O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer
Por Pedro
Fernandes
Em 2012, Victor
Heringer marcou sua estreia no romance com o pé direito: Glória recebeu, no ano seguinte, o Prêmio Jabuti. O que chama
atenção nessa narrativa é o tom, em contínuo crescimento, de um narrador cuja
marca é o improviso, o uso dos bordões – ocasião em que propositalmente enxerta
à linguagem escrita outras maneiras de uso da língua – e o caráter irônico com que constrói
seu relato, a começar pelo título, que sugere uma coisa e cumpre outra.
Nesse O amor dos homens avulsos o escritor confirma
duas coisas: a promessa que deixou aos leitores na boa realização do primeiro
romance e sua capacidade de se reinventar, sem perder o fôlego da boa largada. Para
um escritor cujo interesse parece se distanciar do mero protocolo de contar uma
história para ser o de alguém capaz de inovar os protocolos da narração bem como
os lugares da literatura brasileira isso é fundamental.
A narrativa
de O amor dos homens avulsos é um
grande relato de um amor adolescente interrompido muito antes de os envolvidos
saber até aonde seriam levados pela correnteza desse rio caudaloso que é o
primeiro amor; é, noutra parte, a execução, tantos anos depois, da possibilidade de uma vingança
– os termos talvez nunca sejam bem esses, mas talvez a libertação de uma angústia e um ódio acumulados
durante tanto tempo, para não dizer de toda uma vida.
Camilo, o
seu condutor, tem a marca dos narradores machadianos, seja pelo estado de completa
condição à parte do comum, seja pelo tom melancólico e sombrio que despeja
quando olha para sua posição atual, seja ainda pela maneira com que constrói suas
reflexões sobre os do seu entorno. Isto é, todo relato não deixa de ser salpicado
pelo tom que marcou a estreia de Victor Heringer, constituindo-se, dessa maneira,
no nascimento de marca que mais tarde poderá ser a marca distintiva de sua
literatura.
Exercício de
memória, a narrativa de O amor dos homens
avulsos combina duas linhas temporais, entre a distensão praticada pelo
narrador: ora é o passado, os anos entre a infância e a adolescência vividos na
década de 1970 no interior de uma tradicional família do subúrbio carioca, cujo
pai presta serviços obscuros – certamente para o regime militar –, ora é o
presente, de homem sozinho, num aparamento, entregue à rotina, condição e lugar
a partir dos quais olha esse passado numa circunstância quando as arestas do
vivido teimam aparecer, como se uma peça solta que lhe arranha constantemente
a alma. A posição de figura apartada do comum é dada não apenas por um olhar
diferenciado de ser no mundo, ou melhor, esse olhar diferenciado está
materializado no resquício de uma paralisia que impede Camilo de se locomover sem
a ajuda de muletas ou bengala.
O traço que
une um tempo e outro é a chegada e o convívio com Cosme, um menino trazido, sem
explicações pelo pai de Camilo para o interior da família. Por isso, este é um
romance não apenas sobre o primeiro amor mas sobre as descobertas do outro, de si, do corpo, do desejo. Se há uma fixação pelo comezinho, há uma extensa voltagem erótica,
em parte ainda toda envelopada pela inocência da infância, que aos poucos começa
a circundar as situações em que estão envolvidas essas duas personagens; isso, claro, visto sempre pela ótica desse homem que teve a vida toda dedicada a trazer essa memória guardada na melhor e mais marcante passagem de sua existência.
Mas, O amor dos homens avulsos combina esse movimento
de corte subjetivo com uma percepção social, ora filtrada pelo olhar do Camilo-criança,
ora pelo olhar do Camilo-adulto. Essa combinação, que não é estanque, mas contínua,
revela-se como um extenso e complexo painel sobre um Brasil cuja história se confunde
com o drama do indivíduo. Essa sorte diversa de intersecções produzidas por essa
narrativa é, quando bem executada, sempre um ponto alto da narrativa. E no caso
agora examinado essa confirmação se cristaliza.
Da mesma maneira, que se verifica
o diálogo com toda uma tradição da nossa literatura; não é somente um narrador com
marcas de um Machado de Assis, são as infiltrações da narrativa pela poesia – recurso
verificado na linguagem, tantas vezes lírica, e na recuperação de determinados
textos, como o poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade na extensa citação
de primeiros amores costurada com uma declaração de amor que, apesar de ficcional
(e não é mérito aqui determo-nos nessas implicâncias entre o interno e o
externo ao texto), é uma das mais sinceras que o leitor encontrará pelo caminho. E Victor
Heringer tece essas relações sem parecer sintético como é comum encontrar no
texto mal realizado.
Há corpo, suor,
tara, carne, sexo e esperma. Subversão. Mas há um desenho platônico do amor.
Entram aí os veios líricos. E partir da não continuidade desse primeiro amor,
porque este, apesar de sempre o inesquecível está fadado a ser sempre passagem
(mas não precisava findar como finda – pensaria Camilo), há o discurso cheio de
ódio, de quem não absorveu a dor da perda, de quem transforma essa dor em denúncia
de sua condição e da condição alheia, porque a dor de Camilo é a dor de todos aqueles
que escolhem ser livres, não porque lhe é uma obrigação mas um direito. Esse discurso
de constantes tons melancólicos, conforme ficou assinalado aqui, não deixará de
nos arrancar uma lágrima furtiva de dor, danação e indignação pelo drama
vivido pelo protagonista.
Mas não é
esta uma narrativa que se deixa afogar pela dor perda ou de uma visada desencantada
do mundo; há um brio de esperança – a confirmação de que apesar de todas as
tentativas cruéis de ruptura do amor, a vida, coisa rara, não para. E, insiste,
os que o destino não os castra de existir, em repetir a possibilidade do amor. Essa
constatação sobre o mover-se da humanidade, através da variabilidade das maneiras como o amor se assume e entre figuras que o destino vez ou outra teima em colocá-las em contato é, sem dúvidas, o que melhor define
essa obra de Victor Heringer. Só há que tomar cuidado, na construção escritural, para que alguns gestos de linguagem, como a criativa maneira de descrever as maneiras do riso, não se tornem, pela repetição abusiva, num cacoete que enfada o leitor toda vez que os encontre pelo meio da narrativa. No mais, que o escritor se mantenha tão atento e dedicado
ao seu delicado movimento de ver as nuances menos ou nunca reparadas pelos
olhos comuns; é sua tarefa de romancista.
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