Romantismo e adultério em O primo Basílio
Por Rafael Kafka
Luísa – a personagem central de O primo
Basílio, grande romance realista português – é um ser que tenta transformar a
realidade vivida por ela naquilo que lê nos livros cheios de peripécias
românticas os quais chegam as suas mãos. Esse é o principal motivo a justificar
o amor pelo primo que ressurge em sua vida depois de tantos anos do rompimento
do relacionamento havido entre eles, o qual chegou ao fim por conta da viagem
do jovem Basílio para o Brasil. A arte na vida de Luísa serve como complemento
de uma realidade repleta de convenções e a partida do marido para uma viagem a
negócios – Jorge, o marido, é engenheiro de minas – é o convite perfeito à
aventura a coincidir com o retorno do ex-amante e primo.
Em partes avançadas da história,
quando se embrenha em amores com Basílio, serão constantes as referências aos
livros lidos e ao clima de romantismo que neles impera. Luísa é a
personificação do ideal romântico burguês, sendo a antítese do ser
convencionalizado o qual anseia por algo profundo e poético.
"E ia
desejando habitar ali numa quinta, longe da estrada: teria uma casinha fresca
com trepadeiras em roda das janelas, parreiras sobre os pilares de pedra, pés
de roseiras, ruazinhas amáveis sob as árvores entrelaçadas, um tanque debaixo
de uma tília onde de manhã as crias ensaboariam, bateriam roupa, palrando".*
A descrição do ambiente alude
aos cenários de idílios amorosos típicos do Arcadismo e do Romantismo. Eça de
Queirós evidencia, em um bom uso da metalinguagem, como nos prendemos às
convenções artísticas lidas por nós em nossas leituras. A vida passa a imitar,
pois esta é mais bela e plena, mais cheia de sentido e profundidade,
subvertendo a velha máxima aristotélica que pregava ser a arte quem imita a
vida.
Na citação acima, Eça foca
no comportamento idealizador romântico que se mostra na conduta existencial de
Luísa. Mais à frente, ele também revela como o ambiente parece sofrer com as
projeções dos estados de alma das personagens.
"Que linda
manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há
prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranquilidade outonal. [...]
Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são,
contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam
ter-se dissipado naquele repouso".
Outro exemplo disso, Mas em
sentido inverso, ocorre quando Luísa está prestes a se encontrar com Basílio,
mas acaba se deparando com Acácio, conselheiro amado por D. Felicidade, grande
amiga da protagonista que decide acompanhá-la em seu percurso sem saber por
motivos óbvios que está a interromper algo muito importante: um amor
clandestino. O tempo carregado e modorrento é similar ao humor da moça,
contrariada em seu propósito. Mas, assim como no exemplo supracitado, Eça não
estabelece uma relação de causalidade egocêntrica entre estado de espírito e
condições climáticas. Há aqui tão somente a coincidência.
A desconstrução dessa convenção
romântica se dará de forma mais concreta com o sentimento de decepção que Luísa
manifestará ao se deparar com o quarto encontrado por Basílio para os encontros
secretos de ambos – os quais até então se davam diante dos olhos de todo mundo
na casa de Luísa. Tal quarto é ironicamente chamado de “Paraíso”, mas possui
uma aparência das mais decrépitas, o que choca a jovem moça que sempre
imaginaria suas cenas de amor em espaços mais dignos de suas fantasias
retiradas de livros românticos.
"Assim um
iate que aparelhou nobremente para uma viagem romântica vai encalhar, ao
partir, nos lodaçais do rio baixo; e o mestre aventureiro que sonhava com os
incensos e os almíscares das florestas aromáticas, imóvel sobre seu tombadilho,
tapa o nariz aos cheiros dos esgotos".
Este choque se intensificará com
a mudança de modo de ser de Basílio, o qual passa a assumir a postura de um ser
que tão somente deseja Luísa e não mais a ama. A jovem passa então a questionar
a essência do amor e começa a entender melhor a vida libertina de sua amiga
Leopoldina, mulher aventureira que até mesmo pequenos casos homossexuais conta
em sua vida, nos tempos idos da adolescência escolar.
"Ai! Era
sempre com saudade que falava dos sentimentos. Tinham sido as primeiras
sensações, as mais intensas. Que agonia de ciúmes! Que delírios de
reconciliações! E os beijos furtados! E os olhares! E os bilhetinhos, e todas
palpitações do coração, as primeiras da vida!
- Nunca –
exclamou [Leopoldina] nunca, depois de mulher, senti por um homem o que senti
pela Joaninha!... Podes crer".
Leopoldina entende – Luísa o
percebe em um momento de epifania – que o amor é perecível e somente a mudança
constante é capaz de mantê-lo aceso e faiscante.
"Onde estava
o defeito? No amor mesmo talvez! Porque enfim, ela e Basílio estavam nas
condições melhores para obterem uma felicidade excepcional: eram novos,
cercava-os o mistério, excitava-os a dificuldade... Por que então que quase
bocejavam? É que o amor é essencialmente perecível, e na hora em que nasce
começa a morrer. Só os começos são bons. Há então um delírio, um entusiasmo, um
bocadinho do céu. Mas depois!... Seria pois necessário estar sempre a começar,
para poder sempre sentir?... Era o que fazia Leopoldina. E aparecia-lhe então
nitidamente a explicação daquela existência de Leopoldina, inconstante, tomando
um amante, conservando-o uma semana, abandonando-o como um limão espremido, e
renovando assim constantemente a flor da sensação! – E, pela lógica tortuosa
dos amores ilegítimos, o seu primeiro amante fazia-a vagamente pensar no
segundo!"
Leopoldina seria então a face
real do romantismo com sua boemia e certo desregramento de sentidos,
permitindo-se possibilidades de prazer inclusive vistas como doentias no
período em que vivia. O adultério nasce não apenas do hedonismo mais carnal
possível, mas sim do vício constante no jogo da sedução, de uma procura
incessante pelo momento em que o amor
ainda é paixão, desejo, busca e não apenas um conjunto de rotinas e convenções
cristalizadas, que de certa forma nos remetem à conduta existencial tão bem
desenhada por Mário de Andrade em sua famosa ode irônica ao burguês, ser humano
coisificado e cujo modo de ser é pura representação. Eça de Queirós aborda o
adultério por uma temática nada moralista e puritana e se propõe a mostrar como
ele nasce do desejo de viver algo mais profundo do que o simples amor burguês
preso em valores cheios de pompa, algo bem explorado por Tolstói em seu
fabuloso Ana Kariênina, com a sua protagonista enfrentando a repulsa pública
para manter-se ao lado de seu amor Vronski.
Agora, mais do que tornar o
adultério feminino em algo cheio de uma poética nobreza, Eça tece uma
interessante crítica ao Romantismo com seu exagero desvairado. Tal crítica se
justifica pelo fato de o romantismo da burguesia revelar um modo de ser que
implode a si mesmo, pois revela do alto do desejo de profundidade o quão são
falsos os princípios, os sentimentos e as condutas dessa classe, presa em um
dever-ser do mundo sem coragem de encarar a si mesma, independentemente da
época.
Nota:
* As citações são da edição brasileira de O primo Basílio publicada pela Penguin / Companhia das Letras.
Nota:
* As citações são da edição brasileira de O primo Basílio publicada pela Penguin / Companhia das Letras.
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Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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