O dia em que Flávia me mostrou que trinta linhas é pouco demais
Por Rafael Kafka
Em algum dia da semana passada,
lembrei-me de Flávia dando aula. Eu a conheci em um contexto de sala, mais
especificamente no estágio de minha primeira graduação e desde então nutro profundo
sentimento de amizade por ela, mesmo tendo visto-a tão poucas vezes em minha
vida. Sempre me questionei acerca de tamanho carinho e penso que a lembrança
ocorrida em uma aula que eu dava explicou-me, como uma rara epifania, as causas
de tão profunda afeição.
Percebo nos anos todos em que
dou aulas em escolas uma profunda dificuldade de meus alunos de escreverem mais
do que o limite mínimo de linhas em provas de redação. Se tal limite é quinze é
bem provável que todas as redações sigam o padrão desse número de linhas, com
raras exceções que o ultrapassam. Atingir quinze linhas para muitos de meus
estudantes é como vencer uma árdua maratona a cujo final eles chegam com os
últimos suspiros de sua alma cansada.
Se procurar entender o que se
passa com eles e explica essa dificuldade, bem provável que eu me depare com
jovens sem hábitos de leitura e sem incentivos sociais e familiares para
manutenção de tal hábito. Uma pequena conversa com os pequenos revela isso
facilmente, com muitos deles expressando profundo desprezo pelos livros, algo
que sem dúvida alguma parte meu coração.
Foi em uma aula de redação
dessas que fui questionado sobre como melhorar a produção escrita e lembrei da
história a qual marca meu primeiro diálogo com Flávia, diálogo este que me
marcou profundamente e que me pego até hoje a recordar com sentimento de
ternura bastante profundo. Eu estava em sala e passei a conversar com alguns
alunos cujas redações eu tinha corrigido a mando da professora que me orientava
o estágio naquele momento. Quando chamei-a, Flávia foi logo se justificando o
seu texto ruim dizendo que se sentia limitada com o pequeno espaço de trinta
linhas de uma redação modelo ENEM.
-Como assim? perguntei surpreso.
-É que tenho muitas coisas a
dizer sempre, mas quando estou começando a desenvolver o texto, logo me deparo
com o limite de linhas, disse entre sorridente e tristonha.
-Caramba. Isso é raro, viu?
Fizeste lembrar de mim mesmo agora, pois sofria demais com esse problema de
espaço nos meus tempos de cursinho.
-Sério?
-Seríssimo.
E passei a lhe relatar como eu,
em meus tempos de pré-vestibular, na mesma instituição de ensino na qual nós
dois nos encontrávamos – eu, quase a me formar em licenciatura em Letras, ela
em um curso técnico integrado – levava notas ruins demais nos testes de
redação, quando sempre imaginava que iria tirar uma nota incrível e ser
altamente elogiado pelo professor da época, o que muito me deprimia e mexia com
minha estima pessoal. Agora ali, estava diante de uma moça com a minha idade
então – 18 anos – a sentir o mesmo tipo de angústia e isso de certa forma
trazia a minha memória um profundo mar de coisas a refletir e a relembrar.
-E como lido com isso,
professor?
-Bem, tens de te adequar, usar
um texto seco e sólido. Não tem jeito. Há outros espaços onde podes escrever e
falar mais, como um TCC no futuro. Mas ali tens de seguir o modelo e isso é bem
complexo mesmo no início. Mas és inteligente e sei que vais lidar bem com isso.
Pecas por excesso quando tem muita gente que peca por falta mesmo.
Não lembro ao certo o desenrolar
do debate e muitas das frases acima são paráfrases de lembranças pessoais.
Apenas lembro que essa moça saiu dali mais sorridente e aliviada e anos depois
citaria essa conversa como algo que lhe deu confiança para escrever mais e
melhor. Encontra-se, inclusive, prestes a se forma em Serviço Social, curso que
exige muito do poder de leitura e de discussão de um ser. Obviamente, senti-me
muito feliz de ouvir tamanha coisa de uma pessoa que, hoje percebo, marcou demais
minha vida de professor com uma simples frase: a reclamação do tamanho de uma
redação do ENEM.
Quando eu a ouvi falar,
lembrei-me de todo um processo de aquisição de leitura que eu tive em minha
vida. Das tardes lendo em casa ou no CENTUR, procurando preencher o tempo entre
as crises de angústia andarilha que eu tinha naquele período, as quais
culminaram em uma tuberculose. Lembro de como eu sempre tive profundas
dificuldades em me adequar a padrões, pois sentia que se me adequasse a um eu
poderia perder a possibilidade de ler, de viver, de ser mais para ficar preso
em uma rotina tecnocrata e salarial. Lembro de como minha mente sempre estava
cheio de minhas próprias angústias e de meu desejo de entender e melhorar o
mundo de alguma forma. De como trinta linhas era pouco demais para eu expressar
tudo o que sentia diante do mundo doido que estava diante de mim.
Tal sensação de inquietude foi o
que me motivou a dar aulas. Gostaria de causá-la em meus alunos sempre que
possível. Flávia, naquele momento, me fez relembrar com mais intensidade as
principais motivações que me levaram até então e eu vi diante de mim alguém com
o mesmo efeito inquietante da leitura, o mesmo desejo de falar e de escrever
tudo o que viesse à mente, que passei a admirar ainda mais após conhecer a
chamada literatura beat. Aquele desvairismo foi o que me deu forças para querer
provocar os alunos que entrassem em contato comigo.
Penso que falhei em diversos
pontos nessa empreitada, mas sempre mirei causar essa inquietude. Ao contar a
história de como uma pessoa leitora achava trinta linhas pouco espaço, lembrei
do efeito que Flávia me causou naquela aula anos atrás e senti uma profunda
vontade de dar o abraço mais aconchegante que eu daria em minha vida se a visse
naquele momento. Apenas me recompus de um pequeno momento de emoção e segui a
dar aula, olhando para aqueles jovens me sentindo alegre de ter podido
experienciar algo tão incrível e deprimido por sentir que muita gente vai
morrer sem saber que quinze linhas não é um espaço tão grande assim: trinta
linhas é que é pequeno mesmo quando a mente estar cheia de devorar tudo o que
encontramos diante de nós.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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