Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, de Elvira Vigna
Por Pedro Fernandes
O termo que
salta aos olhos do leitor nesse título de Elvira Vigna é, não o que parece ao
olhar comum, o que encerra a expressão, e sim palimpsesto. Isso porque é essa a maneira como a narradora compõe a
narrativa: uma variação sobre um mesmo tom, ora derivado de um acontecimento,
ora uma repetição, ora ainda um acontecimento sobre outro, como se num processo
de contínua recriação. Essa maneira que é, por fim, a composição da própria
estrutura desse romance se não é um todo inédita no tratamento do fato
ficcional é uma maneira muito original no âmbito da literatura brasileira contemporânea.
Vejam: não se trata de uma narrativa estratificada pela diversidade de pontos
de vista ou pela exploração de uma mesma situação por ângulos diferentes – para
citar duas possibilidades estruturais há muito repetidas por escritores;
trata-se de um conjunto de situações marcadas pelo mesmo tema que tanto se
repetem, quanto se sobrepõem uma a outra; um texto construindo-se ora por subtexto ora por hipotexto. É um puzzle que, cada vez que o leitor avança, melhor constrói uma
possibilidade sobre o narrado.
Nesse
sentido, Como se estivéssemos em
palimpsesto de putas, pela própria estrutura, rompe com a ideia de
narrativa enquanto externalização de um acontecimento. Claro, esse exercício de
subversão do contar remete para quando a literatura de Marcel Proust – porque intimista e, logo, centrada numa
interioridade psíquica do eu-que-narra – mas aqui na maneira de contar dessa
narradora de Elvira Vigna é a própria certeza sobre o que se diz o que é colocado
em xeque; também não é a substituição do realizado pela sua possibilidade a
inovação a que nos referimos, é a maneira como a escritora constrói esse possível, assim como a
sugestão oferecida pelo termo palimpsesto impresso desde o título da obra. A escritora constrói uma narradora que, ao
contrário dos narradores clássicos cuja força do narrado gosta de medi-la
pela veracidade do relato, gaba-se de contar o que não viveu, viu, mal ouviu e
prefere externalizar, como se uma fantasista, não algo sobre si, mas de um casal,
Lola e João.
Até parece –
imagina o leitor ingênuo – que estará numa história de amor das comuns, o que,
evidentemente, talvez não se concretize (e agora nossa atenção recai sobre o
último termo do título) devido ao tratamento de dissociação que logo poderá
fazer entre o comum das histórias de amor, sempre pensadas entre figuras
amparadas pelo ideal estabelecido social e culturalmente de uma ordem fundada
sobretudo nos princípios machistas. E é esse modelo, altivo embora corrompido
desde o levante da burguesia, o criticado implacavelmente por Elvira Vigna
neste romance. Lola e João, as figuras principais da imaginação dessa narradora – fornecidas uma e outra pelo ponto de vista de João – no qual ninguém deve se fiar, formam o casal bem apresentado socialmente,
enquanto ele muito ciente da posição farsesca que construiu para si e para os
outros, mantém a vida como se uma longa avenida marcada pelo uso de todas as
que se lhe atravessam ou mesmo porque ele nunca se desvencilhe do padrão
macho-caçador e esteja, pela vida profissional que criou, favorecido pelo sexo
fácil porque é produto de outra relação corruptora, a do capital.
O ir e vir
da narradora, que por vezes age como se conversasse com João – seja porque é o
ponto de vista e as situações dele filtradas por ela, o que lhe permite
desconfiar e duvidar da gabolice dele – aos poucos revela não uma face dessa personagem
work in progress visto não nos ser
oferecido, mesmo que a narradora tenha em parte esse interesse, um retrato realista
seu; quando muito, um amontoado de visões que dão a ela um caráter de figura
deformada, cubista: acentuada em algumas características e esmaecida em outras.
