes, a conduziam à loucura, nunca chegariam a ser
lidas por ninguém. Superou muitos obstáculos para conseguir e foi leal a si
mesma. Chikiar Bauer explica bem: “tinha o convencimento de que a literatura
era essencial já que via nela a possibilidade de arrancar-lhe seus segredos
para a vida”.
Foi a partir
de 1915, quando Virginia se sentiu uma escritora de verdade e consciente disso,
começou a escrever com frequência um diário. Surpreende que fosse então sendo
já uma autora publicada, e não antes, todavia uma ávida e virtuosa jovem que
não via cumprindo seus anseios, quando se decidira colocar por escrito os
próximos vinte e sete anos de sua vida. Não escrevia todos os dias. Virginia
era uma mulher no tempo dos absolutos: algumas vezes, com gozo, contava para si
mesma dias e dias inteiros sem evitar detalhe; e outras, deixava de escrever
durante semanas onde as páginas de seu diário se faziam um pântano tenebroso.
Curioso
é percorrer as anotações que Virginia fez sem saber que muitos de nós
seguiríamos passando por elas durante décadas. Podemos ler seus pensamentos,
interpretar seus estados de ânimo e deixar-nos levar pelas recomendações de
leituras que com muita veemência descrevia e as que mais raiva lhe produziam como
uma de Katherine Mansfield publicada em 1918: “muito temo que não terá mais
remédio que aceitar que a inteligência de Katherine Mansfield é como uma
delgada superfície de uma manta, com uma profundidade de uma ou duas polegadas,
alargada sobre uma estéril pedra [...] a concepção é pobre, barata, de maneira
alguma é a visão, por imperfeita que seja, de uma mente interessante. E além
disso escreve mal”.
Mansfield era sua contemporânea, seis anos mais nova
apenas; publicou seu primeiro livro Numa
pensão alemã, em 1911. Assim, pois, parece ser que Katherine publicou seu
primeiro livro aos vinte e três anos. Não é uma razão para que Virginia se
sentisse ciumenta e ameaçada por uma jovem neozelandesa que publicou muito
antes dela e sendo ainda mais jovem? Aí vemos um dos maiores medos dos aspirantes
a escritores: que alguém mais jovem que você publique antes. Talvez isso
justifique a dureza com que Virginia julgou seu segundo livro ou, talvez, o
romance – que não li – seja realmente mal.
Virginia Woolf e Leonard, 1939. Foto: Gisèle Freund. |
Se estamos
atentos às datas veremos que a anotação do diário é de 1918 e Bliss não foi publicado até 1920.
Virginia leu uma versão do romance de Katherine que ela mesma havia lhe
enviado. Por acaso se conheciam pessoalmente? Em 1917, quando Virginia e
Leonard montaram na sala de jantar de sua casa uma imprensa Farringdon Road,
que seria a alma da Hogarth Press (com a qual chegariam a imprimir os primeiros
exemplares de Terra desolada, de T.
S. Eliot), era preciso buscar autores para publicar.
Cheia de coragem,
Virginia decide contatar Katherine Mansfield, já então uma autora conhecida,
para lhe pedir um conto. Sabemos que o encontro entre ambas foi singular.
Virginia não gostou de um todo da liberdade sexual de Katherine nem do relato
que esta fazia de suas aventuras. Muito zangada escreveu a Vanessa dizendo que
a famosa escritora tinha uma personalidade desagradável e sem escrúpulos. Do
lado contrário, Katherine pensou que Virginia era uma mulher delicada. E Leonard,
que foi espectador de tudo isso, acreditava que Katherine era “alegre, cínica,
amoral, obscena, espirituosa”.
Noutra
entrada de seu diário, Virginia volta a falar sobre esse primeiro encontro com
Katherine e nos faz suspeitar que a escritora era qualquer coisa menos delicada:
“Ambos poderíamos desejar que nossas primeiras impressões de K. M. não fossem repulsivas como as de uma civeta [mamífero
originário da África que segrega outros da espécie], que foi obrigada a andar.
Na verdade, estou um pouco chocada por sua vulgaridade à primeira vista; linhas
tão duras e vulgares. Sem dúvida, quando isto se apaga, ela é tão inteligente e
incompreendida que recompensa a amizade”.
Mas
Katherine não ficava aquém; costumava chamar o casal Woolf como “os lobos apetitosos”. Na
biografia de Chikiar Bauer são registrados muitos detalhes de como era a
relação entre as duas escritoras, “marcada por desencontros, ambivalência,
rivalidade, hostilidade e competência”. Mas as elas sabiam que era raro “encontrar
alguém com a mesma paixão pela escrita e que deseja ser escrupulosamente sincero”
com o outro.
Na época em
que se conheceram, Virginia Woolf acabava de sair de uma das maiores crises de
sua enfermidade e Katherine Mansfield começava a manifestar os sintomas da
tuberculose. Cinco anos depois daquele primeiro encontro, em 9 de janeiro de
1926, Mansfield morreu; tinha trinta e quatro anos. E no dia 16 do mesmo mês
Woolf escrevia no seu diário: “É estranho seguir o progresso dos sentimentos de
uma... uma sacudida de alívio, uma rival a menos?”
edição de Prelude, de Katherine Mansfield, publicada pela editora coordenada por Virginia Woolf. |
Todos já
vivemos alguma vez essa sensação contraditória entre a inveja e admiração por
algum conhecido – talvez alguém que tem dois, quatro anos a menos que o outro,
tem publicado e goza de certo reconhecimento que almejamos – como o que se passou
entre Virginia e Katherine. Quando uma conhece a outra, estava disposta a oferecer-lhe
as críticas mais venenosas e a cumplicidade mais profunda de alguém que a
entende. A partir de então já não pode viver sem ela. Depois da sua morte,
Virginia confessava em seu diário que estava escrevendo no vazio. Katherine já
não a leria mais: “Tenho a sensação de que pensarei nela por intervalos durante
toda minha vida. Tínhamos algo em comum que nunca encontrarei em ninguém mais”.
