Revisitando Mário de Sá-Carneiro: uma homenagem no ano do centenário da sua morte

Por Maria Vaz



Escrever sobre um grande vulto é sempre assim: difícil. Uma alma que escreve vagueia sempre por mundos envoltos em sentidos, em que as palavras se perdem ou não ecoam a devida intensidade da sua mundividência. Sobra-nos a tarefa de adivinhar, nas entrelinhas daquilo que se disse e se escreveu, um pedaço de céu ou um qualquer brilho que alguém esqueceu. Dito isto, falar de Mário de Sá-Carneiro implica subir e descer as escadas dos deuses e, inevitavelmente, confrontar a iluminação do cume do Olimpo com o submundo de Hades.

Teorias há no sentido de que um homem se resumiria a uma previsibilidade de acontecimentos entre duas datas: o nascimento e a morte. Mas quando falamos de poetas e de poesia, tocamos um mundo do absoluto em que a morte nada significa além da transformação da matéria: o corpo vai, mas ficam as palavras e os sentimentos petrificados em estrofes, combatendo a energia destrutiva de um tempo em que tudo perece. Eles permanecem. Estão condenados à eternidade pela analogia existencial de quem lê. Por mais que milhares de mentes leiam as mesmas palavras e não as compreendam com o seu sentido original, uma ínfima percentagem que o atinja, faz tudo valer a pena.

No fundo, nada nos resta além da negação da racionalidade delimitadora em presumíveis consequencialismos determinantes de uma vida. Por mais que compreendamos as tendências do meio familiar, ou dos meios em que deambulou, não podemos reduzir a vida de um poeta a essas previsibilidades. Previsível é a razão. Falar de um poeta como Mário de Sá-Carneiro implica a compreensão de um mundo caótico de emoções inclassificáveis com palavras banalizadas e, com isso, desprovidas de toda a intensidade com que foram escritas. Implica uma viagem interior. Uma saída da superficialidade em que nos perdemos. Implica um toque de caos e, ao mesmo tempo, alguma razão que nos permita vislumbrar o abismo e recuperar a luz.

Como apontam todas as biografias mainstream (daquelas que começam no nascimento e terminam na morte, seguindo uma linha previsível de dados fácticos grafados na ordem do tempo), Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa no dia 19 de maio de 1890. Mas as datas são coisas de Saturno. E um poeta incompreendido e boémio pertencerá sempre à imprevisibilidade de Urano: um ser à frente do seu tempo. Com toda a trama em que a melancolia entra em miscigenação com a ansiedade pela libertação, com todos os sentimentos de desajuste social que isso carrega.

frontispício de caderno de poesia manuscrita de Mário de Sá-Carneiro.


Como podemos verificar, o poeta nasceu no seio de uma família abastada, que sempre lhe proporcionou a educação de elite e os prazeres materiais que o dinheiro pode comprar. Não obstante, nunca lhe retiraram a “sede” de qualquer coisa supra-material: um qualquer “pequeno nada” agregador de sentido da existência, que parece ter encontrado e deixado fugir. Veja-se, nesse sentido, um excerto do poema “quase”, da sua obra Dispersão.

Um pouco mais de sol — eu era brasa, 
Um pouco mais de azul — eu era além. 

Para atingir, faltou-me um golpe d'asa... 
Se ao menos eu permanecesse àquem... 
[...]

Quási o amor, quási o triunfo e a chama, 
Quási o princípio e o fim — quási a expansão... 
Mas na minh'alma tudo se derrama... 
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou... 
— Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, 
Asa que se elançou mas não voou...
[...]

Num impeto difuso de quebranto, 
Tudo encetei e nada possuí... 
Hoje, de mim, só resta o desencanto 
Das coisas que beijei mas não vivi... 

Desse modo, restou-lhe sempre a procura (do absoluto ou do profundo) e o vazio das respostas em que extasiou o corpo mas não a alma. Afinal, a vida boémia que manteve, quer em Coimbra quer em Paris (onde viveu até à data da sua morte), fomentou os excessos que o álcool e o sexo pelo sexo podem proporcionar: a insensibilidade tão contrária à emoção de que precisava e que, do seu “eu” mais profundo, originou estrofes como as seguintes, do seu poema “Como eu não possuo”, também da obra Dispersão.

