Cravos, de Julia Wähmann

Por Pedro Fernandes



No que tem se transformado parte dos romances herdeiros daquela tradição fundada em parte por Marcel Proust? Como o leitor poderá encontrar nas páginas de Cravos, em fio de uma sensível tessitura lírica. Isto é, uma quase fusão entre a prosa e a poesia; aquela só se mantém pela forma estrutural enquanto a última é meio através do qual o escritor elabora algo que já não é mais narrativa, no sentido tradicional como é geralmente empregado este termo. 

Embora me sinta inclinado para a história mais comum e que tenha uma nesga de diálogo com o fora do hermetismo verbal porque tenho uma opinião de que a literatura e as artes são sistemas na complexa engrenagem social sempre sou fisgado pela engenhosidade criativa de alguns escritores – em grande parte, nesse território, embora sempre seja arrastado para o vale das decepções; sim, esse domínio da linguagem que se mostra /deve se mostrar pleno na superfície do texto nem sempre é alcançado pelos escritores que querem demonstrar um desapego pela força da tradição de contar histórias. 

Depois de chegar aqui é preciso reafirmar uma compreensão minha: como leitor interessado na maneira diversa como os escritores pensam e trabalham a linguagem não devo eleger preferências entre uma forma mais puxada para a tradição original do romanesco e as das experimentações. Importa é saber se o escritor terá conseguido elaborar bem aquilo que se propõe elaborar. Em todo caso, sempre sou inclinado a tecer relações entre o trabalho lido com o pouco conhecimento (e sempre será pouco) da tradição literária a qual faz por pertencer o escritor – seja para compreendê-lo integrado ao exercício de soldagem da cultura com que deve necessariamente ter parte ou no que renova essa cultura.

No caso de Cravos a autora mantém pequenas relações com a literatura dos anos setenta para cá e com o interessado aprofundamento nos exercícios de experimentação subjetiva, não no aspecto formal-estrutural, como é notável em outras figuras contemporâneas suas, mas na maneira de desarticulação entre as fronteiras sejam as da prosa e as da poesia, conforme mencionei, sejam as da objetividade e as da subjetividade, sejam ainda aquelas que lidam com o exercício de manifestação da intimidade através da literatura. Esta última uma clara influência dos outros suportes de apresentação do texto nascidos com a escrita para o blog e depois se tornado em execuções quase ao vivo nas redes sociais. E o livro de Wähmann não foge em nenhum aspecto dessas condições – nenhuma delas uma definição, diga-se sobre sua obra, uma vez que, ainda há muito o que percorrer e num futuro não muito distante capaz até de que essas observações só sirvam para esta ocasião de Cravos, texto cujo traço lírico vê-se desde o título.



Não tenho a convicção de querer que este texto seja um romance – nem uma novela. Apesar da diversidade de situações recobradas pela narrativa, findei a leitura com a certeza de estar diante de um conto, tanto pela maneira como esta narrativa está construída, do que contém, e, claro, pela condição de ser um texto capaz de ser lido numa sentada, para recordar aqui os princípios segundo Edgar Allan Poe. Rapidez, no entanto, não pressupõe ausência de densidade. Não nesse caso específico. O leitor perceberá, no efeito da presença do poético na narrativa, uma quantidade variada de situações necessárias sempre de uma releitura porque a maneira como essa narradora constrói suas impressões obriga-o uma parada de reflexão sobre a linguagem. Este viço da linguagem que muito lembra a poesia dos chamados escritores da geração mimeógrafo é o melhor do livro de Julia Wähmann – é um chamado ao desautomatismo linguístico, operação, quando empregada dentro de seus propósitos, sempre é uma riqueza aos olhos de quem o lê.

Há uma passagem de Cravos em que narradora, num claro comentário sobre sua própria narrativa, assim escreve: “Raymond Queneau escreveu a mesma história cem vezes, além de tudo o que já foi feito da mesma forma, só que de outro jeito”. O excerto não apenas ilustra a constatação apresentada acima como sugere ao leitor, nesse buquê de fragmentos, a possibilidade de estar diante de uma narradora que recria pela imaginação confessional a mesma situação reiteradas vezes ao longo do livro: a dos encontros casuais e o início de amores com a mesma dose de duração; todo amor é sempre marcado, ainda que não pareça, pelas mesmas etapas, boas até o seu limite de corrosão das rotinas ou o levante do desencanto.

Tudo aqui se parece com uma encenação, como se verifica na fusão entre a trama de apresentação de balé e o ir e vir da personagem em torno dos acontecimentos transmutados nos relatos. Não importa a preocupação se há um verdadeiro real que se falsifica na narrativa e sim que há um real fabricado pela narrativa. Esse fabricar está no interior do texto e é sugestão contínua de leitor para leitor, de leitura para leitura. Afinal, a narrativa de Cravos não é sobre situações e acontecimentos, mas afetos ou como as situações e acontecimentos são recebidos pela subjetividade de quem vivencia-os ou de quem recria-os, outra maneira que é também vivenciar.

Julia Wähmann constrói não somente uma narrativa lírica mas uma narrativa cuja estrutura é do mínimo. Isto é, se o lírico se manifesta por via diversa na prosa, a escolha da escritora é a do mimetismo da forma, o que pressupõe não uma leveza e sim uma alta concentração de sentidos. Os signos são objetos de significar; se o que faz é recontar sempre a mesma história, esse recontar assume tons diversos. Estamos ante uma pintura cuja imagem é composta de tonalidades – exercício que amplia a necessidade de uma perseverança do leitor sobre o que lê / vê. Logo, é um jogo de criação não o de necessária mimesis ou talvez a mimesis aqui se assuma como criadora o que exige uma participação do leitor além da simples organização de situações. Tais exercícios são um zelo pelo leitor e esse zelo é motivo para se desvendar narrativas como essas.


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