Flannery O'Connor se molha
Por Patricio Pron
“Sou dessas
pessoas que antes morreriam por sua religião que tomar um banho por ela”, escreveu
Flannery O’Connor a uma amiga: não falava de um banho qualquer, mas da imersão
nas águas da Cave Spring Lourdes, a que os enfermos de todo mundo atribuem
propriedades curativas desde quando, segundo a lenda, a Virgem apareceu ali a
uma jovem em 1858.
O’Connor
tinha trinta e três anos no momento de realizar sua viagem; apesar de jovem, já
era considerada uma das escritoras estadunidenses mais importantes de sua época
graças principalmente a dois livros: o romance Sangue sábio, publicado em 1952, e os contos de Um homem bom é difícil de encontrar
(1955). O primeiro é a história de Hazel Motes, um sobrevivente da Segunda
Guerra Mundial que, depois de perder a fé em detrimento da experiência, a recupera
fundando uma seita, a Igreja Sem Cristo. Os outros textos estão povoados por
assassinos piedosos, falsos pastores, aleijados, idiotas, vendedores de
bíblias, cegos e seres deformados cuja falta da beleza física reflete, no mundo
narrativo da autora, a da graça espiritual.
A obra de
Flannery O’Connor é parte do denominado “renascimento do sul” das letras
estadunidenses que teve como figura principal William Faulkner (de cujo
experimentalismo a autora de Sangue sábio
se distanciou deliberadamente) e incluiu autores do porte de Thomas Wolfe,
Tennessee Williams e Robert Penn Warren, assim com as chamadas Ladies of the
South: Edutora Welty, Katherine Anne Porter e Carson McCullers, entre outras.
O “renascimento
do sul” surgiu na década de 1930 como resposta àquilo que uma parte dos escritores
sulistas considerava a perda da idiossincrasia e dos valores da região provocada
pelo transição de uma forma de vida essencialmente rural para outra industrial
e urbana. Para O’Connor, quem havia nascido
em 1925 na região sul de Savannah, no Estado da Geórgia, e em 1938 havia se
instalado com sua família no condado de Baldwin, no Alabama (e alguma vez
levaria a afirmar que as duas circunstâncias que haviam dado forma à sua escrita
eram “o ser sulista e o ser católica”) essa transição era uma tragédia de
proporções (precisamente) bíblicas.
Existe um
elemento a mais na tragédia pessoal da escritora e é o que explica a viagem a
Lourdes de 1958, o que mais lhe pareceu em sua vida a umas férias: desde 1951
estava com lúpus, uma doença que ataca o sistema imunológico que se volta contra
os próprios tecidos do corpo; a autora havia detectado enquanto trabalhava em
seu primeiro romance, quando se queixou do esforço que fazia ao levantar os
braços para alcançar a máquina de escrever. Logo, os temas da redenção, da dor
e da fé que atravessam Sangue sábio começaram
a ressoar de forma singular em sua vida prática: os corticoides não foram de
grande utilidade e as doses de hormônios que lhe foram prescritas tampouco.
A escritora
precisou mudar-se com sua mãe para um sítio no Estado da Geórgia, onde se dedicaria
nos anos seguintes a escrever, cuidar de galinhas e caminhar de muletas e criar
pavões imperiais. Alguns anos depois de notar os primeiros sintomas do lúpus, teve
que começar a usar uma bengala para manter-se de pé; tempos mais tarde só podia
levantar-se com muletas.
O’Connor
demonstrou uma atitude singularmente estoica ante a enfermidade, que em sua correspondência
pessoal comentava de maneira humorística: se esta constituiu uma fonte de
infortúnios, também foi um excelente estímulo à escrita, já que a autora foi excepcionalmente
prolífica dadas suas circunstâncias pessoais. Em 1958, estava meio desacreditada
de tudo e aceitou o convite de ir assistir ao jubileu das aparições de Lourdes.
Flannery O’Connor
teria alguns sentimentos encontrados graças à viagem, já que sua obra tendia a
ridicularizar os excessos do entusiasmo religioso, daí que se negara inicialmente
a entrar nas águas “milagrosas”. Viajava como peregrina, não como paciente,
afirmou. Algo que viu em Lourdes e a comoveu especialmente, sem dúvidas, (talvez
uma profusão de aleijados e enfermos que parecia o elenco de personagens de uma
de suas obras) acabou por levá-la a aceitar o mergulho no manancial.
A escritora
morreu em consequência do lúpus seis anos depois dessa viagem, em 1964, aos 39
anos, sem que a água de Lourdes houvesse obrado nela um milagre. “Estou segura
de ninguém reza nessa água”, escreveu na mesma carta à amiga, mas também confessou
(mais tarde) que enquanto a mergulhavam havia rezado pelo romance que estava escrevendo
“e não pelos meus ossos, que me importam menos”.
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* Esta é uma versão de "Flannery O'Connor se moja" publicada no jornal El País.
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