Cobra Norato, uma passagem para o imaginário popular brasileiro
Desde sua
primeira edição, em 1931, que o poema Cobra
Norato, de Raul Bopp é lido como uma das melhores expressões da literatura
brasileira modernista. Entretanto, é preciso que o leitor saiba que essa
compreensão está para o nível do tema e não da forma poética. Embora o poeta
tenha se aproveitado antropofagicamente de várias versões de uma lenda oral indígena e feito uso
do verso livre, sua ideia, diferentemente de outros textos desse período, não
se constrói por expressões como a
metapoesia, a paródia, o poema-piada ou o uso da linguagem oral.
Mesmo assim,
não pela época em que foi publicado – pós-semana de 1922 e quando o seu autor já havia se
tornado um dos importantes divulgadores do Modernismo, à frente da Revista de Antropofagia – mas por incorporar-se nesse período de altos contrastes, naquela linha definida por tantos críticos, a de
lamento pela perda da tradição ou apagamento da tradição, causada em parte, diga-se, pelo próprio vento do espírito
modernista, sempre sedento pelo novo.
A integração
do poema à cena modernista brasileira deu a ele um protagonismo entre os textos
canônicos de nossa literatura que dificilmente alcançaria sozinho; o próprio
Raul Bopp viu-se, reiteradas vezes, mais como um editor, propagandista do
movimento de 22, que mesmo como literato. Sua obra literária, aliás, é bastante
breve e a escrita de Cobra Norato se deveu mais ao apoio incontestável de
amigos como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, este último nome a quem Bopp
atribui o nascimento do antropofagismo literário: “O nome [Movimento
Antropofágico] surgiu por acaso. Uma noite, Tarsila e Oswald resolveram levar
um grupo que frequentava o Solar a um restaurante. Especialidade da casa: rãs.
Uns aderiram à ideia, outros ficaram com os pratos mais corriqueiros. Quando,
entre aplausos, chegou a comida, Oswald levantou-se e começou a fazer o elogio
à rã, uma blague para explicar a teoria da evolução das espécies. Tarsila
interveio: ‘Somos quase antropófagos’. E entre outras tiradas, Oswald proclamou
Tupy or not tupy, that’s the question.
Logo depois, Tarsila pintou o quadro e batizou de O antropófago. Assim, Oswald propôs desencadear um movimento de
reação genuinamente brasileiro”.
Raul Bopp começou
a escrever Cobra Norato uma década
antes da sua publicação. O livro é resultado de suas andanças pelo norte do
Brasil. “A estada de pouco mais de um ano na Amazônia deixou em mim assinaladas
influências. Cenários imensos, que se estendiam com a presença do rio por toda
parte, refletiam-se com estranha fascinação no espírito da gente. A floresta
era uma esfinge indecifrada. Agitavam-se enigmas nas vozes anônimas do mato. Inconscientemente,
fui sentindo uma nova maneira de apreciar as coisas. A própria malária, contraída
em minhas viagens, acomodou meu espírito na humildade, criando um mundo
surrealista, com espaços imaginários. Ensaiei, nessa época, além do esboço de Cobra Norato, alguns poemas avulsos:
‘Mãe febre’, ‘Pântano’, ‘Sapo’, ‘Cidade selvagem’. Procurei restituir em
versos, impressões recolhidas em minhas andanças na região”.
Da região foi
que Bopp ouviu e agregou uma sorte de lendas e causos para a criação do seu poema
famoso: a lenda do Boto, da Cobra Norato – nome com o qual batiza seu texto – e
da Cobra Grande, são algumas delas. Para as lendas há diversas versões: a de que
a cobra escravizava as tribos e exigia em troca uma jovem virgem; a de que vive
embaixo da igreja de Marajó depois de vencida por Nossa Senhora, essa uma clara
versão em que se misturam as crendices populares com os discursos religiosos
católicos trazidos pelos portugueses. Outra das versões, recorda Luís da Câmara Cascudo em seu Dicionário do folclore
brasileiro retrata que uma índia tomava banho entre os rios Amazonas e Trombetas quando
foi engravidada pela Cobra Grande; ela deu à luz a duas crianças, Norato e
Maria Caninana. A menina era uma peste e o menino, muito bom, viu-se obrigado a
matá-la; castigado, Norato tornou-se cobra e sempre à noite se transformava num
rapaz sedutor. Para desfazer o encanto alguém precisaria ferir a cabeça da cobra
e pingar leite na sua boca.
