O caso Meursault, de Kamel Daoud
Por Pedro Fernandes
“Um francês
mata um árabe deitado em uma praia deserta. São duas horas da tarde no verão de
1942. Cinco tiros, seguidos de um processo. O assassino é condenado à morte por
ter enterrado mal sua mãe e ter falado sobre com demasiada indiferença.
Tecnicamente, a morte se deve ao sol ou ao puro ócio. A pedido de um cafetão
chamado Raymond que está contrariado com uma puta, o seu herói escreve uma
carta ameaçadora, o caso se degenera e depois parece se resolver com um
assassinato. O árabe é morto porque o assassino acha que ele quer vingar a
prostituta, ou talvez porque ele se atreve, indolentemente, a fazer a sesta” –
assim o narrador de O caso Meursault
resume a obra mais conhecida de Albert Camus, O estrangeiro. É este romance, o ponto de partida para a narrativa
de um livro cujo tratamento é o de preencher os silêncios ou reanimar os
rumores em torno do acontecimento-chave para a obra que o antecede.
A narrativa
proposta por Kamel Daoud, no entanto, não se resume a esse exercício de
tapa-lacunas; trata-se de uma composição erguida no campo das hipóteses, porque
afinal, o seu narrador não é, mesmo com toda insistência para quem lhe ouve de
que o que diz é a mais pura verdade, confiável. Os preenchimentos que aí se dão
são de nome: o árabe assassinado por Meursault ganha nome (tema, aliás,
determinante neste romance, conforme compreenderemos mais tarde) e família.
Mas, o desenrolar dos acontecimentos que determinam sua morte é integralmente
posto em xeque e não nos é oferecida qualquer resposta acabada. Essa talvez
seja a grandiosidade do texto do escritor argelino: desconstruir, de certa maneira,
a narrativa de Camus, mas sem destituí-la da condição há muito assumida. Do contrário,
Kamel se propõe a reforçar o status
do absurdo, natureza original de O
estrangeiro.
Narrado em
primeira pessoa por quem seria o único sobrevivente mais próximo do árabe
assassinado numa praia da Argélia no triste período de ocupação da região pela
França, há uma sorte de ruídos que mais elevam o grau de mistério sobre o
fato-chave de O estrangeiro. Isso
porque esse narrador, quando torna a falar sobre o irmão Moussa, está sempre
tomado por uma condição emotiva propiciada pelo avanço dos efeitos do álcool (a
narrativa de O caso Meursault é um
monólogo – Haroun, o narrador conta uma sorte de impressões para um
ouvinte-investigador interessado, ao que parece, na descoberta das lacunas
deixadas por Meursault na narrativa de O
estrangeiro); quando o irmão foi assassinado, Haroun ainda era criança e o
que tem na memória são flashes sobre
o comportamento negativo e de luto da mãe pela perda do filho mais querido e
como ele teve toda a vida atingida por esse acontecimento; e, essa é a razão
para a existência de O caso..., na condição em que se dá a morte de
Moussa, não resta qualquer pista deixada sobre a razão do fim trágico nem o que
se passou depois, a não ser o integral apagamento da existência dessa figura
por Meursault.
Impossível
de oferecer uma resposta acabada sobre o que aconteceu a Moussa, o narrador
reescreve à sua maneira a tomada da existência pelo sem-sentido – tal qual a de
Meursault – levada ao mesmo ponto do narrador camusiano, como se a vida, essa
coisa construída pelo próprio esforço do homem, não a ficção, fosse uma
contínua repetição especular. Não significa entender por repetição uma
trajetória sobreposta a outra e sim uma trajetória derivada de outra e variável;
o leitor de O caso Meursault
compreenderá isso quando se deparar com as relações de Haroun entre o texto
bíblico, da morte de Abel por Caim e da morte do irmão por Meursault. É como
disséssemos que somos seres em cadeia e o mínimo reflexo pode se tornar em algo
de grandes efeitos para um indivíduo ou é reverberação contínua para os fluxos
da história.
Narrar, como
ato de externar um acontecimento, é uma maneira de expulsar certos demônios; a
escrita é coadjuvante nesse processo, quando não, no sentido psicanalítico, sobretudo
para aquele sujeito tomado pelo isolamento do mundo, uma maneira tal como a
narrativa. No caso de Haroun, quem não escreve porque o domínio da língua
francesa se dá pela competência de ouvir e falar – é o narrar para outrem o que
cumpre esse papel. Enquanto isso, a escrita serve-lhe noutra tarefa – a de não apagamento
da memória do irmão, dele próprio e da família. Em O caso Meursault narrar é última maneira de Haroun ser ele, este
que é uma figura tomada pela misantropia, e cujo único refúgio que lhe resta é
um bar na periferia de Omã. A primeira está na repetição do acontecimento-chave
de O estrangeiro, protagonizado por ele
e sua mãe; uma maneira de recriar indiretamente a tragédia acontecida com o
irmão e oferecer certa explicação sobre o acontecido.