Olho em volta de mim. Todos possuem — 
Um afecto, um sorriso ou um abraço. 

Só para mim as ânsias se diluem 
E não possuo mesmo quando enlaço. 
[...]

Quero sentir. Não sei... perco-me todo... 
Não posso afeiçoar-me nem ser eu: 
Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, 
Falta-me unção pra me afundar no lôdo.
[...]

Como eu desejo a que ali vai na rua, 
Tão ágil, tão agreste, tão de amor... 
Como eu quisera emmaranhá-la nua, 
Bebê-la em espasmos d'harmonia e côr!...

Desejo errado... Se a tivera um dia, 
Toda sem véus, a carne estilizada 
Sob o meu corpo arfando transbordada, 
Nem mesmo assim — ó ânsia! — eu a teria...

Eu vibraria só agonizante 
Sobre o seu corpo de êxtases dourados, 

Destarte, podemos antever nessas estrofes o vazio do ciclo vicioso que o levou a perecer. Para mim que, tal como o poeta, estudei em Coimbra, torna-se facilmente imaginável a sua vida quotidiana, diurna e nocturna, naquela que é apelidada de “cidade do conhecimento”. Facilmente consigo imaginá-lo na euforia das noites em torno da velha Sé. Talvez, na altura, com um copo de traçadinho¹ na mão, enquanto apregoava ideias apenas apreensíveis pelo seu círculo de amigos, em que a profundidade intelectual e emocional seriam proporcionais aos excessos prorrogáveis até ao bater matinal da velha cabra. Por esse motivo, Mário de Sá-Carneiro não conseguiu sequer terminar o primeiro ano em Direito e cedo de desiludiu com Coimbra, pelo que decidiu ir estudar para a Sorbonne, em Paris. Não obstante, foi por essa altura que conheceu aquele que se viria a tornar-se o seu maior confidente, Fernando Pessoa: com quem trocou correspondências até à data da sua morte e com quem chegou a colaborar para a famosa revista Orpheu.  

Talvez, pelo meio dessa vida boémia, tenha escrito alguns dos seus melhores poemas: percalços entre a razão e as emoções, com toques de modernismo impregnados pela análise do “eu” (que, neste caso, é banalmente catalogada como narcisismo e não como uma análise da personalidade e da angústia interna ou das crises de identidade, que jamais o abandonaram).

Fernando Pessoa

Sob o meu ponto de vista, a amizade com Fernando Pessoa encontra-se envolta em compreensões que vão além daquilo que inicialmente os uniu: a poesia. Muitos escreveram sobre essa amizade questionando a orientação sexual de Mário de Sá-Carneiro. Contudo, independentemente dessa questão (cuja resposta certa nunca saberemos, restando-nos a ideia subjectivamente criada pela leitura das cartas que trocaram), em comum parecem ter a indefinição do “eu”: enquanto Pessoa dizia (e sabia ser vários), Sá-Carneiro parecia ter essa capacidade, que negava, e lhe causava psicoses existenciais. Verificar isso torna-se curioso, sobretudo devido aos conhecimentos esotéricos de Fernando Pessoa e a todo o semblante misterioso entre o hipotético misticismo ou esquizofrenia, bem como os estudos sobre várias (pseudo)ciências esotéricas. Parece-me nítido que, enquanto Pessoa tinha consciência do “eu” e do “outro”, Mário de Sá-Carneiro não a tinha, perdendo-se no caos interior. Fica o mistério do seu poema “7”.

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

A partir daí, fácil seria partirmos para o poema que deu nome à sua obra Dispersão, em que se torna notório o seu conflito interno entre ser um, ser vários e, consequentemente, não saber mais aquilo que efectivamente se é. Fenómeno a que se juntou a carência emocional (talvez pela perda precoce da mãe) e um qualquer síndrome interno de “abandono à liberdade do mundo” que, muito embora  o seu pai pudesse pagar, era desprovida de afecto.