Motivado pelo
tom fantástico e a diversidade de versões para a história, o poeta gaúcho cria
sua própria versão inserindo no seu desfecho um causo popular; nela, Cobra
Norato, para sair do encanto em que foi transformado, terá de vencer uma sorte
de situações, num percurso que simula a jornada do herói, a fim de conseguir, no
fim da viagem, sua condição de homem e o coração da filha da rainha Luzia. Por isso, este é um texto que se filia ainda à longa tradição da criação literária épica.
Já o tom de
fábula infantil com o de realismo fantástico que compõe com Macunaíma, de Mário de Andrade e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo uma
trilogia mítica do nosso modernismo não é gratuito; entre as várias revisões
operadas pelo autor, uma delas, a de 1929, visava fazer o poema integrar uma coleção por ele
pensada para a literatura infantil, a Bibliotequinha Antropofágica, projeto que
não saiu do papel. O interesse não estragou o texto; pelo contrário, o fez
densamente mais rico e ampliou a sorte do público leitor.
No instante
em que se integra para uma linha da literatura brasileira nascida com José de
Alencar ou Gonçalves Dias, no exercício de busca pelas raízes do autenticamente
nacional, da literatura divorciada das influências estrangeiras, Bopp
populariza o mito amazônico, num claro interesse que foi o do grupo
antropofágico por integração entre os diversos Brasis. Essas observações
reforçam não só o burilar da linguagem, mas o lento processo de construção de
uma obra capaz de servir às bases fundamentais do Modernismo, tal como outras
já haviam galgado esse lugar.
O poema é
composto por 33 cantos breves e ilustra um circuito do herói. No primeiro se
apresenta uma proposição acerca da condição de Norato de homem-cobra e o seu
desejo em “tornar-se” humano, dado o interesse pela filha da rainha Luzia –
Um dia
eu hei de
morar nas terras do Sem-fim
Vou
andando caminhando caminhando
Me misturo
no ventre do mato mordendo raízes
Depois
faço
puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando
chamar a Cobra Norato
– Quero
contar-te uma história
Vamos
passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de
conta que há luar
A noite
chega mansinho
Estrelas
conversam em voz baixa
Brinco
então de amarrar uma fita no pescoço
e
estrangulo a Cobra.
Agora sim
me enfio
nessa pele de seda elástica
e saio a
correr mundo
Vou
visitar a rainha Luzia
Quero me
casar com sua filha
– Então
você tem que apagar os olhos primeiro
O sono
escorregou nas pálpebras pesadas
Um chão de
lama rouba a força dos meus passos
– e nos
demais toda a sorte de acontecimentos decorrentes da longa empreitada. Cobra Norato funde prosa (forma) e poesia
(estrutura); é uma narrativa em versos das venturas e desventuras de um herói –
tema caro à literatura universal desde a empreitada de Ulisses no retorno de
Troia na Odisseia.
Como bem definiu outros leitores,
porque as aventuras aí desenvolvidas parecem situadas num plano onírico, aquele
onde todas as possibilidades são realizáveis, pode ler-se ainda como a saga de um eu-poético
em busca do amor. Como numa aventura de heróis, terá de vencer uma sorte de etapas, provações, por rios e florestas, num interstício de repulsa e atração por esses lugares
até alcançar o outro extremo de sua condição.
Como num
conto de fadas, o caminho até à filha da rainha Luzia é povoado de sentinelas e
armadilhas que o herói, à base da astúcia, precisará vencer: sapos beiçudos,
charcos, o cururu, Cobra Grande. Em todas elas, e até à entrada do buraco da
Boiúna, contará com ajudas diversas: como os amuletos doados pelo Pai do Mato
que o ajuda contra os sapos beiçudos ou o Tatu-de-bunda-seca que o leva sair do
charco e embrenhar-se mata adentro até chegar ao seu destino final.
O poema é ainda um embate entre duas forças da natureza – o bem e o mal – em que o
último, curiosamente, engendra o primeiro, e correspondem dessa maneira um desvelar
de pelo menos duas condições do Brasil – a primitiva e a moderna – compondo uma
reconstrução do país por uma identidade autêntica e genuína, qual compreendia
os primeiro alvores do movimento modernista no país.
Uma e outra
condição é exibida no poema pela figuração de temas do imaginário amazônico e o
toque da tradição portuguesa como um elemento fundamental no engendramento das
nossas fábulas primeiras. Sabe-se que, a filha da rainha Luzia, reúne traços de
duas histórias diferentes do imaginário luso: a da filha do rei Sebastião e a da rainha Luzia.
Pela
riqueza de temas, da construção da narrativa e do diálogo que constrói seguindo
a forma da cartilha da antropofagia é notável que a reedição dessa obra, renova
os seus valores para outra geração que ainda precisa descobrir a força do texto
de Raul Bopp e de um momento fundamental para a história da nossa literatura.
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