Também, apesar de ter para si todas as possibilidades de construção de uma
figura caricata, risível, rebaixada da sua condição, essa narradora prefere, ao
investigar sobre a maneira de seu comportamento maníaco por mulheres, dizer que
o homem, dessa maneira, é já criatura risível e caricata. Não é tarefa da visão
literária distorcê-la a esse limite. Muito embora, essa escolha da narradora
possa demonstrar, primeiro por uma atração sexual (não há como esquecer os
traços de fantasia que ela constrói com esse garanhão) um qualquer de não
interesse em usurpar esse lugar do homem; mas, olhando mais atentamente para essa
tela cubista, o que prevalece é a constatação de que não se pode ridicularizar
o que já-é ridículo. Anotemos aqui, o que a certa altura se apresenta como um
vazio enfrentado por João, o de ir e vir sedento com outros pela noite e já incapaz
de ser o garanhão de quando jovem.
Nesse território
do possível em que se pode cogitar mesmo numa projeção
imaginária de quem narra sobre a personagem e certo fascínio pela descoberta de João no interesse atento dela – sempre julgado porque a convicção dele é de que
esteja diante de uma lésbica e por isso tem a liberdade que tem de expor sua
vida sexual – arma-se outra reflexão, esta, talvez, a mais cara desse romance
para os dias atuais que se volta às necessárias discussões sobre o
empoderamento da mulher. É a figura entrevista de Lola, quem só se mostra por
entre os relatos de João, como um pálido sujeito, não visto por ele mas pela
narradora ora talvez ciente da condição do companheiro e conivente com tudo ora
talvez iludida por acreditar que a manutenção de um status quo social é motivo para não desconfiar de uma possível vida
pregressa levada por João – até que compreendida esta segunda, decide-se pela
separação, numa clara alusão ao extenso movimento de resistência das mulheres pela
dignidade e não só isso, descobre-se possível de vender o corpo igualmente por valor muito alto só pelo prazer de ver o homem que sempre lhe humilhou às favas.
Ainda nesse tema
sobre a condição da mulher é necessário não esquecer da extensa galeria de
mulheres anônimas que transitam pelos quartos de hotéis, bordeis, casas de
prostituição, sempre o campo ideal para servir a tipos como João e os amigos. Ou
ainda, do outro lado, a não menos extensa galeria de mulheres resignadas à
condição de apresentáveis à
sociedade. Aos olhos dessa narradora a história do homem é movida pela força do
sexo e este é o grande produto na história do capital e da exploração das
mulheres pelos homens; e isso, embora designado pela via do dinheiro, é um
imperativo cujas ramificações nascem na condição biológica e passam pelo o
imperativo, conforme dissemos, social e cultural. É a revelação de um universo
machista que se desdobra pelas confissões naturais
de uma figura que tem no sexo oposto a necessidade de edificar sua própria
convicção de macho. Claro, no que se refere a esse tema, esse romance zela pela
compreensão de não é essa situação binária tampouco que as mulheres estão
eternamente presas à redoma imposta pelos homens. Elvira Vigna é ciente dos movimentos de ir e vir e sobre os processos de variação das identidades individuais bem como de que a história das subjetividades é contínua movência.
E
não é isso até agora exposto o único tema de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas; há toda uma série de
outras presenças designadamente históricas e sociais há muito recorrentes
quando o assunto é o das relações afetivas e, acrescente-se, o da identidade brasileira. Sobre este último, Elvira Vigna não se descuida de
lembrar que é papel da literatura fornecer subsídios para se pensar sobre o que
nos é caro coletivamente: a profanação das relações em nome do capital, a
violência, o preconceito, a corrupção, estão, entre outras, no interior das
relações mais simples, como as investigadas nesse romance, mas recaem sobre o
coletivo e sua máquina deteriorada, tal como conhecemos. É um livro único
porque sabe combinar os assuntos mais caros sobre o que somos, individual e
coletivamente, à inventividade estrutural e formal da narrativa. E isso, convenhamos,
numa ocasião quando proliferam toda sorte de literaturices e modismos, tem uma
valia extrema: lembra-nos que ainda há fôlego no universo criativo da
literatura.
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