Sua
literatura, a descobri quando tinha dezesseis anos, quando um colega de sala me
emprestou um exemplar de Mrs. Dalloway.
Treze anos depois, nada sei daquele garoto que só falava comigo na sala e nunca
ficava conosco no recreio, mas seu exemplar de Woolf segue firme em minha
estante acusando a passagem do tempo. Pouco entendi da senhora Dalloway; nem do
seu empenho por comprar as malditas flores. Naquele tempo não sabia o que
Virginia Woolf podia me oferecer. Mas alguns anos depois, já na faculdade, me
interessei por seus diários, por sua correspondência, por todas as situações que
havia por trás da grande escritora. Também tive vinte e cinco anos e um
espírito cheio de sonhos de grandeza como Virginia. É com essa Virginia que
mais me identifico, a mais humana, a mais cheia de defeitos, a apaixonada mulher
que odiou e amou até os extremos.
Em Sobre la escritura, uma edição que foi
publicada com fragmentos da correspondência de Virginia Woolf (no universo de
língua espanhola), Federico Sabatini conta que suas cartas “têm o mérito
inestimável de mostrar como a autora se apresentava aos demais, o modo como
queria ser percebida, entendida e lembrada”. Nos primeiros anos de faculdade,
quando começava a estabelecer meu próprio cânone literário, as cartas de
Virginia tinham um lugar privilegiado. Quanta espontaneidade! Quanta ironia se
desprendia daí! Inclusive durante alguns meses tive a intenção de reproduzir o
estilo de suas missivas em meus e-mails, mas meus destinatários não chegavam a compreender
minhas motivações.
Eu, igual a Woolf, queria ser uma epistológrafa
profissional. Ela escrevia cartas e diários porque era praticamente um dever social
fazer isso. Como sempre, se movimentava entre dois extremos: “como odeio e
detesto escrever cartas” ou “como que posso gostar mais na vida além de escrever
cartas? Cartas a diário, cartas longas, cartas escritas no alto da torre
rodeada de cisnes” ou “a morte será muito enfadonha: na tumba não existem as cartas”.
Que podia gostar mais que lê-las? Nelas há drama, poesia, conselhos sobre a escrita,
comentários, metáforas, humor... um pouco de cada coisa das caras de sua
poliédrica existência.
No dia 4 de
outubro de 1929, por exemplo, Gerald Brenan lhe escreve sobre a escrita, “a
arte a qual consagramos nossas vidas”: “Porque Deus, Deus meu, que de coisas
lhe faltam uma, que torpes e inexperientes somos, todavia não aprendemos o jogo
da vida, não conseguimos descascar essa laranja de verdade. Já te disse que não
estou de humor para escrever [...] Imagina o apaixonante que seria poder comunicarmos
de verdade. Nesse momento escrevi uma página inteira e não disse nada. O máximo
que se pode esperar é chegar a sugerir algo. Suponha que quando esta carta chegar
estás de humor e que a lês justo com a luz adequada, junto a uma lareira no
quarto grande. Então, como por acidente, pode ser que chegues a compreender
algo do que eu, que estou sentada junto a minha chaminé em Monks House, sou,
sinto ou penso. Tudo parece bastante incerto e infinitamente enganoso: há tantas
afirmações vazias, tantas armadilhas de linguagem. E sem dúvida é a arte a que consagramos
nossas vidas”.
Quando escreveu
essa carta a Brenan, Virginia tinha quarenta e sete anos, quatro livros publicados,
estava escrevendo Ao farol e se
sentia uma torpe e inexperiente escritora. Como não ia sentir-se cômoda
lendo-a, conhecendo suas revelações ante a página em branco? Ela sabia que
devia atravessar uma “angústia sem alento” antes de dar por finalizado um
texto. Essa angústia sem alento de que falava Virginia era a que lhe fazia
temer o fracasso mais absoluto cercando-lhe como se fosse uma presa. “Ah! Mas
estou condenada ao fracasso. De fato, creio que todos estamos. Agora não é
possível e nunca será que eu renuncie. Mas tampouco seria bom para literatura
que fosse possível. Esta geração tem que quebrar o pescoço para que a próxima
tenha tudo mais fácil. Porque estou de acordo contigo [Brenan] que nós não vamos conseguir
nada. Fragmentos, parágrafos, talvez algumas páginas; mas não nada mais. Joyce me
parece atormentado de fracassos. Nem sequer posso, como tu, ver seus triunfos. Um
enfoque valente, para mim isso é a única coisa óbvia, e logo o fracasso
habitual que faz todos em pedaços”.
Como Virginia
aos seus vinte, trinta e, imagino, até o dia de sua morte, sentindo-se muito
miserável, até o momento em que toca uma primavera oculta e, ainda que seja
durante alguns segundos, toda essa angústia sem alento dá-lhe sentido. Que importa
quando nossos poemas ou romances venham à lume quando somos mais velhos do que
eram Sylvia Plath ou John Keats – ambos poetas precoces – quando publicaram
seus primeiros livros? Agora que a tuberculose já não é um perigo, sonhemos com
o futuro. Jovens ou não, conversemos nos bares nas tardes de outono que se
mostram adiante, componhamos apaixonados e-mails emulando as cartas de
Virginia, leiamos e escrevamos sem angústia e sem alento. “O tempo existe, diz
David Meza, “e se existe, nada quero saber dele”.
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* As citações
foram traduzidas livremente a partir da versão em espanhol do texto original, "La veinteañera que fue Virginia Woolf".
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