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto

E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar,
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
[…]

Porque um domingo é família,

É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
[…]

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
[…]

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Por esse motivo, Mário de Sá-Carneiro, como o próprio definira, sentia-se sempre um “isolado”, um sonhador, alguém em busca incansável de si mesmo. Vejamos o seu poema “escavação”.

Numa ânsia de Ter alguma cousa
Divago por mim mesmo a procurar,

Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh’alma perdida não repousa!

Nada tenho, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama que tudo ousa
Unicamente à força de sonhar...

Mas a vitória fulva esvai-se logo
E cinzas, cinzas, só em vez de fogo...
— Onde existo que não existo em mim?

Podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que Mário de Sá-Carneiro foi um poeta (e escritor, tradutor, novelista) além do banal, do tradicional. Um modernista. Um inconvencional. Um incompreendido. Um perdido entre os excessos emocionais, a paradoxal incapacidade de sentir e a tentativa de racionalizar as emoções e de compreender o “eu”. Alguém sempre quase na catarse, na loucura, no excesso de si mesmo, na obsessão pelo que havia de vir, que nunca veio. Alguém que se perdia na dor e no pessimismo da insusceptibilidade de se compreender. Por tudo isso, não teve qualquer pudor em escrever um conto (“a confissão de Lúcio”), em que aborda a perversidade,  o amor homossexual, o crime, a loucura e o suicídio: uma das suas principais obras de rotura com o tradicional.

Um homem como Mário jamais se sentiria confortável fora do seu habitat intelectual e boémio. Inconformado com a incapacidade de sentir e incapaz de constância suficiente para superar relações (sexuais) fugazes, em que as emoções eram bloqueadas (talvez por medo de perda); incapaz de se compreender a si mesmo; perdido no caos em que os sentidos se degeneram e original a ‘perda de sentido’ da existência; e, agora, também com problemas de falta de dinheiro, envia a seguinte carta de despedida ao seu amigo Fernando Pessoa.

“Meu querido Amigo. 

A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas «cartas de despedida»... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas, mas não tenho dinheiro.” 

Mário de Sá-Carneiro, carta a Fernando Pessoa, do dia 31 de março de 1916.

Anos mais tarde, na Revista Athena, Fernando Pessoa escreveu sobre este nosso eterno Mário de Sá-Carneiro, com carinho (não obstante a invocação de pitadas de filosofia “quase ao jeito de Ricardo Reis”), que só não é perceptível pelos distraídos que se perdem nas formas:

“Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens, ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor.

Mas para Sá-Carneiro, génio não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que circunda os génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de verdades que todos têm por mentira. In qua scribebat, barbara terrafuit.” […] “Nada nasce de grande que não nasça maldito, nem cresce de nobre que se não definhe, crescendo. Se assim é, assim seja! Os Deuses o quiseram assim.”

Em jeito de conclusão, resta-nos afirmar que Mário de Sá-Carneiro não pode ser catalogado como menos do que uma estrela de brilho intenso, naquela que constitui a constelação eterna dos corpos de poetas que já partiram e que, por isso, objectivaram a sua obra poética, ainda que nunca, por mais que se tente, se consiga objetivizar a sua existência.. Este ano o calendário marca o centenário da morte do nosso poeta, cuja obra jamais morrerá, porque pertence à imaterialidade do mundo das ideias, susceptíveis de eternidade, ainda que a sua vida tenha sido (apesar de tão intensa) tão curta.

O ser humano pode ser óptimo para analisar o seu semelhante, mas nunca conseguiria a imparcialidade necessária para se avaliar a si próprio, pelo ego e pelo subjectivismo viciado da sua ideia de si. E, se calhar, como bem invoca o heterónimo do seu grande amigo Pessoa (Alberto Caeiro): “pensar é estar doente dos olhos”. Ou, como bem afirma Oscar Wilde, no seu De Profundis (livro que se diz que Mário de Sá-Carneiro teria lido antes do seu suicídio):

“reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?”

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Notas:
¹ Traçadinho é uma bebida típica em Coimbra. A sua fama serviu, inclusive, de mote a uma música cantada pelas tunas académicas e que dificilmente é esquecida pelos estudantes que por lá passaram.


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