No esforço
de expiação do passado, Haroun, depois do contato com a narrativa de Meursault,
interessa-se em aprender a língua do assassino para, um dia quem sabe, ser
capaz de ao menos dizer o nome do irmão morto – isto é, uma tentativa de
ressurreição de Moussa pela linguagem, meio pelo qual sua memória foi antes
apagada. A apropriação da língua ganha significação nesse romance porque faz da
sua narrativa, desde sua origem, um caso de antropofagia criativa; não é
somente o tema e a situação que fomentam O
caso Meursault, é ainda a língua, meio pelo qual se desprende uma linguagem
própria para a própria existência do narrado. Haroun coloca-se, dessa maneira,
como um estrangeiro, qual Meursault – e para saltar do interior da ficção, qual
foram os escritores que escreveram na língua que não eram a sua.
No âmbito da
compreensão da escrita como registro e manutenção da memória, é válido citar a
extensa preocupação do narrador com a perda e a preservação do nome do irmão:
“Moussa, Moussa, Moussa... Gosto, às vezes de repetir esse nome, para que ele
não desapareça do alfabeto. Insisto nesse ponto e quero que você escreva em
alto e bom som. Um homem acaba de receber o seu nome meio século depois de sua
morte e de seu nascimento. Insisto nisso”; “É importante atribuir um nome a um
morto, tanto quanto a um recém-nascido. É importante, sim. Meu irmão se chamava
Moussa”; “Imagine só, meu irmão poderia ter ficado famoso se o seu autor
tivesse ao menos dignado a lhe atribuir um nome, H’med, Kaddour ou Hammou,
apenas um nome, ora! Mamãe poderia ter conseguido uma pensão como viúva de
mártir, e eu teria um irmão conhecido e reconhecido do qual poderia me
vangloriar. Mas, não, ele não lhe deu nome nenhum, porque, senão, meu irmão
criaria um problema de consciência para o assassino: não se mata um homem
facilmente quando ele tem um nome”; “Um ponto, em especial, me atormenta
sempre: como foi que o meu irmão foi parar naquela praia? Nunca saberemos. Esse
detalhe vira um mistério infinito e causa vertigem quando se pergunta, em
seguida, como é que um homem pode perder o seu nome, depois a sua vida e,
ainda, o seu próprio cadáver, tudo isso em um único dia”; “Em vez de encontrar
nessa história as últimas palavras do meu irmão, a descrição da sua respiração,
suas reações diante do assassino, suas marcas e seu rosto, como eu esperava,
encontrei apenas duas linhas sobre um árabe. A palavra ‘árabe’ aparece ali
vinte e cinco vezes, sem nenhuma menção a um nome qualquer, em nenhum momento”.
À história, lembra-nos Haroun, só passam os nomes.
O caso Meursault, apesar do título, não
é, como se vê um romance de investigação. É um romance de hipóteses. Uma
narrativa sobre os efeitos da morte como desagregadora da família, metonímia
para se pensar na própria condição de confronto entre nações. De certa maneira,
parte de Haroun (essa obsessão pelo irmão e a maneira de estar sempre à sua
sombra) é uma metáfora sobre a Argélia independente ainda assombrada e tomada
dos efeitos e mazelas do período de colonização francesa. A um só tempo é também,
o marginal, porque não coaduna com certas condições, quais sejam a corrupção e
o fanatismo religioso. A escrita é, dessa maneira, um exercício de libertação
da imagem do outro e, pela refiguração do indivíduo, a refiguração de uma
nação.
Há muito o
que se dizer, além dessas notas, sobre esta que é, como se vê, uma acertada e
grandiosa estreia de Kamel Daoud no romance. O caso Meursault é uma engenhosa narrativa que reafirma a
destituição do valor negativo atribuído à ficção, esse território nunca
oposição ao que figura fora do texto literário, e que é capaz de estar sempre
em expansão, como o universo e sugerir a entrada em dimensões sobre as quais
sempre se sabe contínuas, mas sempre se vê como acabadas.
______
O caso Meursault
Kamel Daoud
Bernardo Ajzenberg (Trad.)
Biblioteca Azul, 2016
Biblioteca Azul, 2016
168p.
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