O aprendiz de feiticeiro, de Carlos de Oliveira
Por Pedro Belo Clara
A sugestão que hoje propomos, estimado leitor, é essencialmente
dirigida a todo aquele que nutrir um interesse profundo não só na obra deste
autor em particular como também no homem que foi Carlos de Oliveira, nas suas
vivências mais pertinentes e nas opiniões sob temas diversos que considerou por
bem partilhar quando a oportunidade se lhe deparou. Pois o livro em causa
compila textos, compostos em estilo de crónica, publicados em jornais e
revistas durante as décadas de 40 e 70, sendo o mais antigo datado de 1945 e o
mais recente de 1970 (datas de redação, diga-se, não de publicação), textos
esses onde Oliveira abre um caminho até aos seus âmagos mais íntimos, expondo
assim opiniões, visões, celebrações. Com o correr das páginas, uma determinada
figura começará a delinear a nitidez dos seus contornos, revelando assim a sua
centralidade na obra. Mas já lá iremos. Por ora, importa referir que, pelas
razões antes expostas, o nosso texto de hoje funcionará certamente mais como
uma recomendação da obra escolhida do que propriamente uma discussão
despretensiosa sobra a mesma.
Mas não existe
recomendação sem o devido fundamento. Por isso, afirmamos que, ao abrir as
primeiras páginas deste livro, estaremos a traçar um destino onde conheceremos fragmentos
de infância, amigos pessoais, opiniões sobre literatura, visões
superficialmente políticas de cariz social ou meros episódios esporádicos que
com o requinte e aprumo habituais nos serão apresentados. É este o caso do texto
de abertura – escrito em 1970 –, de nome “A viagem”.
Trata-se também de um
excelente exemplo do modo cénico com que Carlos de Oliveira construía algumas
narrativas, uma influência do mundo cinematográfico que transpôs de modo
bastante feliz para a folha de papel. Falamos essencialmente não só das
passagens entre cenas, mas na própria construção dos textos – como se tratassem
de autênticas peças de cinema. A gradação dos elementos que os compõem, as
descrições, os próprios adjectivos, apelando à criação de imagens mentais, são
aspectos que poderemos sublinhar.
Este texto em particular
foca uma viagem de automóvel realizado por Carlos e uma mulher de nome Gelnaa.
Talvez se pense numa companhia oriunda de algum país do norte da europa, mas a
assumpção estará errada. Pois trata-se de Ângela, a sua companheira de sempre,
nestes textos retratada através de anagramas que o autor à sua pessoa atribuiu
(Jane L. ou Anne Gall são outros exemplos). E embora seja um modelo maior do
modo cénico com que as narrativas eram tratadas e do lapidar competente de cada
linha, não se poderá afirmar nele um propósito, digamos, de extraordinário significado
por si só – propor uma reflexão pertinente ou transmitir uma qualquer mensagem
subliminar. A suprema elevação dá-se a partir da cena em si, é ela o foco
principal, não o que da sua construção se poderá depreender. Contudo, este
texto permite-nos antever, à medida que a acção se desenrola, entre pensamentos
de ocasião, verbalizações rarefeitas e acelerações automobilísticas súbitas, o
problema de saúde que acompanhava o autor e que, anos depois, teria um papel
fulcral na sua morte: «Tenho a garganta a doer, as guinadas persistem, a voz
continua rouca (quando é que a seda se rasgará?)». Ainda assim, o apelo por um
novo cigarro tornou-se mais forte, gesto esse que dispensará qualquer
comentário quanto às suas óbvias implicações.
O seguinte texto, “A
dádiva suprema”, já nos revela fragmentos de uma vivência pessoal com um poeta
seu amigo, Afonso Duarte, e foca a sua acção num processo reminiscente que
ocorre em pleno serviço fúnebre do mal fadado artista. Natural de um pequeno e
pobre lugar chamado Ereira, «uma aldeiazinha alagadiça dos campos do Mondego», era
companhia regular de Oliveira na cidade de Coimbra. O texto, em sua essência,
não só salvaguarda a memória do tempo entre ambos partilhado como homenageia a
própria figura do amigo, sua vida e trabalho. Ora vejamos: «elementos físicos,
sociais, humanos, fulguram nos versos de Afonso Duarte até à mais humilde
cintilação e constituem, por assim dizer, a substância primordial da sua obra
poética: «Lusíadas do povo, ando a escrevê-los»». Assim afirmava, hoje poeta
quase esquecido e de obra omissa em muitos lugares de compra.
Mas antes de passarmos
ao texto seguinte na lista das nossas sugestões, há que referir que aqui, neste
de que falámos, pela primeira vez o leitor poderá confrontar-se com o peculiar
modo que o autor tinha de organizar os seus textos. Pois, além da divisão
habitual por parágrafos, Oliveira enumerava secções com alíneas a anteceder os mesmos.
Temos, por isso, um texto corrido que poderia conter diversas partes num só
corpo, estando as mesmas identificadas pelas ditas alíneas, como se de uma
enumeração se tratasse. Por um certo ponto de vista, quase que se adivinha um
modo conciso de abordar o texto e arrumar o texto, meros ramais da já conhecida
exigência que Oliveira tinha para com o seu trabalho.
Em “O inquilino” ficamos
a conhecer o desejo antigo do autor em escrever teatro. Por anos, admite,
acumulou ideias e abordagens que considerava capazes de causar o desejado impacto
no resultado final da peça, mas rapidamente sumarizou o seu trabalho a apenas
dois títulos que nunca viram, segundo sabemos, a luz dos palcos: “A barragem” e
“Mrs. Davies”. São naturais os abandonos de projectos por parte dos seus
autores, tanto quanto aqueles que, por sua doença ou morte, nunca se viram completos.
Ora aqui não se vislumbra uma rejeição expressa, sendo por isso o caso de um
tardio enfoque no desenvolvimento da ideia. O próprio confessa, para surpresa
dos leitores: «O mais curioso destas peças é nunca terem sido escritas».
Curioso, sim, sem dúvida alguma… Há que o reforçar. Mas logo explica: «mal
chegava o momento de escrever, o tal minuto da verdade, logo um diabo ou um
anjo sem rosto me suspendia a mão». Procrastinação? Sapiente intervenção de
musa inspiradora? Agora, apenas poderemos especular. No entanto, Oliveira sempre
foi revelando grandes reservas no que ao desenvolvimento deste capítulo diz
respeito. Apesar da sua vontade, ia considerando as suas tentativas uma mostra
de «menoridade artística».
Já que falamos em arte,
esclarecemos que o enfoque dos textos nem sempre se fixa no próprio trabalho do
autor, movendo-se também para um espaço onde tece comentários e criativas
abordagens e visões sobre obras de outros autores. Como o texto “O grão de
areia”, invocando o famoso livro de Erskine Caldwell, “A estrada do tabaco”.
Apesar de optarmos por não nos demorarmos muito no comentário aos textos que
cabem nesta categoria, não significa isso que não recomendemos a sua leitura a
quem nela adivinhar, já à partida, um interesse especial.
No entanto, sobre o
tema, é no texto “Almanaque Literário” (longuíssimo, por sinal) que Oliveira
acaba por tecer extensas e diversas considerações sobre esse universo.
Começando por uma discussão sobre filosofia de arte que à época ganhava destaque
(a diminuição do valor da arte mediante o crescente desenvolvimento da
ciência), espraia o seu discurso até ao término da Feira do Livro daquele ano e
das subsequentes impressões que sobraram da experiência, bem como reflexões
pela mesma impulsionadas. No meio de certas e justas desilusões, «O livro não é
ainda (…) uma necessidade fundamental», explana essencialmente opiniões sobre o
estado da literatura portuguesa na década em causa (50).
Há um outro que pela
mesma razão convém invocar, dado o rico conteúdo que o abasta e, claro, o
interesse redobrado sobre a matéria que daí sobra para o leitor: “O tesoiro ao
sol”. Refere-se a uma antologia de contos populares portugueses que Oliveira e
o poeta José Gomes Ferreira organizaram na década antes indicada (1957, para
sermos precisos), de nome “Manhas, Patranhas e Artimanhas”. Lendo as
considerações e os exemplos gerais que o autor foca neste texto, quase que se
dispensava a leitura do próprio volume… Pois mesmo em clima de súmula, e este
trabalho em particular é deveras extenso, Oliveira guia-nos num perfeito
mergulho, mesmo que ele o considere superficial, na essência mais pura dos
contos selecionados, onde invariavelmente se reflecte a alma de todo um povo,
suas esperanças, crenças, quimeras, assombros e anseios. A variedade de
situações, personagens e histórias é sem dúvida de louvar: «numa perspectiva
sociológica, [trata-se do] mais rico filão dos nossos contos populares (…), a
maior soma de elementos arrancados à observação directa da vida, dos homens,
das paixões, dos costumes». São projectos assim que salvaguardam um dos mais
importantes patrimónios de toda uma nação: a história de um povo gravada nas
suas próprias histórias, pedaço fulcral no manto da sua ancestral identidade.
Contudo, não poderíamos
terminar esta nossa recomendação sem referir o texto “Janela acesa”, um breve
hino no seio de toda a canção que este livro é, dedicada a uma só figura:
Ângela, claro, ou Gelnaa, a companheira do autor. Aliás, se afinarmos o olhar,
veremos que a primeira palavra do título, “janela”, é por si só um anagrama
(perfeito na forma verbalizada) de Ângela. E não terá sido o acaso que no seu
capricho teceu tamanha incidência. O texto é mais um perfeito exemplo da
transposição duma técnica de filmagem (travelling)
para as páginas de um livro. Iniciando-se com motivos reminiscentes (a janela
da casa do seu avô e a cadeira onde se sentou a escrever os primeiros poemas),
de súbito o foco se fixa numa mulher de óbvia identidade, embora isso não
esteja explícito. Depois, o movimento revela a imobilidade da figura e sua
posição, sentada na dita cadeira e com um livro em suas mãos. Que livro? Aquele
que se eleva como a razão da sua homenagem: «as mãos, poisadas no regaço,
seguram um livro fechado. Vejo a capa (…). Reconheço o livro. É este. Como, se
estou ainda a acabá-lo? Não foi sequer passado a limpo quanto mais composto,
impresso. A mulher não pode ter um exemplar já pronto. E contudo tem».
Uma discrição algo
desconcertante, diga-se, com laivos quase proféticos, mas que sublinha o papel
fulcral dessa figura feminina na obra e principalmente na vida do autor. O
texto ganha outra dimensão se à memória de quem a viu assomar a imagem da capa
da primeira edição, pois a composição gráfica aí apresentada é exactamente
igual àquela que o autor descreve neste texto: «duas esquadrias largas, dois
tons de castanho (…); o título e o nome do autor ambos em caixa baixa, tipo e
corpo iguais». Como se lamenta o facto dessa capa não ter sido reproduzida nas
edições subsequentes, tivemos o cuidado de juntar à companhia deste texto a imagem
que referimos, para que o amigo leitor não fique a braços com dúvidas ou
curiosidades insatisfeitas.
Foi este o único livro
de crónicas que Carlos de Oliveira completou, embora essa designação possa
perder algum do seu sentido mais tradicional se lembrarmos alguns textos aqui
compilados, donde se depreende uma inclinação para outros campos que não esse,
mas sem dúvida que, em apenas pouco mais de vinte textos produzidos ao longo de
trinta anos, em número arredondado, oferece uma oportunidade única de contacto
com o universo mais íntimo do autor – em grande medida pelo conhecimento das
suas opiniões literárias, das suas visões e projectos futuros dentro da área,
das meras partilhas de episódios de índole mais pessoal. Por isso, será sem
dúvida um livro indispensável na biblioteca de todo o admirador da obra
deixada.
Importa, antes de
finalizar, referir que a primeira edição deu-se em 1971, e os textos em que nos
baseámos surgem na terceira edição da publicação que a Livraria Sá da Costa
Editora levou a cabo em 1979, a versão, digamos, definitiva, reproduzida em
2004 pela conceituada Assírio & Alvim. Embora já despojada da capa que
tanta significância atribuía à obra em si, substituída por um desenho da autoria
de Carlos de Oliveira – nome incontornável, como já o sabe, caro leitor, pela
atenção que neste espaço antes lhe concedemos, do neo-realismo português.
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